terça-feira, 10 de abril de 2012

RESUMO RT - CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE - Parte II: Precedentes Históricos


Recapitulação

          Na primeira parte deste resumo, o leitor pode acompanhar temas como a centralidade do papel da Constituição nos ordenamentos jurídicos, a ideia da interpretação jurídica como instrumento de realização dos fins constitucionais (Constituição como "filtro" axiológico), o controle de constitucionalidade enquanto técnica de correção da falta de unidade das normas do ordenamento (disfunção do sistema jurídico) etc. Também foram objeto de consideração os pressupostos do controle (supremacia da Constituição e rigidez constitucional). Por fim, o controle de constitucionalidade foi contextualizado como sendo uma das possíveis espécies de aplicação do texto da Constituição pela jurisdição constitucional (gênero). Nesse prisma, o controle é técnica corretiva acionável mediante o exercício da jurisdição constitucional nas hipóteses em que o texto supremo serve de parâmetro de aferição da validade de atos normativos inferiores.
          Na segunda parte do resumo, tratarei dos precedentes históricos que ensejaram a atual conformação do constitucionalismo profundamente alicerçado na ideia do controle de constitucionalidade.

O caso Marbury v. Madson e a gênese da doutrina do controle de constitucionalidade: contextualizando o lead case de 1803.

          Entender os precendentes históricos do controle de constitucionalidade implica compreender o contexto no qual eles se desenvolveram. Assim, deve o leitor atentar para o período (início do século XIX) e o local (Estados Unidos da América) em que se deu a formação do precedente apontado, quase à unamidade pela doutrina, como sendo o pioneiro no desenvolvimento da ideia de que o Judiciário poderia controlar a validade de atos hierarquicamente inferiores que tivessem sido editados em desconformidade com o texto da Constituição.
          No início do século XIX, os Estados Unidos da América eram governados pelo presidente John Adams. O ano era 1800. Ao final daquele ano, o pleito consagrou a vitória da oposição, de modo que os republicanos assumiriam o controle dos Poderes Legislativo e Executivo (em 1801, Thomas Jefferson tomaria posse como novo Presidente eleito). Temendo a conjuntura desfavorável que se anunciava para os federalistas da situação, o presidente Adams percbeu que poderia manter a influência do seu grupo político nos negócios do Estado por meio do Poder Judiciário - justamente aquele poder no qual a investidura não é dada, em regra, mediante eleição. 
          Para esse fim, Adams tomou as seguinte atitudes: 1) reorganizou a estrutura do Poder Judiciário Federal (os federalistas aprovaram a lei The Circuit Court Act), para reduzir o número de juízes da Suprema Corte (isso impedia a nomeação de juízes pelo Presidente republicano), bem como para criar novos cargos de juízes federais a serem preenchidos por aliados do Presidente; 2) iniciou a nomeação de quarenta e dois novos juízes de paz, cujos nomes haviam sido indicados por ele (essa autorização para nomeá-los foi dada pela lei conhecida como The Organic Act of the District of Columbia). O Presidente Adams, então, deu ao seu Secretário de Estado (John Marshall) a incumbência de efetuar a nomeação dos indicados para os cargos de juiz de paz. Ao mesmo tempo, antes de deixar o poder, Adams também nomeou Marshall para ocupar o cargo de Presidente da Suprema Corte (Chief Justice).
          Essa segunda medida (nomeação dos juízes de paz) causou problemas. O motivo é que não houve tempo hábil para que todos os quarenta e dois indicados por Adams tomassem posse na magistratura de paz antes que Jefferson assumisse o poder. A situação agravou-se, haja vista que, tão logo foi empossado, o agora Presidente Thomas Jefferson deu ordens ao seu Secretário de Estado (James Madison) para sustar os atos de investidura dos indicados por Adams.
          Pois bem. Um desses nomeados que não obtiveram a investidura no cargo foi justamente William Marbury. Sentido-se prejudicado, Marbury ajuizou uma ação (writ of mandamus) com a finalidade de ver judicialmente certificado seu direito à posse após a regular nomeação ao cargo de juiz de paz. O ano era 1801, mas o pedido fundou-se na lei conhecida como The Judiciary Act, de 1789 (lei que determinava a competência da Suprema Corte para conhecer do writ naquela matéria). A Corte Suprema agendou então o julgamento da ação proposta por Marbury para a sessão de 1802. Porém, como Jefferson havia conseguido revogar a lei de reforma do Judiciário Federal concebida por Adams, já alardeando sua recusa em cumprir as determinações em sentido contrário da Corte Suprema dos EUA (nisso incluída eventual imposição de ato de investidura de juízes de paz nomeados, mas não empossados), o Congresso estadunidense desfez a sessão da Corte de 1802. Assim, aquele Tribunal máximo só voltaria a se reunir em 1803 - data da apreciação do caso Marbury v. Madson.
  
Prolêgomenos da doutrina do controle de constitucionalidade: a decisão do juiz Marshall no caso Marbury v. Madson (1803).

