sábado, 13 de julho de 2013

OMISSÃO INCONSTITUCIONAL E LEI DE DEFESA DOS USUÁRIOS DE SERVIÇOS PÚBLICOS: estudo sobre os vácuos legislativos, as inconstitucionalidades por omissão e o ativismo judicial na ADO 24 MC/DF à luz da jurisprudência do STF

Em destaque, o Min. Dias Toffoli, relator da ADO 24 no STF

1 - Introdução

É muito comum pensarmos no Direito do Consumidor a partir da relação que é travada entre as partes contraentes no âmbito privado. Talvez pela circunstância de o cidadão buscar na iniciativa privada a satisfação de muitas necessidades cotidianas, há como que uma tendência natural a associar o estudo do subsistema jurídico consumerista ao fornecedor que atua no mercado na prestação de serviços privados.

Já aí surge um primeiro problema de ordem técnica. O legislador brasileiro não pretendeu restringir o conceito de fornecedor. Pelo contrário, quis foi ampliá-lo, de modo a abranger a pessoa privada, mas abrange também a pública, como revela o caput do art. 3º do CDC:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

O dispositivo é muito claro ao adjetivar a pessoa do fornecedor: física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira. Até mesmo os entes desprovidos de personalidade jurídica (entes despersonalizados) são considerados fornecedores, com vistas a autorizar a incidência das normas do CDC.

Dessa maneira, nota-se a amplidão do conceito de fornecedor na legislação consumerista, que não pode ficar adstrito às pessoas (naturais ou jurídicas) prestadoras de serviços privados. Em outras palavras: as regras previstas na Lei 8.078/90 aplicam-se também à prestação de serviços públicos.
 
2 - Lei de defesa do usuário de serviços públicos e a omissão do legislador: gênese de um vácuo legislativo

No Brasil, infere-se a preocupação do ordenamento jurídico com a qualidade na prestação dos serviços públicos mediante a leitura conjugada de uma série de normas. No plano constitucional, por exemplo, o art. 5º da CF/88 impõe que o Estado promova a defesa do consumidor, senão vejamos:

Art. 5º omissis
 
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

A localização do inc. XXXII no elenco de direitos fundamentais garantidos pela Constituição é propositada. Ela vai ao encontro da corrente doutrinária que classifica o direito do consumidor como um direito humano de terceira dimensão, por meio da qual os valores da fraternidade e da solidariedade entre os povos sobressaem aos demais. A nota distintiva dos direitos que compõem tal dimensão reside basicamente na sua titularidade coletiva, muita vez indefinida e indeterminável (SARLET, 2007, p. 58). Com isso, acentua-se o característico caráter difuso do conceito de consumidor, a reclamar, a fortiori, atenção especial do ordenamento positivo, já que os sujeitos da relação de consumo não são identificáveis com facilidade.  

Ciente disso, o legislador constituinte considerou a legislação relativa à responsabilidade por danos ao consumidor parte da competência legislativa concorrente (CF, art. 24, VIII). Assim, os Estados estão autorizados a legislar de maneira suplementar sobre a matéria, incumbindo à União o estabelecimento de normas gerais. O texto constitucional também impôs que a lei determinasse medidas capazes de esclarecer os consumidores acerca dos impostos incidentes sobre mercadorias e serviços (CF, art. 150, § 5º), o que veio a repercutir no acréscimo da expressão "tributos incidentes" no inc. III do art. 6º do CDC, com a redação dada pela Lei 12.741/12 (grifo meu):     

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
 
[...]

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

Além disso, a defesa do consumidor é um dos princípios regentes da ordem econômica no Brasil, consoante o art. 170, V, da Constituição:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
 
[...]

V - defesa do consumidor;

Tratando especificamente da prestação de serviços públicos, a Constituição de 1988 cuidou de estabelecer um grau mínimo de normatização na matéria. A primeira observação a ser feita diz respeito às concessões e permissões, quando se nota a preocupação do constituinte com a fixação legal dos direitos dos usuários paralelamente ao dever de mantença de um serviço adequado. Vejamos o que determina o art. 175: 

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II - os direitos dos usuários;

III - política tarifária;

IV - a obrigação de manter serviço adequado.

Por seu turno, o § 3º do art. 37 também merece ser sublinhado nesse contexto, uma vez que nele o constituinte ressalvou a necessidade de que a lei permita ao usuário participar da Administração Pública Direta e Indireta. Colaciono:

Art. 37. omissis
 
[...]
 
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: 

I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;

II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; 

III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.

Friso que a redação atual do § 3º do art. 37 da Constituição é produto de alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998. Até o advento da reforma, a redação original do parágrafo era muito pobre:

§ 3º - As reclamações relativas à prestação de serviços públicos serão disciplinadas em lei.

