terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

USO DE CIGARROS E DANOS CAUSADOS AO FUMANTE: a responsabilidade do fabricante à luz do CDC e da jurisprudência do STJ


Em destaque, o Min. Luis Felipe Salomão, relator do REsp 1.113.804/RS no STJ 

1 - Introdução

A tutela dos direitos sociais à saúde e à segurança (CF, art. 6º) encontra um importante desdobramento na Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC). De acordo com esse diploma, há direitos básicos a que todos os consumidores fazem jus no Brasil. Um deles é precisamente o direito à segurança. 

Nos moldes da legislação consumerista, os direitos à saúde e à segurança devem ser assegurados em relação aos riscos proporcionados pelos produtos e serviços colocados no mercado de consumo. É o que dispõe o art. 6º, I, do CDC:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

O direito básico à saúde e à segurança do consumidor é dos mais relevantes. Fica fácil percebermos tal relevância ao pensarmos nas consequências que advém do seu descumprimento: um mercado em que produtos e serviços não se submetem a rigorosos controles de qualidade é fator de causação de danos ao consumidor em potencial. A ocorrência desses danos, que podem ser materiais, morais e até mesmo estéticos, por sua vez, ensejará a responsabilização do seu causador. É o que a lei denomina de responsabilidade pelo fato (ou defeito) do produto ou do serviço.

Fato ou defeito do produto ou do serviço são termos técnicos que remetem ao acidente de consumo. E acidente pressupõe estrago, avaria, prejuízo. No contexto, o prejudicado é o consumidor, que vê muita vez seus direitos básico à vida, à saúde e à segurança (CDC, art. 6º, I) desrespeitados pelos fornecedores. Os tribunais brasileiros têm-se deparado amiúde com casos dessa ordem. Abaixo, colho um exemplo, retirado da jurisprudência do STJ, que dá bem a dimensão da gravidade de que se pode revestir um acidente de consumo:

Direito do consumidor. Recurso especial. Ação de indenização por danos morais e materiais. Consumo de produto colocado em circulação quando seu prazo de validade já havia transcorrido. "Arrozina Tradicional" vencida que foi consumida por bebês que tinham apenas três meses de vida, causando-lhes gastroenterite aguda. Vício de segurança. Responsabilidade do fabricante. Possibilidade. Comerciante que não pode ser tido como terceiro estranho à relação de consumo. Não configuração de culpa exclusiva de terceiro.
- Produto alimentício destinado especificamente para bebês exposto em gôndola de supermercado, com o prazo de validade vencido, que coloca em risco a saúde de bebês com apenas três meses de vida, causando-lhe gastroenterite aguda, enseja a responsabilização por fato do produto, ante a existência de vício de segurança previsto no art. 12 do CDC.
- O comerciante e o fabricante estão inseridos no âmbito da cadeia de produção e distribuição, razão pela qual não podem ser tidos como terceiros estranhos à relação de consumo.
- A eventual configuração da culpa do comerciante que coloca à venda produto com prazo de validade vencido não tem o condão de afastar o direito de o consumidor propor ação de reparação pelos danos resultantes da ingestão da mercadoria estragada  em face do fabricante.
Recurso especial não provido. 
(STJ - REsp: 980860 SP 2007/0197831-1, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 23/04/2009, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/06/2009)

No caso concreto enfrentado pelo STJ, a circulação do produto alimentício infantil com prazo de validade vencido comprometeu a saúde dos lactentes que o consumiram. Ao atingir a higidez física dos bebês, restou caracterizado o prejuízo que ultrapassou os limites da baixa qualidade do bem de consumo; Em tais casos, tem-se o acidente de consumo propriamente dito (fato ou defeito), que, ao causar dano, oportuniza a reparação do direito à saúde e segurança lesados, mediante a concessão do pleito indenizatório.   

2 - A proteção à saúde e à segurança no Código de Defesa do Consumidor

É lógico que acidentes de consumo como o demonstrado pelo aresto acima não são de nenhuma maneira desejáveis. Por isso, o CDC reservou toda a seção I do seu capítulo IV para tratar da proteção à saúde e segurança do consumidor. O que se pretende é dar efetividade ao direito básico do art. 6º, I, evitando-se a colocação no mercado de produtos e serviços que possam vir a apresentar risco excessivo quando de sua fruição.   

