quinta-feira, 27 de junho de 2013

A TEORIA DO "STARE DECISIS" NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO: considerações sobre o efeito vinculante dos precedentes judiciais no direito jurisprudencial contemporâneo


 
1 - Introdução

A teoria do stare decisis relaciona-se com o brocardo latino stare decisis et non quieta movere ("mantenha-se a decisão e não ofenda o que foi decidido"). Juridicamente, o emprego da expressão denota que os precedentes firmados por um tribunal superior são vinculantes para todos os órgãos jurisdicionais inferiores dentro de uma mesma jurisdição. Trata-se de uma teoria típica dos sistemas judiciais que valorizam sobremaneira a força dos precedentes. Assim, por exemplo, pelo stare decisis, uma decisão da Corte Suprema tem capacidade de vincular todos os demais juízes e tribunais. Essa é a regra geral, mas que não impede a existência de exceções dentro do próprio sistema de precedentes.

No plano da técnica do controle de constitucionalidade, o stare decisis remete ao peso que os precedentes devem assumir quando da prolação de decisões pelas cortes constitucionais. A ideia é fomentar a consciência de que o direito é carecedor de segurança jurídica, cabendo à Constituição servir como pedra fundamental do edifício normativo. Logo, é razoável supor que tanto mais segurança haverá quanto menos divergentes forem as decisões entre um e outro juízo relativamente à interpretação do texto constitucional acerca de fatos assemelhados. Numa palavra: o stare decisis representa o rechaço à arbitrariedade dos juízes na interpretação da Constituição.  

2 - A teoria do stare decisis no controle de constitucionalidade do Brasil e dos Estados Unidos

No controle de constitucionalidade dos Estados Unidos da América, a adoção da teoria do stare decisis acarreta algumas consequências peculiares. A mais relevante delas consiste no fato de que eventual declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no caso concreto, será capaz de vincular os demais juízes e tribunais ao decidido, ainda que a decisão tenha sido tomada em apreciação de um litígio específico.

Disso resulta que a decisão proferida pela Suprema Corte é obrigatória para todos os juízes e tribunais. E, portanto, a declaração de inconstitucionalidade em um caso concreto traz como consequência a não aplicação daquela lei a qualquer outra situação, porque todos os tribunais estarão subordinados à tese jurídica estabelecida. De modo que a decisão, não obstante referir-se a um litígio específico, produz efeitos gerais, em face de todos (erga omnes). (BARROSO, 2012, p. 71). 

Dessa maneira, o stare decisis afirma-se, no controle de constitucionalidade estadunidense, como meio destinado a garantir a segurança jurídica do sistema normativo ao forçar a coerência entre o pensamento dos juízes e dos tribunais (com destaque especial para a Corte Suprema). Acorde com essa teoria, é conveniente evitar decisões conflitantes diante de casos análogos, de modo que a atividade judicial, em princípio, fica subordinada à ratio decidendi (tese jurídica) consubstanciada no núcleo do precedente vinculante.

Em se tratando de lei que tenha sido considerada inválida no controle de constitucionalidade brasileiro, o stare decisis teria a função de garantir a autoridade da ratio decidendi do julgado em matéria constitucional. Com isso, ampliar-se-ia a paralisia da eficácia normativa do ato inconstitucional para abranger situações análogas que, indo de encontro à tese jurídica consolidada, eventualmente demandassem a incidência da norma eivada de vício.  

Comparando o controle difuso de constitucionalidade no Brasil e nos Estados Unidos, Marcelo Novelino (2012, p. 265) escreve que  

Nos Estados Unidos, onde surgiu essa espécie de controle de constitucionalidade, atribui-se o devido peso aos precedentes dos tribunais superiores (stare decisis), considerados vinculantes para os tribunais inferiores (binding effect). Diferente, portanto, do que ocorre no Brasil, onde as decisões proferidas no controle difuso, em tese, têm apenas efeitos inter partes e não vinculam os juízes e tribunais inferiores.

A menção feita pelo autor ao binding effect reporta-se à classificação dicotômica dos efeitos do stare decisis. Com efeito, segundo essa vertente do pensamento doutrinário, a vinculação obrigatória aos precedentes judiciais apresenta-se de duas formas:

a) stare decisis horizontal: a ratio decidendi firmada no precedente é de observância obrigatória pelo tribunal que a formulou, isto é, o tribunal deve obediência aos seus próprios precedentes; 
     
b) stare decisis vertical (binding effect): a ratio decidendi firmada no precedente é de observância obrigatória pelos tribunais hierarquicamente inferiores.