          Julgando o caso Marbury v. Madson, no contexto histórico altamente conturbado a que acima aludi, a Suprema Corte estadunidense desenvolveu as linhas gerais da doutrina do controle de constitucionalidade - ainda hoje reproduzida pela teoria da Constituição. A ideia defendida pelo tribunal, e que acabou revelando uma nova dimensão de entendimento do ordenamento jurídico como um todo, era no sentido de reconhecer o papel do Poder Judiciário na salvaguarda da higidez do texto da Constituição, impedindo, assim, que atos infraconstitucionais, editados em desacordo com seus preceitos, pudessem ser considerados válidos e, consequentemente, parte do cipoal de leis componentes do ordenamento. Segundo esse raciocínio, ao Judiciário caberia, em identificando lei contrária à Constituição, deixar de aplicá-la. Logo, a interpretação jurídica permitiria o expurgo de atos normativos inválidos à luz da Constituição.
          O principal responsável pelo desenvolvimento dessas linhas doutrinárias foi o juiz John Marshall. Este, em seu voto, defendeu que o controle de constitucionalidade decorreria da concepção da ordem jurídico-normativa como um sistema, daí extraindo consequências correlatas, a saber: 1) supremacia da Constituição; 2) judicial review; 3) protagonismo do Poder Judiciário no exercício do controle.
          É possível sintetizar as conclusões do voto de Marshall nos seguintes pontos:
         1) reconhece a Marbury o direito à investidura no cargo de juiz de paz;
         2) admite que a ação cabível (via processual adequada) para obrigar o Poder Executivo a proceder à investidura de Marbury era mesmo o writ of mandamus;
         3) reconhece a legitimidade do Poder Judiciário para compelir agente do Poder Executivo à prática de atos, ressalvadas duas hipóteses: (a) os atos de natureza política; (b) atos discricionários em razão de previsão legal ou constitucional. Para Marshall, portanto, em todas as demais hipóteses em que houvesse obrigação atribuída ao Poder Executivo pela Constituição ou pelas leis, caberia intervenção do Poder Judiciário para impor o cumprimento do dever.
          O leitor precisa notar que o terceiro ponto expresso no voto de Marshall tem relevância sobeja. Segundo o voto do juiz, o Judiciário está autorizado a controlar a constitucionalidade dos atos do Poder Executivo, tendo por suporte os comandos contidos nas leis e na Constituição. É a gênese da ideia do controle jurisdicional da constitucionalidade e da legalidade dos atos do Poder Executivo.
Outro aspecto de inegável importância histórica - talvez o mais importante - do voto de Marshall diz respeito ao reconhecimento da competência do Poder Judiciário para proceder ao controle (no caso, determinando a expedição do writ em favor de Marbury). Para atingir essa conclusão, justificando o controle judicial de constitucionalidade, Marshall sustentou sua tese com base em três argumentos fundamentais:
          1) supremacia da Constituição;
          2) nulidade da lei que contraria a Constituição;    
          3) competência do Poder Judiciário para interpretar, com caráter definitivo e final, o texto da Constituição.
          Esse último argumento foi revolucionário à época, pois a ideia do Judiciário como intérprete final da Constituição era controversa, havendo quem entendesse que os demais Poderes não poderiam ficar submetidos a decisões do Poder Judiciário tomadas com caráter vinculante (tese da autonomia dos Poderes Legislativo e Executivo perante a interpretação judicial). Com a argumentação de Marshall, evidentemente, restou superada a controvérsia. 

Críticas à decisão no caso Marbury v. Madson

          A doutrina aponta algumas críticas à decisão tomada no famoso lead case de 1803. A primeira delas é reconhecer que Marshall tem o mérito de ter explicitado, com argumentos sólidos, as ideias fundantes do controle jurisdicional de constitucionalidade, tal como é conhecido hoje na maioria dos países democráticos. No entanto, não se pode atribuir à Marshall a "invenção" da ideia de controle, pois a historiografia registra precedentes nesse sentido no período da Antiguidade, no Medievo. Nos Estados Unidos também já havia doutrina que pugnava pela invalidade dos atos legislativos contrários à Constituição.
          É preciso ainda observar que Marshall usou de sua rica capacidade argumentativa para legitimar o seu próprio poder enquanto presidente da Suprema Corte dos EUA. Afinal, atribuindo ao Judiciário o papel de figurar como o intérprete final da Constituição, mediante o juízo de constitucionalidade dos atos dos Poderes Executivo e Legislativo, Marshall reconhecia também ser possível ao tribunal que presidia proceder à revisão desses atos, quando eivados de inconstitucionalidade, o que lhe dava um poder de barganha política excepcional.

Principais contribuições do caso Marbury v. Madson para o controle de constitucionalidade

          Após toda a exposição, torna-se possível sintetizar as principais contribuições do voto de Marshall no precedente Marbury v. Madson (1803) para a doutrina do controle jurisdicional de constitucionalidade - parte indissociável do constitucionalismo moderno. Ei-las:
          1) reconhecimento do princípio da supremacia da Constituição;  
          2) judicial review: possibilidade de controle, pelo Poder Judiciário, dos atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo quando contrários à Constituição, declarando-os inválidos (atos nulos);
          3) competência do Poder Judiciário para atuar como intérprete final do texto da Constituição.

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