Faço propositalmente essa comparação entre as redações novel e antiga do § 3º do art. 37 da CF/88. Meu objetivo é acentuar a intenção que moveu o Poder Constituído Reformador. Não no sentido da democratização da Administração Pública, o que está claro, mas sobretudo no intento de ressaltar que a EC 19/98 quis intensificar a defesa do consumidor-usuário de serviços públicos, porquanto o asseguramento da sua participação na vida administrativa pressupõe três ordens de medidas: (1) o acesso aos registros e atos de governo, (2) a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função e (3) a regulamentação das reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral.  

Sucede que a emenda constitucional não se limitou a alterar a redação do § 3º do art. 37 para o fim de proteção dos usuários de serviços públicos. Ela foi além e, no seu art. 27, dispôs o seguinte:

Art. 27. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação desta Emenda, elaborará lei de defesa do usuário de serviços públicos.

Apesar de o artigo da emenda ter fixado expressamente um prazo, como sói acontecer, o Congresso Nacional não o cumpriu. Dessa forma, terminou por reprisar a omissão que já ocorrera em se tratando da elaboração do Código de Defesa do Consumidor, caso em que a Lei 8.078, ao ser promulgada apenas em 11 de setembro de 1990, descumpriu flagrantemente o prazo de cento e vinte dias estipulado pelo art. 48 do ADCT.

No caso do art. 27 da EC 19/98, a omissão que o escarnece é igualmente reprovável. Creio inclusive que o fator topológico influenciou bastante na conduta omissiva do Parlamento. Sim, pois, uma vez situado o dispositivo no corpo da emenda constitucional, e não no texto propriamente dito da Constituição, o art. 27 caiu facilmente no esquecimento. Nem a doutrina cuidou de denunciar o descumprimento desse malferido comando com a urgência e gravidade merecidas. O art. 27 da EC 19/98 tornou-se simplesmente um dispositivo natimorto, ignorado, obliterado.  

E é assim que a lei de defesa do usuário de serviços públicos jaz há anos no leito mórbido do esquecimento - gênese de um autêntico vácuo legislativo. O art. 27 da emenda está ali, perdido no meio da longa reforma administrativa. Por mais de uma década, está perdido e desprezado sem que nenhuma providência legiferante seja tomada - embora o próprio Congresso Nacional tenha estipulado o entremez de cento de vinte dias entre a data da promulgação da EC 19/98 e o limite de tempo necessário à elaboração da lei.
3 - Consequência do vácuo legislativo: a aplicação do CDC à prestação de serviços públicos na jurisprudência do STJ

Como a lei não veio, a defesa do usuário dos serviços públicos acabou prejudicada pela falta de regulamentação. A jurisprudência então interveio, a fim de suprir esse vácuo legislativo. Nesse sentido, consolidou-se o entendimento segundo o qual o conceito de serviço, tal qual previsto no Código de Defesa do Consumidor, abrange também o serviço público. Trata-se de posicionamento pacífico no STJ, como revela o aresto abaixo (grifo meu): 

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE ÁGUA. OFENSA AOSARTS. 130 E 335 DO CPC. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. RELAÇÃO ENTRE CONCESSIONÁRIA E USUÁRIO. APLICAÇÃO DO CDC. ENTENDIMENTO PACÍFICO DESTA CORTE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. REVISÃO DAS CONCLUSÕES DO TRIBUNAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. 1. Da leitura atenta do acórdão combatido depreende-se que os artigos 130 e 335 do Código de Processo Civil, bem como as teses a eles vinculadas, não foram objeto de debate pela instância ordinária, o que inviabiliza o conhecimento do especial no ponto por ausência de prequestionamento. 2. No caso, se entendesse a agravante que o acórdão fora omisso em qualquer dos pontos suscitados na ocasião da apelação, deveria ter apresentado embargos de declaração para que o Tribunal a quo pudesse sanar possível omissão e, se essa persistisse, imprescindível que fosse o recurso fundamentado em violação ao artigo 535 do Código de Processo Civil, razão pela qual subsiste patente a ausência de prequestionamento acerca da matéria. 3. É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que os serviços públicos prestados por concessionárias, como no caso dos autos, são regidos pelo Código de Defesa do Consumidor. 4. A inversão do ônus da prova em processo, no caso de relação consumerista, é circunstancia a ser verificada caso a caso, em atendimento à verossimilhança das alegações e hipossuficiência do consumidor, razão pela qual seu reexame encontra o óbice na Súmula7/STJ. 5. Agravo regimental não provido.
(STJ, T2 - Segunda Turma, AgRg no AREsp 183812/SP,  Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 06/11/2012, p. DJE 12/11/2012)