É preciso salientar que a classificação dicotômica - que separa o stare decisis em horizontal e vertical - é apenas uma das possíveis correntes do pensamento doutrinário sobre o assunto. Posto que a mais conhecida, há juristas que dela divergem, buscando diferenciar o conceito de stare decisis do de precedent, como anota Marinoni (2011, p. 27):

De regra, o termo stare decisis significa tanto a vinculação, por meio do precedente, em ordem vertical (ou seja, como representação da necessidade de uma Corte inferior respeitar decisão pretérita de Corte superior), como horizontal (a Corte respeitar decisão anterior proferida no seu interior, ainda que a constituição dos juízes seja alterada). Esta é a posição adotada, entre outros, por Neil Duxbury e Melvin Aron Eisenberg. Em outra senda, há aqueles que optam por distinguir o termo stare decisis de precedent, como Frederik Schauer, para quem, "tecnicamente, a obrigação de uma corte de seguir decisões prévias da mesma corte é dita como sendo stare decisis (...), e o termo mais abrangente precedent é usado para se referir tanto à stare decisis, quanto à obrigação de uma corte inferior de seguir decisões de uma superior."  

Adaptando-se o stare decisis anglo-saxão ao Brasil, é possível identificar, mutatis mutandis, alguns elementos da doutrina que advoga a vinculação obrigatória dos precedentes judiciais no controle de constitucionalidade brasileiro. A título de exemplo, o stare decisis em sentido horizontal corresponderia à coisa julgada erga omnes em matéria constitucional, na medida em que impede a rediscussão da matéria pelo Supremo Tribunal Federal (MARINONI, 2007). Já o stare decisis em sentido vertical (ou binding effect) corresponderia ao efeito vinculante que emana das decisões prolatadas pelo STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade, o que permitiria indicar sua previsão no § 2º do art. 102 da Constituição:

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Seja como for, no Brasil ou nos Estados Unidos, o mote inspirador do stare decisis não muda: é preciso respeitar a autoridade das decisões pretéritas, isto é, do direito jurisprudencial.  

3 - A influência da teoria do stare decisis nas tradições da common law e da civil law

É relevante assinalar que a teoria do stare decisis é uma construção doutrinária tipicamente associada aos modelos judiciais adeptos da tradição da common law. A associação é correta, uma vez que tais sistemas jurídicos estruturam-se derredor do respeito à eficácia vinculante (e não meramente persuasiva, isto é, que não obriga os juízes) dos precedentes judiciais. Contudo, tal constatação não pode conduzir ao equívoco de se considerar que o funcionamento da common law depende integralmente do stare decisis. Na verdade, a pesquisa histórica revela que a tradição da common law é bem anterior à doutrina dos precedentes. Como anota Luiz Guilherme Marinoni (2011, p. 33),

[...] não há que se confundir common law com stare decisis. Ora, o common law, compreendido como os costumes gerais que determinavam o comportamento dos Englishmen, existiu, por vários séculos, sem stare decisis e rule of precedent.
 
Como escreve Simpson, qualquer identificação entre o sistema do common law e a doutrina dos precedentes, qualquer tentativa de explicar a natureza do common law em termos de stare decisis, certamente será insatisfatória, uma vez que a elaboração de regras e princípios regulando o uso dos precedentes e a determinação e aceitação da sua autoridade são relativamente recentes, para não se falar da noção de precedentes vinculantes (binding precedents), que é mais recente ainda. Além de o common law ter nascido séculos antes de alguém se preocupar com tais questões, ele funcionou muito bem como sistema de direito sem os fundamentos e conceitos próprios da teoria dos precedentes, como, por exemplo, o conceito de ratio decidendi.       
 
A observação de Marinoni, com apoio na doutrina estrangeira, permite concluir que o direito inglês, fundado no sistema da common law, não dependeu historicamente do stare decisis para regular as relações sociais. Em consequência disso, é aceitável compreender a doutrina dos precedentes, especialmente os de caráter obrigatório, qual uma técnica discernível e assimilável até mesmo pelo sistema da civil law.  