Nesse sentido, o art. 8º do CDC dispõe o seguinte:

 Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.

Parágrafo único. Em se tratando de produto industrial, ao fabricante cabe prestar as informações a que se refere este artigo, através de impressos apropriados que devam acompanhar o produto.

Pela leitura do artigo, nota-se que o legislador impõe aos fornecedores a obrigação de zelar pela saúde e segurança dos consumidores. Ou seja, o mercado não opera de maneira absolutamente livre, devendo submeter-se a padrões de controle de qualidade. Indo ao encontro dessas premissas, os arts. 12 e 14 do CDC estipulam que a responsabilidade dos fornecedores de produtos e serviços apurar-se-á independentemente de culpa. In verbis (grifos meus):

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Significa dizer que, para efeito de responsabilização pelo acidente de consumo, é suficiente a comprovação do nexo causal entre o defeito do produto ou do serviço  e a ocorrência do dano, prescindindo-se da verificação do elemento subjetivo (dolo ou culpa). Trata-se de uma consequência notória da adoção da teoria do risco do empreendimento pelo Código de Defesa do Consumidor. Consoante essa teoria, a colocação de produtos ou serviços no mercado necessariamente cria risco de lesão aos direitos de terceiros, motivo pelo qual os fornecedores devem empenhar-se em assegurar os direitos básicos dos consumidores (vida, saúde, segurança, informação adequada e clara  etc.).

Contudo, o art. 8º supracitado não é norma absoluta. Portanto, admite exceções. E elas dizem respeito aos produtos e serviços que contenham a chamada periculosidade ou nocividade inerente. São situações nos quais o uso ou fruição do bem de consumo implica de per si algum tipo de risco ao usuário. Por exemplo: utensílios de cozinha, como facas e garfos, que podem ocasionar cortes ou furações; palitos de fósforo, que podem causar queimaduras etc. Todos esses casos remetem a produtos cuja funcionalidade própria pressupõe o risco de acidentes, mas que, por serem normais e previsíveis, não impedem a sua circulação no mercado consumidor. A única exigência feita pelo CDC é que o fornecedor preste as informações necessárias e adequadas acerca dos riscos inerentes.

3 - Do não cabimento de indenização por danos provocados pelo uso de cigarro
O busílis jurídico sobre o cigarro surge nesse contexto. Afinal, a questão consiste em saber se se trata de um produto de periculosidade inerente ou, ao revés, que apresenta periculosidade exagerada - que é quando o produto ou serviço apresenta alto grau de nocividade, de modo que a periclitação da saúde e segurança do consumidor não é afastada nem mesmo com a prestação de informações adequadas e claras pelo fornecedor. O caput do art. 10 do CDC fundamentaria a proibição de disponibilizar o cigarro:  

Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.

Acorde com esse raciocínio, ainda que as empresas informem ostensivamente o consumidor acerca dos riscos à saúde que o vício tabagístico pode acarretar no longo prazo (recorde-se das imagens de pessoas doentes nos maços), a periculosidade exagerada do cigarro impediria o afastamento da responsabilidade civil dos fabricantes pelos danos causados aos fumantes.  

Todavia, ao pesquisar a jurisprudência dos tribunais brasileiros a respeito do tema, constata-se a tendência majoritária em negar a procedência dos pedidos reparatórios de danos morais e materiais movidos pelos consumidores contra os representantes da indústria tabagista. Embora várias sejam as teses apresentadas, pode-se afirmar que o tirocínio pretoriano converge quase sempre para os seguintes argumentos:

     (a) o cigarro é um produto de periculosidade inerente;

     (b) não há nexo causal entre o consumo de cigarro e o dano à saúde do fumante;

     (c) o fabricante de cigarros exerce atividade lícita e cujo processo produtivo é até mesmo fiscalizado pelo Poder Público;

     (d) culpa exclusiva da vítima; e

     (e) o consumidor tem livre-arbítrio quanto à decisão de fumar.      