Na verdade, aprofundando um pouco mais o debate, poder-se-ia dizer que o STJ faz uma diferenciação entre serviços públicos próprios e impróprios. Aqueles são gerais, devendo ser financiados por tributos. Estes são individuais e remunerados por tarifa, o que autoriza a incidência do CDC. É o que se depreende a partir da leitura da ementa do seguinte julgado: 

ADMINISTRATIVO – SERVIÇO PÚBLICO CONCEDIDO – ENERGIA ELÉTRICA – INADIMPLÊNCIA.
1. Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem possibilidade de identificação dos destinatários. São financiados pelos tributos e prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde, educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com destinatários determinados ou determináveis. Neste caso, têm uso específico e mensurável, tais como os serviços de telefone, água e energia elétrica.
2. Os serviços públicos impróprios podem ser prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação, como previsto  na CF (art. 175). São regulados pela Lei 8.987/95, que dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços públicos.
3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por tarifa, sendo facultativa a sua utilização, que é regida pelo CDC, o que a diferencia da taxa, esta, remuneração do serviço público próprio.
4. Os serviços públicos essenciais, remunerados por tarifa, porque prestados por concessionárias do serviço, podem sofrer interrupção quando há inadimplência, como previsto no art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95. Exige-se, entretanto, que a interrupção seja antecedida por aviso, existindo na Lei 9.427/97, que criou a ANEEL, idêntica previsão.
5. A continuidade do serviço, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o enriquecimento sem causa, repudiado pelo Direito (arts. 42 e 71 do CDC, em interpretação conjunta).
6. Hipótese em que não há respaldo legal para a suspensão do serviço, pois tem por objetivo compelir o usuário a pagar multa por suposta fraude no medidor e diferença de consumo apurada unilateralmente pela Cia de Energia.
7. Recurso especial improvido.
(STJ, T2 - Segunda Turma, REsp 793.422/RS,  Rel. Min. Eliana Calmon, j. 03/08/2006, p. DJ 17/08/2006).

Coerente com a diferenciação conceitual operada entre serviços públicos próprios (gerais) e impróprios (individuais), o STJ tem reconhecido que nem todas as atividades prestadas pelo Estado atraem a incidência das normas do CDC. Assim, sempre que se verificar que determinado serviço público é geral, o usuário que se sentir prejudicado não poderá reivindicar proteção à luz das normas consumeristas. Tal é o caso dos serviços públicos de saúde, para a regência dos quais é inaplicável o CDC, haja vista sua remuneração decorrer das receitas tributárias. Colaciono alguns precedentes do Tribunal Superior a apontar para essa conclusão (grifos meus):   

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE REMUNERAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO-CONFIGURADA. DESPROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.
1. Hipótese de discussão do foro competente para processar e julgar ação indenizatória proposta contra o Estado, em face de morte causada por prestação de serviços médicos em hospital público, sob a alegação de existência de relação de consumo.
2. O conceito de "serviço" previsto na legislação consumerista exige para a sua configuração, necessariamente, que a atividade seja prestada mediante remuneração (art. 3º, § 2º, do CDC).
3. Portanto, no caso dos autos, não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao serviço de saúde prestado pelo hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento de garantia fundamental (art. 196 da CF).
4. Referido serviço, em face das próprias características, normalmente é prestado pelo Estado de maneira universal, o que impede a sua individualização, bem como a mensuração de remuneração específica, afastando a possibilidade da incidência das regras de competência contidas na legislação específica. 5. Recurso especial desprovido.
(STJ, REsp 493.181/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Denise Arruda, j. 15/12/2005, p. DJ 01/02/2006).

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. HOSPITAL DA POLÍCIA MILITAR. ERRO MÉDICO. MORTE DE PACIENTE. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. FACULTATIVA.
1. Os recorridos ajuizaram ação de ressarcimento por danos materiais e morais contra o Estado do Rio de Janeiro, em razão de suposto erro médico cometido no Hospital da Polícia Militar.
2. Quando o serviço público é prestado diretamente pelo Estado e custeado por meio de receitas tributárias  não se caracteriza  uma relação de consumo nem se aplicam as regras do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes.
3. Nos feitos em que se examina a responsabilidade civil do Estado, a denunciação da lide ao agente causador do suposto dano não é obrigatória. Caberá ao magistrado avaliar se o ingresso do terceiro ocasionará prejuízo à celeridade ou à economia processuais. Precedentes.
4. Considerando que o Tribunal a quo limitou-se a indeferir a denunciação da lide com base no art. 88, do CDC, devem os autos retornar à origem para que seja avaliado, de acordo com as circunstâncias fáticas da demanda, se a intervenção de terceiros prejudicará ou não a regular tramitação do processo.
5. Recurso especial provido em parte.
(STJ, RESP 1.187.456/RJ, T1 - Primeira Turma, Rel. Min. Castro Meira, j. 15/12/2005, p. DJe 01/12/2010).
 