Essa aproximação entre as tradições anglo-saxã (common law) e romano-germânica (civil law), a permitir a aplicação do stare decisis em sistemas nos quais a eficácia do precedente sempre foi eminentemente persuasiva (não vinculante), tem influenciado incontestavelmente o direito brasileiro. A impressão é a de que o legislador, no afã de realizar a distribuição eficiente da justiça em prazo razoável, tem optado cada vez mais pela adoção de técnicas que estimulem o efeito vinculante dos precedentes. Dessa maneira, evita-se um duplo inconveniente: o da insegurança jurídica (potencialidade de decisões conflitantes) e o da perda da força normativa da Constituição (consequência do vitupério às teses jurídicas consolidadas no STF).

Nesse sentido, Didier (2012, p. 393) exemplifica hipóteses em que o legislador brasileiro dá sinais claros de sua progressiva simpatia pela teoria do stare decisis:

No Brasil, há algumas hipóteses em que os precedentes têm força vinculante - é dizer, em que a ratio decidendi contida na fundamentação de um julgado tem força vinculante: (i) a "súmula vinculante" em matéria constitucional, editada pelo Supremo Tribunal Federal na forma do art. 103-A, da Constituição Federal, e da Lei Federal 11.417/2006, tem eficácia vinculante em relação ao próprio STF, a todos os demais órgãos jurisdicionais do país e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal; [...] (ii) o entendimento consolidado na súmula de cada um dos tribunais tem força vinculante em relação ao próprio tribunal; (iii) em função da "objetivação" do controle difuso de constitucionalidade, pensamos que os precedentes oriundos do Pleno do Supremo Tribunal Federal, em matéria de controle difuso de constitucionalidade, ainda que não submetidos ao procedimento de consolidação em súmula vinculante, têm força vinculante em relação ao próprio STF e a todos os demais órgãos jurisdicionais do país; (iv) decisão que fixa a tese para os recursos extraordinários ou especiais repetitivos (arts. 543-B e 543-C, CPC).  

Sobre a estreita relação que há entre o stare decisis e a eficácia vinculante das súmulas do STF, André Ramos Tavares (2007 apud LENZA, 2012, p. 799) leciona que 

o chamado precedente (stare decisis) utilizado no modelo judicialista, é o caso já decidido, cuja decisão primeira sobre o tema (leading case) atua como fonte para o estabelecimento (indutivo) de diretrizes para os demais casos a serem julgados. Esse precedente, como o princípio jurídico que lhe servia de pano de fundo, haverá de ser seguido nas posteriores decisões como paradigma (ocorrendo, aqui, portanto, uma aproximação com a ideia de súmula vinculante brasileira).

Logo se percebe que não são poucos os instrumentos disponíveis no ordenamento jurídico do País para assegurar a prevalência das decisões tomadas pela Suprema Corte.

4 - Conclusão

Todas essas observações ilustram o que parece ser uma tendência irrefreável do direito  jurisprudencial contemporâneo: o reconhecimento do efeito vinculante dos precedentes judiciais. É por esse motivo que há cada vez mais uma aproximação, no sentido de uma influência recíproca, dos modelos da common law e da civil law. Este último deixa-se influenciar acentuadamente pela doutrina que preconiza que seja dado o devido peso aos precedentes judiciais (doutrina dos precedentes), a impor um ideal de segurança jurídica identificado com a necessidade de congruência do direto jurisprudencial como um todo. Nessa toada, a teoria do stare decisis, que pressupõe o efeito vinculante (obrigatório) dos precedentes judiciais, é perfeitamente aplicável no Brasil. 

Em relação à sua aplicação ao controle de constitucionalidade brasileiro, a teoria do stare decisis coaduna-se com o ideário neoconstitucionalista, que inclui entre suas diretrizes o reconhecimento da força normativa da Constituição, ao não permitir que os fundamentos inspiradores das decisões do Supremo Tribunal Federal sejam desrespeitados pelos órgãos jurisdicionais hierarquicamente inferiores. Desse modo, creio seja correto associar a supremacia do texto constitucional, entre outros fatores, à estabilidade das decisões que o interpretam - o que quer dizer que a teoria do stare decisis, quando aplicada ao controle de constitucionalidade, cumpre ainda a relevante função de incentivar uma desejável uniformidade interpretativa da Constituição tendo por parâmetro a jurisprudência do STF.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 27 de jun. 2013.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 5º ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. 452 p.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16º ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. 1312 p.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2º ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 542 p.

______. Ações repetitivas e julgamento liminar. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 96, v. 858, p. 11-18, abr. 2007.  

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6º ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012. 1134 p.  

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