Escudados nesses argumentos, eis alguns exemplos de acórdãos prolatados por tribunais estaduais, a corroborar a tese do não cabimento de indenização ao consumidor pelos danos decorrentes do uso de cigarro (grifos meus):  

RESPONSABILIDADE CIVIL - REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS - PRODUÇÃO DE PROVA - DESNECESSIDADE - CERCEAMENTO DE DEFESA - NÃO OCORRÊNCIA - MALEFÍCIOS À SAÚDE CAUSADOS PELO USO DE CIGARRO - EMPRESA RESPONSÁVEL PELA FABRICAÇÃO DO PRODUTO - HÁBITO DE FUMAR - ESCOLHA CONSCIENTE DO FUMANTE - AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL - INDENIZAÇÃO INDEVIDA. - Inexistindo, no feito, necessidade de produção da prova reclamada, o seu indeferimento ante o julgamento antecipado da lide não caracteriza violação do princípio basilar da ampla defesa. - A empresa responsável pela fabricação de cigarros desenvolve atividade lícita, porquanto autorizada, disciplinada e fiscalizada pelo poder público e, uma vez disponibilizado o produto ao consumidor, este detém o livre-arbítrio para decidir se vale ou não a pena consumi-lo. - Na ação de indenização com fundamento na responsabilidade civil, a certeza há de vir na tríplice realidade, consistente no dano sofrido em decorrência do uso do produto nocivo à saúde, na culpa do fabricante do produto e no nexo de causalidade. A ausência de qualquer desses pressupostos impede o sucesso do pedido reparatório.
(TJ-MG 200000044637560001 MG 2.0000.00.446375-6/000(1), Relator: ELIAS CAMILO, Data de Julgamento: 03/02/2005, Data de Publicação: 26/02/2005)

EMENTA: DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DIREITO CIVIL - AÇÃO INDENIZATÓRIA - DOENÇA DECORRENTE DE USO CONTÍNUO DE CIGARRO - NÃO COMPROVAÇÃO DO NEXO DE CAUSALIDADE NECESSÁRIO À CONFIGURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA EMPRESA FABRICANTE DE CIGARRO - INAPLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ARTIGO 14 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR DIANTE DA INEXISTÊNCIA DE ATO ILÍCITO PRATICADO PELA APELANTE A ENSEJAR A REPARABILIDADE PELOS DANOS APONTADOS NA EXORDIAL - CONHECIMENTO E IMPROVIMENTO DO RECURSO E CONSEQÜENTE MANUTENÇÃO DA SENTENÇA A QUO. I - Não comprovado por meio dos instrumentos probatórios trazidos aos autos qualquer espécie de ato ilícito atribuído à empresa fabricante de cigarro no que tange à fabricação, comercialização ou publicidade do produto por ela fornecido, bem como pela não comprovação por exames médicos da relação de causa e efeito entre a atividade desenvolvida pela empresa apelada e o real estado de saúde em que se encontra o recorrente, não há falar em responsabilidade objetiva legalmente prevista no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, posto que, consequentemente, não demonstrado o nexo de causalidade a ensejar a reparabilidade pelos danos apontados na petição inicial da ação indenizatória em questão. II - Improvimento do Recurso.
(TJ-RN - AC: 24960 RN 2003.002496-0, Relator: Juiz Kennedi de Oliveira Braga(convocado), Data de Julgamento: 13/12/2004, 1º Câmara Civel, Data de Publicação: 19/02/2005)

EMENTA: CIVIL, CONSTITUCIONAL E CONSUMIDOR. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS À SAÚDE. MALEFÍCIOS À SAÚDE CAUSADOS PELO HÁBITO DE FUMAR CIGARROS. ALEGADA RESPONSABILIDADE DA EMPRESA FABRICANTE DO PRODUTO. PROPAGANDA ENGANOSA. OMISSÃO POR NÃO INFORMAR ACERCA DOS DANOS PROVOCADOS PELO FUMO. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL NÃO CONFIGURADA. HÁBITO DE FUMAR. LIVRE ARBÍTRIO. EXERCÍCIO DE VONTADE PRÓPRIA. APELO CONHECIDO E IMPROVIDO EM CONSONÂNCIA COM O PARECER DO PARQUET. PRECEDENTES TJ/RN, TJ/DFT, TJ/RS E TJ/SP.
(TJ-RN - AC: 28435 RN 2008.002843-5, Relator: Des. Vivaldo Pinheiro, Data de Julgamento: 12/08/2008, 1ª Câmara Cível)