A tendência jurisprudencial, encampada pelo STJ, no sentido de utilizar o CDC para preencher o vácuo deixado pela não edição da lei de defesa dos usuários dos serviços públicos, sustenta-se em uma leitura sistêmica do próprio CDC. De fato, esse diploma apresenta vários dispositivos que conduzem à tese da sua aplicabilidade à prestação de serviços públicos. O art. 4º, VII, por exemplo, dispõe que racionalização e melhoria dos serviços públicos são princípios integrantes da Política Nacional das Relações de Consumo. Já o art. 6º, X, estatui que a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral é direito básico do consumidor. Seguindo esse raciocínio, a norma mais incisiva encontra-se no caput do art. 22 do códex: 

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Para Luiz Antônio Rizzatto Nunes (2007 apud TARTUCE, 2012, p. 98), o art. 22 "é de fundamental importância para impedir que prestadores de serviços públicos pudessem construir 'teorias', para tentar dizer que não estariam submetidos às normas do CDC". No fundo, porém, a consolidação da ratio decidendi no prisma sinalizado pelos precedentes supracitados é uma consequência notória do vácuo legislativo decorrente da não regulamentação dos direitos do usuário em face do prestador do serviço público.   

4 - Inobservância do dever constitucional de legislar: algumas premissas teoréticas sobre a inconstitucionalidade por omissão

Ainda que haja jurisprudência consolidada a aplicar o Código de Defesa do Consumidor na relação que o usuário trava com o prestador do serviço público, é indiscutível que isso não passa de medida paliativa frente ao problema que decorre da ausência de regulamentação do art. 27 da EC 19/98. Na realidade, ao não editar a lei de defesa do usuário de serviços públicos no prazo assinalado, o Congresso Nacional incorreu em manifesta omissão inconstitucional.       

A omissão legislativa inconstitucional pressupõe a inobservância de um dever constitucional de legislar, que resulta tanto de comandos explícitos da Lei Magna como de decisões fundamentais da Constituição identificadas no processo de interpretação. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 1076).

A omissão do Parlamento no cumprimento do seu dever constitucional de legislar arrosta a Constituição. Fere-a mortalmente, pois a carência da norma infraconstitucional impede o pleno exercício de direito previsto em norma constitucional. A inércia do legislador, por conseguinte, é fator que desencadeia uma modalidade específica de violação do texto constitucional: a inconstitucionalidade por omissão.

Não é apenas a ação do Estado que pode ofender a Constituição. Deveras, a inércia do Poder Público e o silêncio legislativo igualmente podem conduzir a uma modalidade específica de ilegalidade definida, pelo direito contemporâneo, como inconstitucionalidade por omissão. (CLÈVE, 2000, p. 51).

É impossível esconder a inconstitucionalidade da conduta omissiva do legislador. Diante do art. 27 da EC 19/98, não só não editou a lei em comento no prazo de cento e vinte dias, como vem ignorando-a há mais de uma década. Parece até que, com a jurisprudência firmando-se em reconhecer a existência de relação de consumo, a envolver usuário e prestador de serviço público, o legislador pressupôs que tudo estaria resolvido. Mas não é bem assim. Há casos em que os tribunais afastam a incidência do CDC. Serviços públicos próprios ou gerais, por exemplo, não são regidos pelas normas da legislação consumerista, conforme precedentes do STJ. Além disso, mesmo quando o intérprete do direito socorre-se às normas do Direito do Consumidor, a fim de suprir o vácuo legislativo, deve fazê-lo subsidiariamente, porquanto a satisfação do direito fundamental do usuário não coaduna em plenitude com a invocação do máximo benefício individual possível à luz do microssistema jurídico consumerista.  

Esse é o fundamento pelo qual o direito do consumidor se aplica subsidiariamente aos serviços públicos. O direito do consumidor foi concebido como instrumento de defesa daquele que se encontra subordinado ao explorador de atividades econômicas, organizadas empresarialmente para a produção e apropriação do lucro. O serviço público é um instrumento de satisfação dos direitos fundamentais, em que as condições unilateralmente fixadas pelo Estado refletem o modo de satisfazer o maior número possível de sujeitos, com o menor custo possível.

O regime de direito público, que se traduz em competências estatais anômalas, é indispensável para assegurar a continuidade, a generalidade, a adequação do serviço público. Se cada usuário pretendesse invocar o maior benefício individual possível, por meio das regras do direito do consumidor, os efeitos maléficos recairiam sobre outros consumidores. 

Em suma, o direito do consumidor não pode ser aplicado integralmente no âmbito do serviço público por uma espécie de solidariedade entre os usuários, em virtude da qual nenhum deles pode exigir vantagens especiais cuja fruição acarretaria a inviabilização de oferta do serviço público em favor de outros sujeitos. (JUSTEN FILHO, 2005, p. 493).    