RESPONSABILIDADE CIVIL. Pleito de reparação de dano moral fundada em doenças causadas pela prática de tabagismo. Sentença improcedente. Inconformismo do autor. Licitude da fabricação e comercialização de cigarros que indicam a falta de responsabilidade da empresa fabricante. Consumo de tabaco que se vincula ao livre arbítrio do autor, o qual, inevitavelmente, tem ciência dos malefícios que o uso continuado do cigarro poderia causar. Manutenção da sentença Recurso desprovido.
(TJ-SP - APL: 9247635592008826 SP 9247635-59.2008.8.26.0000, Relator: Ramon Mateo Júnior, Data de Julgamento: 05/09/2012, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/09/2012)

Na doutrina, Flávio Tartuce  manifesta sua oposição a essa tendência jurisprudencial predominante. Para tal autor, há de se reconhecer o cabimento da responsabilização das empresas de cigarro pelos danos causados aos fumantes. Assim, propõe que a responsabilidade da indústria tabagista deve ser aferida de conformidade com a teoria do risco concorrente. E Tartuce (2012, p. 213) argumenta:

A conclusão deste autor é a de que o problema do cigarro deve ser resolvido pela teoria do risco concorrente. (...) dois momentos distintos devem ser imaginados, para duas soluções do mesmo modo discrepantes. Atente-se para o fato de que as soluções são de divisões diferentes das responsabilidades, sem a atribuição do ônus de forma exclusiva a apenas um dos envolvidos.
 
De início, para aqueles que começaram a fumar antes da publicidade e da propaganda de alerta, o fator de assunção do risco deve ser diminuído ou até excluído, eis que não tinham conhecimento - ou não deveriam ter - de todos os males causados pelo fumo.
 
(...)
 
Por outra via, para aqueles que iniciaram o hábito mais recentemente - devidamente informados, sabendo e conhecendo os males do cigarro -, a situação é diferente. Inverte-se o raciocínio, uma vez que a maior carga de risco assumido se dá por parte do fumante. (...) Contudo, mesmo em casos tais não se pode admitir a culpa ou o fato exclusivo da vítima, havendo, na verdade, um risco concorrente.

(...)

Concluindo, a indenização deve ser fixada de acordo com os riscos assumidos pelas partes, aplicando-se a equidade e buscando-se o critério máximo de justiça. Um sistema justo, equânime e ponderado de responsabilidade civil é aquele que procura dividir os custos do dever de indenizar de acordo com os seus participantes e na medida dos riscos assumidos por cada um deles.  

Entretanto, o posicionamento de Tartuce é minoritário. A jurisprudência do STJ já está pacificada no sentido de que o fabricante de cigarros não tem responsabilidade pelos danos causados aos fumantes. Nesse sentido, o acórdão prolatado no julgamento do REsp 1.113.804/RS é paradigmático:

RESPONSABILIDADE CIVIL. TABAGISMO. AÇÃO REPARATÓRIA AJUIZADA POR FAMILIARES DE FUMANTE FALECIDO. PRESCRIÇÃO INOCORRENTE. PRODUTO DE PERICULOSIDADE INERENTE. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DEVER JURÍDICO RELATIVO À INFORMAÇÃO. NEXO CAUSAL INDEMONSTRADO. TEORIA DO DANO DIREITO E IMEDIATO (INTERRUPÇÃO DO NEXO CAUSAL). IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL.
1. Não há ofensa ao art. 535 do CPC quando o acórdão, de forma explícita, rechaça todas as teses do recorrente, apenas chegando a conclusão desfavorável a este. Também inexiste negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal de origem aprecia a questão de forma fundamentada, enfrentando todas as questões fáticas e jurídicas que lhe foram submetidas.
2. A pretensão de ressarcimento do próprio fumante (cuja prescrição é quinquenal, REsp. 489.895/SP), que desenvolvera moléstias imputadas ao fumo, manifesta-se em momento diverso da pretensão dos herdeiros, em razão dos alegados danos morais experimentados com a morte do fumante. Só a partir do óbito nasce para estes ação exercitável (actio nata), com o escopo de compensar o pretenso dano próprio. Preliminar de prescrição rejeitada.
3. O cigarro é um produto de periculosidade inerente e não um produto defeituoso, nos termos do que preceitua o Código de Defesa do Consumidor, pois o defeito a que alude o Diploma consubstancia-se em falha que se desvia da normalidade, capaz de gerar uma frustração no consumidor ao não experimentar a segurança que ordinariamente se espera do produto ou serviço.
4. Não é possível simplesmente aplicar princípios e valores hoje consagrados pelo ordenamento jurídico a fatos supostamente ilícitos imputados à indústria tabagista, ocorridos em décadas pretéritas – a partir da década de cinquenta -, alcançando notadamente períodos anteriores ao Código de Defesa do Consumidor e a legislações restritivas do tabagismo.
5. Antes da Constituição Federal de 1988 - raiz normativa das limitações impostas às propagandas do tabaco -, sobretudo antes da vasta legislação restritiva do consumo e publicidade de cigarros, aí incluindo-se notadamente o Código de Defesa do Consumidor e a Lei n.º 9.294/96, não havia dever jurídico de informação que impusesse às indústrias do fumo uma conduta diversa daquela por elas praticada em décadas passadas.
6. Em realidade, afirmar que o homem não age segundo o seu livre-arbítrio em razão de suposta "contaminação propagandista" arquitetada pelas indústrias do fumo, é afirmar que nenhuma opção feita pelo homem é genuinamente livre, porquanto toda escolha da pessoa, desde a compra de um veículo a um eletrodoméstico, sofre os influxos do meio social e do marketing. É desarrazoado afirmar-se que nessas hipóteses a vontade não é livre.
7. A boa-fé não possui um conteúdo per se, a ela inerente, mas contextual, com significativa carga histórico-social. Com efeito, em mira os fatores legais, históricos e culturais vigentes nas décadas de cinquenta a oitenta, não há como se agitar o princípio da boa-fé de maneira fluida, sem conteúdo substancial e de forma contrária aos usos e aos costumes, os quais preexistiam de séculos, para se chegar à conclusão de que era exigível das indústrias do fumo um dever jurídico de informação aos fumantes. Não havia, de fato, nenhuma norma, quer advinda de lei, quer dos princípios gerais de direito, quer dos costumes, que lhes impusesse tal comportamento.
8. Além do mais, somente rende ensejo à responsabilidade civil o nexo causal demonstrado segundo os parâmetros jurídicos adotados pelo ordenamento. Nesse passo, vigora do direito civil brasileiro (art. 403 do CC/02 e art. 1.060 do CC/16), sob a vertente da necessariedade, a teoria do dano direto e imediato, também conhecida como teoria do nexo causal direto e imediato, ou teoria da interrupção do nexo causal.
9. Reconhecendo-se a possibilidade de vários fatores contribuírem para o resultado, elege-se apenas aquele que se filia ao dano mediante uma relação de necessariedade, vale dizer, dentre os vários antecedentes causais, apenas aquele elevado à categoria de causa necessária do dano dará ensejo ao dever de indenizar.
10. A arte médica está limitada a afirmar a existência de fator de risco entre o fumo e o câncer, tal como outros fatores, como a alimentação, álcool, carga genética e o modo de vida. Assim, somente se fosse possível, no caso concreto, determinar quão relevante foi o cigarro para o infortúnio (morte), ou seja, qual a proporção causal existente entre o tabagismo e o falecimento, poder-se-ia cogitar de se estabelecer um nexo causal juridicamente satisfatório.
11. As estatísticas - muito embora de reconhecida robustez – não podem dar lastro à responsabilidade civil em casos concretos de mortes associadas ao tabagismo, sem que se investigue, episodicamente, o preenchimento dos requisitos legais.

12. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, provido.
(STJ - REsp: 1113804 RS 2009/0043881-7, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 27/04/2010, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/06/2010).
 

De forma resumida, pode-se dizer que o aresto supracitado fundamentou a improcedência da reparação por danos morais pleiteada pelos familiares do consumidor falecido com base na ideia de que o cigarro é um produto de periculosidade inerente (mas não defeituoso), além de reconhecer o livre arbítrio do fumante falecido.

A argumentação expendida nesse julgado acabou por influenciar decisivamente o posicionamento do STJ em recursos especiais análogos. Vejamos algumas dessas ementas que constam no repertório de jurisprudência do tribunal (grifos meus):

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. FUMANTE. EXERCÍCIO DO LIVRE-ARBÍTRIO. RUPTURA DO NEXO DE CAUSALIDADE. VIOLAÇÃO AO ART. 535 NÃO CONFIGURADA.
1. Tendo o Tribunal a quo apreciado, com a devida clareza, toda a matéria relevante para a apreciação e julgamento do recurso, não há falar em violação ao art. 535 I e II do Código de Processo Civil.
2. É incontroverso nos autos que o Autor começou a fumar nos idos de 1.988, mesmo ano em que as advertências contra os malefícios provocados pelo fumo passaram a ser veiculadas nos maços de cigarro.
3. Tal fato, por si só, afasta as alegações do Recorrido acerca do desconhecimento dos malefícios causados pelo hábito de fumar, pois, mesmo assim, com as advertências, explicitamente estampadas nos maços, Miguel Eduardo optou por adquirir, espontaneamente, o hábito de fumar, valendo-se de seu livre-arbítrio.
4. Por outro lado, o laudo pericial é explícito ao afirmar que não pode comprovar a relação entre o tabagismo do Autor e o surgimento da Tromboangeíte Obliterante.
5. Assim sendo, rompido o nexo de causalidade da obrigação de indenizar, não há falar-se em direito à percepção de indenização por danos morais.
6. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.
(STJ - REsp: 886347 RS 2006/0159544-9, Relator: Ministro HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP), Data de Julgamento: 25/05/2010, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/06/2010)

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL E CONSUMIDOR. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS. TAGABISMO. EX-FUMANTE. DOENÇA E USO DE CIGARRO. RISCO INERENTE AO PRODUTO. PRECEDENTES. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECURSO PROVIDO.
1. "O cigarro é um produto de periculosidade inerente e não um produto defeituoso, nos termos do que preceitua o Código de Defesa do Consumidor, pois o defeito a que alude o Diploma consubstancia-se em falha que se desvia da normalidade, capaz de gerar uma frustração no consumidor ao não experimentar a segurança que ordinariamente se espera do produto ou serviço." (REsp 1.113.804/RS, Relator em. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 24/6/2010).
2. Recurso especial provido.
(STJ - REsp: 1.197.660/SP, 2010/0105674-0, Relator: Ministro Raul Araújo, Data de Julgamento: 15/12/2011, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/08/2012).

Curiosamente, mutatis mutandis, os mesmos argumentos utilizados pelo STJ para negar a responsabilidade das empresas fabricantes de cigarro pelos danos causados aos fumantes foram empregados pela Corte para afastar pedido de indenização similar, movido contra empresa fabricante de bebida alcoólica. Eis o acórdão:  

RECURSO ESPECIAL - DIREITO DO CONSUMIDOR - ACÓRDÃO QUE, POR MAIORIA DE VOTOS, ANULA SENTENÇA - NÃO CABIMENTO DOS EMBARGOS INFRINGENTES -PRECEDENTES - ARTIGOS 22, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, E 335 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA -INCIDÊNCIA DA SÚMULA 211/STJ - RESPONSABILIDADE CIVIL – FABRICANTE DE BEBIDA ALCOÓLICA - DEPENDÊNCIA QUÍMICA - INEXISTÊNCIA – ATIVIDADE LÍCITA - CONSUMO DE BEBIDA ALCOÓLICA - LIVRE ESCOLHA DO CONSUMIDOR -CONSCIÊNCIA DOS MALEFÍCIOS DO HÁBITO - NOTORIEDADE - PRODUTO NOCIVO, MAS NÃO DEFEITUOSO - NEXO DE CAUSALIDADE INEXISTENTE – FATO INCONTROVERSO - JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE - POSSIBILIDADE -DESNECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVA TÉCNICA - PRECEDENTES -CERCEAMENTO DE DEFESA - RECONHECIMENTO DE OFÍCIO - INVIABILIDADE -ESCÓLIO JURISPRUDENCIAL - RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO PARA JULGAR IMPROCEDENTE A DEMANDA INDENIZATÓRIA.
I - No v. acórdão que, por maioria de votos, anula a sentença, não há juízo de reforma ou de substituição, afastando-se, portanto, o cabimento de embargos infringentes (ut REsp 1091438/RJ, Rel. Min.Benedito Gonçalves, DJe de 03/08/2010).
II - Os artigos 22, do Código de Defesa do Consumidor, relativo à obrigatoriedade de fornecimento de serviços adequados, bem como o 335, do Código de Processo Civil, acerca da aplicação das regras de experiência, não foram objeto de debate ou deliberação pelo Tribunal de origem, restando ausente, assim, o requisito do prequestionamento da matéria, o que atrai a incidência do enunciado 211 da Súmula desta Corte.
III - Procedendo-se diretamente ao julgamento da matéria controvertida, nos termos do art. 257 do RISTJ e da Súmula n. 456 do STF, veja-se que embora notórios os malefícios do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, tal atividade é exercida dentro da legalidade, adaptando-se às recomendações da Lei n. 9.294/96, que modificou a forma de oferecimento, ao mercado consumidor, de bebidas alcoólicas e não-alcoólicas, ao determinar, quanto às primeiras, a necessidade de ressalva acerca dos riscos do consumo exagerado do produto.
IV - Dessa forma e alertado, por meio de amplos debates ocorridos tanto na sociedade brasileira, quanto na comunidade internacional, acerca dos malefícios do hábito de ingestão de bebida alcoólica, é inquestionável, portanto, o decisivo papel desempenhado pelo consumidor, dentro de sua liberdade de escolha, no consumo ou não, de produto, que é, em sua essência, nocivo à sua saúde, mas que não pode ser reputado como defeituoso.
V - Nesse contexto, o livre arbítrio do consumidor pode atuar como excludente de responsabilidade do fabricante. Precedente: REsp 886.347/RS, Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro, Desembargador Convocado do TJ/AP, DJe de 25/05/2010.
VI - Em resumo: aquele que, por livre e espontânea vontade, inicia-se no consumo de bebidas alcoólicas, propagando tal hábito durante certo período de tempo, não pode, doravante, pretender atribuir responsabilidade de sua conduta ao fabricante do produto, que exerce atividade lícita e regulamentada pelo Poder Público.
VII - Além disso, "(...) O juiz pode considerar desnecessária a produção de prova sobre os fatos incontroversos, julgando antecipadamente a lide" (REsp 107313/PR, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 17/03/1997, p. 7516.
VIII - Por fim, não é possível, ao Tribunal de origem, reconhecer, de ofício, cerceamento de defesa, sem a prévia manifestação da parte interessada, na oportunidade de apresentação do recurso de apelação. Precedentes.
IX - Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido para julgar improcedente a demanda.
(STJ - REsp: 1261943 SP 2011/0071073-2, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 22/11/2011, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/02/2012)

Nesse precedente, nota-se que, para efeito de afastar a responsabilidade civil consumerista, prevaleceu novamente a argumentação concernente ao exercício de atividade lícita por parte da empresa fabricante de bebida alcoólica. O julgado reafirmou ainda o papel decisivo do livre-arbítrio do consumidor na consumição do produto, não havendo que se confundir nocividade inerente com defeito ensejador de acidente de consumo. Somados, tais argumentos serviram, da mesma maneira que no caso da indústria tabagista, para sustentar a irresponsabilidade do fabricante de bebidas alcoólicas pelos danos experimentados pelo consumidor.