Que fazer nessas situações? Como deve agir o usuário de serviço público prestado com qualidade deficiente, aquém do aceitável? É razoável ignorar que a prestação de serviços públicos adequados é missão fundamental do Estado na salvaguarda dos cidadãos? 

Evidentemente, essas perguntas não podem ser respondidas por um Parlamento omisso. Seria uma ingenuidade graciosa supor que pudesse sair de forma espontânea da sua omissão. Para isso, é preciso recorrer à medida judicial, pois é flagrante que a não edição da lei de defesa do usuário dos serviços públicos está a prejudicar o cidadão perante o Poder Público, dado que o Código de Defesa do Consumidor não pode ser aplicado indiferenciadamente a toda e qualquer prestação de serviço público. "Ocorre, então, o pressuposto para a propositura de uma ação de inconstitucionalidade por omissão, visando obter do legislador a elaboração da lei em causa." (SILVA, 2007, p. 48).

5 - O ativismo judicial na jurisprudência do STF: análise contextual da decisão monocrática proferida na ADO 24 MC/DF 

O Conselho Federal da OAB apercebeu-se da postura omissiva do legislador. Em boa hora, portanto, ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 24 (ADO 24), com pedido de medida cautelar, a fim de que o Supremo Tribunal Federal reconhecesse a omissão do Congresso em tornar efetiva norma constitucional, declarasse a mora legislativa e desse prazo ao Parlamento para votar o projeto de lei regulamentador do art. 27 da EC 19/98.

O processo foi distribuído ao Relator, Min. Dias Toffoli, que, no dia 01 de julho de 2013, deferiu em parte, ad referendum do Plenário, a medida cautelar pleiteada na ADO 24.

Nesse sentido, pela relevância da argumentação, é conveniente citar alguns trechos dessa decisão monocrática (grifos do autor):    

Com efeito, a cláusula constitucional inscrita no art. 27 da EC nº 19, de 1998, para além de proclamar uma garantia social dos direitos dos usuários dos serviços públicos, consubstanciou verdadeira imposição legiferante, a qual, dirigida ao Estado legislador, tem por finalidade vinculá-lo à efetivação de uma legislação destinada: (a) a assegurar a prestação de serviços públicos de qualidade à coletividade e (b) a estabelecer mecanismos específicos de proteção e defesa dos usuários.
Ocorre que, passados exatos 15 (quinze) anos, ainda não foi editada a referida lei de defesa do usuário dos serviços públicos. É evidente, portanto, a existência de alargado lapso temporal (mais de uma década), a caracterizar, já neste juízo sumário, a inatividade do Estado em cumprir o inequívoco dever constitucional de legislar, o que resulta em afronta à Constituição. [...]
Ademais, embora eu reconheça que, em muitos casos, a inércia do Poder Legislativo possa ser considerada uma legítima decisão política de não deliberação, entendo que, na presente hipótese, a decisão política já foi tomada pelo Constituinte Derivado, quando determinou, no art. 27 da EC nº 19/98, a elaboração de lei de defesa do usuário de serviços públicos, inclusive com a fixação de prazo para a sua concretização (cento e vinte dias). Nesse caso, o legislador tem o dever jurídico de legislar, por força de expresso mandamento constitucional e, no caso de inércia, configurada está a omissão inconstitucional.
[...]
Em conclusão: a omissão legislativa, no presente caso, está a inviabilizar o que a Constituição da República determina: a edição de lei de defesa dos usuários de serviços públicos. A não edição da referida disciplina legal, dentro do prazo estabelecido constitucionalmente, ou mesmo dentro de um prazo razoável, consubstancia autêntica violação da ordem constitucional.  
[...]
Sendo assim, dada a manifesta e inequívoca omissão inconstitucional, que já perdura mais de uma década, é dever desta Suprema Corte determinar a imediata ação do Estado legislador para a concretização do direito constitucionalmente previsto no art. 27 da EC nº 19/98, eliminando-se, o mais rápido possível, o estado de inconstitucionalidade.
[...]
Nesses termos, acolho a sugestão do autor da demanda e fixo prazo razoável de 120 (cento e vinte) dias para a edição da lei em questão, tendo em vista ter sido esse o prazo definido no próprio art. 27 da EC nº 19/98.   

Malgrado se cuide de decisão monocrática, a argumentação do Ministro relator parece-me irretocável. Ela assinala a possibilidade de o texto constitucional ser vulnerado pela omissão do legislador. Mas não se limita a meras exortações. Avança e prevê prazo razoável de cento e vinte dias, a fim de que o Congresso Nacional omisso possa desincumbir-se de sua missão institucional, que é o exercício precípuo da atividade legislativa.

Analisando a argumentação exposta na ADO 24 MC/DF pela perspectiva eminentemente doutrinária, reconheço-a como mais um exemplo de decisão ativista na jurisprudência do STF. O que quero enfatizar é que, ao fixar prazo razoável para que o Congresso elabore a lei de defesa do usuário de serviços públicos, o concatenamento de ideias do Ministro relator revela uma atitude, consistente na "deliberada expansão do papel do Judiciário, mediante o uso da interpretação constitucional para suprir lacunas, sanar omissões legislativas ou determinar políticas públicas quando ausentes ou ineficientes." (BARROSO, 2012). A bem dizer, é nessa preocupação em suprir o vácuo legislativo deixado pela não regulamentação do art. 27 da EC 19/98 que se pode adjetivar de ativista a decisão monocrática. 

Nesse momento, é importante salientar que não é a primeira vez que o STF tende a uma postura claramente ativista frente às omissões inconstitucionais. É perceptível que a jurisprudência da Suprema Corte brasileira tem demonstrado perplexidade diante da inércia do Legislador, que, ao assim proceder, obsta a eficácia de normas constitucionais. Exemplo disso é a ementa do acórdão prolatado, já em 1996, na ADI 1458/DF (grifos meus): 

DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO .
- O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação .
- Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. SALÁRIO MÍNIMO - SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES VITAIS BÁSICAS - GARANTIA DE PRESERVAÇÃO DE SEU PODER AQUISITIVO .
- A cláusula constitucional inscrita no art. 7º, IV, da Carta Política - para além da proclamação da garantia social do salário mínimo - consubstancia verdadeira imposição legiferante, que, dirigida ao Poder Público, tem por finalidade vinculá-lo à efetivação de uma prestação positiva destinada (a) a satisfazer as necessidades essenciais do trabalhador e de sua família e (b) a preservar, mediante reajustes periódicos, o valor intrínseco dessa remuneração básica, conservando-lhe o poder aquisitivo .
- O legislador constituinte brasileiro delineou, no preceito consubstanciado no art. 7º, IV, da Carta Política, um nítido programa social destinado a ser desenvolvido pelo Estado, mediante atividade legislativa vinculada. Ao dever de legislar imposto ao Poder Público - e de legislar com estrita observância dos parâmetros constitucionais de índole jurídico-social e de caráter econômico-financeiro (CF, art. 7º, IV)-, corresponde o direito público subjetivo do trabalhador a uma legislação que lhe assegure, efetivamente, as necessidades vitais básicas individuais e familiares e que lhe garanta a revisão periódica do valor salarial mínimo, em ordem a preservar, em caráter permanente, o poder aquisitivo desse piso remuneratório. SALÁRIO MÍNIMO - VALOR INSUFICIENTE - SITUAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO PARCIAL .
- A insuficiência do valor correspondente ao salário mínimo, definido em importância que se revele incapaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e dos membros de sua família, configura um claro descumprimento, ainda que parcial, da Constituição da República, pois o legislador, em tal hipótese, longe de atuar como o sujeito concretizante do postulado constitucional que garante à classe trabalhadora um piso geral de remuneração (CF, art. 7º, IV), estará realizando, de modo imperfeito, o programa social assumido pelo Estado na ordem jurídica .
- A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.
- As situações configuradoras de omissão inconstitucional - ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política, de que é destinatário - refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário. INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO - DESCABIMENTO DE MEDIDA CAUTELAR .
- A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de proclamar incabível a medida liminar nos casos de ação direta de inconstitucionalidade por omissão (RTJ 133/569, Rel. Min. MARÇO AURÉLIO; ADIn 267-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), eis que não se pode pretender que mero provimento cautelar antecipe efeitos positivos inalcançáveis pela própria decisão final emanada do STF .
- A procedência da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, importando em reconhecimento judicial do estado de inércia do Poder Público, confere ao Supremo Tribunal Federal, unicamente, o poder de cientificar o legislador inadimplente, para que este adote as medidas necessárias à concretização do texto constitucional . - Não assiste ao Supremo Tribunal Federal, contudo, em face dos próprios limites fixados pela Carta Política em tema de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), a prerrogativa de expedir provimentos normativos com o objetivo de suprir a inatividade do órgão legislativo inadimplente.
(STF - ADI: 1458 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 23/05/1996, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 20-09-1996 PP-34531 EMENT VOL-01842-01 PP-00128)

Embora o tema das omissões inconstitucionais não seja inédito no repertório do STF, a novidade jurisprudencial fica por conta da superação do entendimento que, dantes, limitava as decisões da Corte à mera ciência do legislador quanto à sua mora. Hoje, especialmente após o advento da Lei 12.063/09, que acrescentou à Lei 9.868/99 a disciplina processual da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o STF tem sido muito mais rigoroso no combate das omissões inconstitucionais, tal qual se nota do aresto proferido na ADI 3682/MT (grifos meus):         