4 - Conclusão

À vista dos precedentes analisados, é possível afirmar que hoje a jurisprudência do STJ já está consolidada, no sentido de que a empresa fabricante de cigarros não é responsável pelos danos causados aos fumantes.

Para concluir dessa maneira, o Tribunal entende que o cigarro é um produto de periculosidade inerente, amoldando-se ao disposto no art. 8º do CDC. Não se trata, portanto, de um produto defeituoso, a atrair a produção de prejuízos extrínsecos, capazes de dar ensejo ao acidente de consumo merecedor de reparação. Na visão do STJ, o cigarro é tão somente um bem cuja fruição regular pressupõe algum grau de risco à saúde, mas que é perfeitamente assimilável pelo fumante que, no exercício do seu livre-arbítrio, consente com males advindos da consumição do tabaco.

Nesse sentido, as empresas fabricantes de cigarro não podem ser responsabilizadas, nos termos do que preconiza o art. 12 do CDC, pelos danos morais ou materiais que tenham sido experimentados pelos fumantes ou seus familiares, haja vista a não caracterização, na espécie, do acidente de consumo que acarreta dano indenizável.     

REFERÊNCIAS

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação nº 200000044637560001, Rel. Des. Elias Camilo, j. 03/02/2005, p. DJe 26/02/2005. Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 18 de jun. 2013.


BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Apelação nº 2008.002843-5, Rel. Des. Vivaldo Pinheiro, j. 12/08/2008. Disponível em: www.tjrn.jus.br. Acesso em: 18 de jun. 2013.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Apelação nº 2003.002496-0, Rel. Juiz Kennedi de Oliveira Braga (convocado), j. 13/12/2004, p. 19/02/2005. Disponível em: www.tjrn.jus.br. Acesso em: 18 de jun. 2013.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 9247635-59.2008.8.26.0000, Rel. Ramon Mateo Júnior, j. 05/09/2012, p. 07/09/2012. Disponível em: www.tjsp.jus.br. Acesso em: 18 de jun. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 980.860/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23/04/2009, p. DJe 02/06/2009. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 18 de jun. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.113.804/RS, T4 - Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 27/04/2010, p. DJe 24/06/2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 19 de jun. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 886.347/RS, T4 - Quarta Turma, Rel. Des. Convocado Honildo Amaral de Mello Castro, j. 25/05/2010, p. DJe 08/06/2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 19 de jun. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.197.660/SP, T4 - Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 15/12/2011, p. DJe 01/08/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 19 de jun. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.261.943/SP, T3 - Terceira Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 22/11/2011, p. DJe 27/02/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 19 de jun. 2013.

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 19 de jun. 2013.

TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim. Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. São Paulo: Método, 2012. 746 p.

2 comentários:

  1. Legal demais esse artigo, mas me surgiu uma dúvida: como se dá essas indenizações em países como EUA, ou mesmo em países europeus? Obrigado.

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    1. Olá Henrique. Confesso-te que não conheço a fundo a experiência europeia no Direito Comparado, porém nos Estados Unidos a jurisprudência não segue a linha do STJ (de considerar o cigarro um produto de periculosidade inerente) e costuma ser bastante rigorosa na condenação da indústria tabagista, cominando-lhe sanções pecuniárias pesadas. Cito, a propósito, o caso Philip Morris, precedente no qual fumantes do estado da Louisiana moveram ação coletiva em 1996 contra a fabricante de cigarros. O júri deu veredito favorável aos demandantes, acatando o pedido de indenização de US$ 270 milhões, obrigando a Philip Morris e outros três grandes fabricantes de cigarros a arcar com o valor, utilizando-o em programas antifumo. A decisão então foi suspensa em caráter monocrático pela Suprema Corte dos Estados Unidos, a mesma Corte que em 2011 reviu a suspensão e manteve a pesada condenação. Eis, enfim, apenas um precedente nos EUA que evidencia que os tribunais daquele país entendem a questão de maneira bem diversa do STJ. Abraços!

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