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO. INATIVIDADE DO LEGISLADOR QUANTO AO DEVER DE ELABORAR A LEI COMPLEMENTAR A QUE SE REFERE O § 4O DO ART. 18 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, NA REDAÇÃO DADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL NO 15/1996. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.
1. A Emenda Constitucional nº 15, que alterou a redação do § 4º do art. 18 da Constituição, foi publicada no dia 13 de setembro de 1996. Passados mais de 10 (dez) anos, não foi editada a lei complementar federal definidora do período dentro do qual poderão tramitar os procedimentos tendentes à criação, incorporação, desmembramento e fusão de municípios. Existência de notório lapso temporal a demonstrar a inatividade do legislador em relação ao cumprimento de inequívoco dever constitucional de legislar, decorrente do comando do art. 18, § 4º, da Constituição.
2. Apesar de existirem no Congresso Nacional diversos projetos de lei apresentados visando à regulamentação do art. 18, § 4º, da Constituição, é possível constatar a omissão inconstitucional quanto à efetiva deliberação e aprovação da lei complementar em referência. As peculiaridades da atividade parlamentar que afetam, inexoravelmente, o processo legislativo, não justificam uma conduta manifestamente negligente ou desidiosa das Casas Legislativas, conduta esta que pode pôr em risco a própria ordem constitucional. A inertia deliberandi das Casas Legislativas pode ser objeto da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
3. A omissão legislativa em relação à regulamentação do art. 18, § 4º, da Constituição, acabou dando ensejo à conformação e à consolidação de estados de inconstitucionalidade que não podem ser ignorados pelo legislador na elaboração da lei complementar federal.
4. Ação julgada procedente para declarar o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, em prazo razoável de 18 (dezoito) meses, adote ele todas as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever constitucional imposto pelo art. 18, § 4º, da Constituição, devendo ser contempladas as situações imperfeitas decorrentes do estado de inconstitucionalidade gerado pela omissão. Não se trata de impor um prazo para a atuação legislativa do Congresso Nacional, mas apenas da fixação de um parâmetro temporal razoável, tendo em vista o prazo de 24 meses determinado pelo Tribunal nas ADI nºs 2.240, 3.316, 3.489 e 3.689 para que as leis estaduais que criam municípios ou alteram seus limites territoriais continuem vigendo, até que a lei complementar federal seja promulgada contemplando as realidades desses municípios.
(STF - ADI: 3682 MT , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 09/05/2007, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-096 DIVULG 05-09-2007 PUBLIC 06-09-2007 DJ 06-09-2007 PP-00037 EMENT VOL-02288-02 PP-00277 RTJ VOL-00202-02 PP-00583)

É sintomático o estabelecimento de prazo razoável para o legislador vencer o estado de inércia deliberativa. Tem-se aí um avanço gigantesco na jurisprudência constitucional do STF, em ordem a assegurar a supremacia da Constituição - que, como vimos, é perfeitamente passível de violação pelo silêncio legislativo -, muita vez submetida ao risco do livre-alvedrio de um Poder Legislativo pouco comprometido com a eficácia das normas constitucionais.

A esse respeito, leciona Zeno Veloso (2003, p. 247):

Para que não se transformasse num patético "catálogo de intenções", deixando de ter aplicabilidade por causa da inércia ou da resistência do legislador e das autoridades incumbidas de editar leis ou atos reguladores de normas constitucionais que careçam destas providências, a Carta Magna tem alguns preceitos e instituiu um mecanismo de defesa com vistas a garantir a obediência a seus comandos, objetivando conferir efetividade aos seus propósitos e dar concretitude a seus princípios. Se a Constituição formal ou escrita não se transformar numa Constituição viva e real, não terá passado de uma "folha de papel". E não são poucos os espíritos retrógrados e passadistas que sonham com isto.
Há o risco de acastelarem-se nos órgãos deliberativos e executivos pessoas descompromissadas e até adversárias das conquistas e avanços estabelecidos pela Constituição. Somados a isso a preguiça, o atraso cultural, a falta de compromisso com os ideais democráticos, muitas normas constitucionais destituídas de eficácia automática ou imediata - e que por isso precisam de um ato complementar - não serão exequíveis. 

O importante é perceber que essa tendência jurisprudencial da Suprema Corte harmoniza-se aos postulados do ativismo judicial, porquanto a atuação do Poder Judiciário expande-se cada vez mais, a valer-se da jurisdição constitucional como instrumento garantidor da satisfação de demandas sociais prementes.

É claro que os precedentes ativistas do STF não podem ser vistos como regra, senão como exceções. Caso contrário, estaríamos a viver sob o jugo de um Estado de juízes, o que é inadmissível em uma democracia como a brasileira, estruturada derredor da separação de Poderes. Por isso, creio seja correto afirmar que o ativismo judicial - e a correlata expansão do papel republicano do Poder Judiciário - deve submeter-se a

[...] limites jurídico-constitucionais, ou seja, limites do direito constitucional positivo. Mesmo quando os juízes se podem assumir tendencialmente como "legisladores negativos" (ao declararem a inconstitucionalidade de normas) ou criadores de direito (ao elaborarem "normas" para a decisão do caso), os juízes estão vinculados à constituição e à lei, à distribuição funcional de competências constitucionais, à separação de competências e ao princípio democrático. É certo que estes limites jurídico-constitucionais não têm sido suficientes para evitar aquilo que os autores chamam de "activismo judicial" à sombra do desenvolvimento e complementação jurisprudencial do direito. O desenvolvimento tem passado - sobretudo no âmbito dos tribunais constitucionais e dos tribunais ordinários com funções constitucionais - pela descoberta de novas funções e novas dimensões do direito. (CANOTILHO, 2011, p. 144).

Entretanto, as exceções ativistas afiguram-se-me plenamente justificáveis em casos nos quais a inércia do legislador esteja a impedir a concretização de direitos assegurados por normas constitucionais. Tal é o caso do art. 27 da EC 19/98, que, mesmo após mais de uma década, permanece ineficaz ante a não edição da lei de defesa do usuário de serviços públicos.

Nessas circunstâncias, não vejo, de nenhuma maneira, como algo censurável o ativismo judicial do STF. Pelo contrário. Creio que a jurisprudência ativista da Corte Suprema, ao fixar, por exemplo, prazo razoável para que o legislador supra sua omissão inconstitucional, legitima-se enquanto instrumento assecuratório de direitos fundamentais e, em ultima ratio, da própria força normativa da Constituição.    

6- Conclusão

Não há dúvida de que o Supremo Tribunal Federal tende, de modo deveras acentuado, a consolidar uma jurisprudência de caráter notadamente ativista. Se entendermos o ativismo judicial qual uma mudança de postura, a conduzir a ampliação das missões tradicionalmente confiadas à jurisdição constitucional, observar-se-á uma ampliação no papel do Poder Judiciário enquanto instituição jurídica - na salvaguarda dos direitos fundamentais - e política - no controle de políticas públicas.

Nesse sentido, é correto afirmar que o combate às omissões inconstitucionais também integra o ideário do ativismo judicial. Afinal, é incontestável que a inércia do Poder Público também viola a Constituição, na medida em que a conduta omissa impede o exercício de direitos constitucionais, máxime aqueles que dependem de lei regulamentadora. 

Esse é o caso do usuário de serviços públicos no Brasil. Como a lei que viria a regulamentar sua defesa não foi elaborada, o entendimento pretoriano acabou por atenuar as consequências da inação legiferante. Com esse fim, consolidou-se a aplicação do CDC às relações que envolvam consumidor-usuário diante dos prestadores de serviços públicos.

Porém, o microssistema jurídico consumerista, apesar do seu caráter garantista, não satisfaz em plenitude a proteção especial a que faz jus o usuário de serviços públicos. O fundamento é que nem todas as situações permitem a incidência do CDC (caso dos serviços públicos próprios gerais, por exemplo). Consequentemente, há hipóteses em que o usuário acaba por ver-se desprotegido ante a inertia deliberandi do legislador. Ao fim e ao cabo, tem-se aí inarredável lesão ao texto constitucional.  

Por essa razão, entendo que o ativismo judicial na jurisprudência do STF tem se constituído em fator importante de garantia da supremacia e eficácia das normas da Constituição de 1988. Ao adotar postura mais rigorosa no combate a omissões inconstitucionais, inclusive a estabelecer prazo razoável para o legislador sanar sua omissão, tal como fez ao julgar a ADI 3682/MT, a Suprema Corte brasileira evidencia a importância da jurisdição constitucional para a sobrevivência do Estado Democrático de Direito, que, por ser um Estado Constitucional, não pode prescindir do asseguramento da força normativa da Constituição.

É nesse sentido que entendo perfeitamente justificável a decisão tomada na ADO 24 MC/DF, que estabeleceu prazo razoável de cento e vinte dias para que seja elaborada a lei de defesa do usuário de serviços públicos e, por conseguinte, seja suprida a omissão inconstitucional decorrente da falta de regulamentação do art. 27 da EC 19/98. Trata-se de mais um precedente ativista do STF, perfeitamente legítimo diante do inaceitável vácuo legislativo que tem sido tão prejudicial à defesa dos direitos do usuário de serviços públicos no Brasil.    

REFERÊNCIAS


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