quinta-feira, 15 de agosto de 2013

RT Comenta: DIREITO CIVIL



Prova: AGU-ADV (2008)
Tipo: Objetiva
Banca:
Hoje separei uma questão de Direito Civil ligada ao Direito dos Contratos para comentar. Apesar de não ser tão recente, o assunto que ela introduz (contratos sinalagmáticos, exceptio non adimpleti contractus, cláusula solve et repete) tem sido objeto de cobrança recorrente nos concursos públicos. Portanto, creio seja útil sua discussão. Além disso, em apreço ao leitor fiel do blogue do GERT, preparei uma pequena compilação de questões sobre o assunto, que serão devidamente analisadas e respondidas ao longo dos meus comentários sobre a cláusula solve et repete.

1 - Questão 98
(  ) Em virtude do princípio da autonomia de vontade, admite-se que seja inserida, no contrato de compra e venda de bem móvel, pactuado entre particulares, a cláusula solve et repete.
A cláusula solve et repete pode ser traduzida como "pague e depois reclame" ou "pague antes para discutir depois". Essa é uma noção aproximada do que a expressão quer juridicamente dizer. Seu entendimento preciso, todavia, pressupõe a exposição de algumas lições acerca do direito civil contratual, dando-se ênfase à exceção do contrato não cumprido. É o que ora me proponho a fazer, de maneira a tornar ainda mais didática minha abordagem do assunto.
Pela exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), é válida a recusa de uma das partes em não cumprir a prestação a que está contratualmente obrigada enquanto a outra parte não cumprir a sua prestação também. Por outras palavras, no contrato bilateral, as partes contraentes têm obrigações recíprocas, cabendo a ambas o dever de adimplemento simultâneo. Sendo assim, não se pode, a princípio, cogitar de que uma delas venha a exigir o cumprimento da obrigação da parte contrária sem antes ter cumprido a sua própria obrigação na avença.     
Note o leitor que estou a afirmar que a exceção do contrato não cumprido aplica-se aos contratos bilaterais. E por quê? Porque os contratos bilaterais são aqueles que, por definição, apresentam obrigações recíprocas. Daí a razão pela qual essa espécie de contrato também é conhecida doutrinariamente como contrato sinalagmático, expressão que se reporta ao sinalagma - isto é, o vínculo obrigacional reciprocamente considerado, em que os contratantes são, ao mesmo tempo, credor e devedor uns dos outros.      
No que diz respeito a essa classificação, os ensinamentos do civilista Silvio Rodrigues (Direito Civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade, vol. 3, 30º ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 29) são esclarecedores: 
Quando se fala, entretanto, em contratos bilaterais ou unilaterais, considera-se o fato de o acordo de vontades entre as partes criar, ou não, obrigações recíprocas entre elas. Se a convenção faz surgir obrigações recíprocas entre os contratantes, diz-se bilateral o contrato. Se produz apenas obrigações de um dos contratantes para com outro, chama-se unilateral.
 
Para exemplificar um contrato bilateral, a doutrina costuma recorrer ao contrato de compra e venda, onde o comprador e o vendedor estão reciprocamente obrigados. O primeiro é credor da coisa e devedor do preço, ao passo que o segundo é devedor da coisa e credor do preço. O sinalagma é justamente essa reciprocidade do vínculo obrigacional, a partir da qual se conclui que a obrigação de uma das partes consubstancia a razão de ser da outra.  
Desde já, é válido sublinhar que a classificação que biparte um ajuste em bilateral (sinalagmático) ou unilateral não é mero exercício teórico-doutrinário. Em verdade, há efeitos diferentes que decorrem de um contrato, conforme ele seja classificado em unilateral ou bilateral. Mas, no contexto em que escrevo, é suficiente que o leitor saiba o seguinte: no estudo da cláusula solve et repete, tal classificação deixa claro que a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus) aplica-se aos contratos bilaterais.     
Diante do exposto, vamos observar o que dispõe o art. 476 do Código Civil:
Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
 
A redação do artigo supra restringe sua eficácia expressamente aos contratos bilaterais, que, como vimos, são os negócios jurídicos em que o acordo de vontades faz surgir obrigações recíprocas entre os contratantes. Por isso, é coerente que, em regra, quando uma das partes for obrigada, em juízo ou fora dele, a cumprir sua prestação no contrato, o sistema jurídico lhe assegure a faculdade de opor a exceção do contrato não cumprido, de modo a garantir a simultaneidade na execução das obrigações pactuadas no ajuste. Dito de outra maneira: a exceção do contrato não cumprido evita que, num contrato bilateral, um dos contratantes seja obrigado a cumprir sua parte sem que o outro contratante cumpra a sua.   
Pois bem. Agora que o leitor já sabe o que é a exceptio non adimpleti contractus, assim como a que espécie de convenções ela se aplica, posso avançar-me no estudo da cláusula solve et repete propriamente dita.
De ordinário, quando uma das partes não cumpre sua obrigação, faculta-se à contraparte a possibilidade de opor a exceção do contrato não cumprido. Essa é a regra do ordenamento jurídico, inclusive com amparo no art. 476 do CC. Mas o mesmo ordenamento não veda que a autonomia negocial intervenha, para afastar a paralisia da exigibilidade que a exceção, enquanto instrumento de defesa, proporciona ao contratante. Ou seja, o Direito Civil brasileiro não proíbe que as partes convencionem a inaplicabilidade da exceção do contrato não cumprido. Na verdade, o código é silente a esse respeito, motivo pelo qual a doutrina admite a inserção da cláusula solve et repete nos contratos bilaterais.
Uma vez inserida tal cláusula no instrumento contratual, a consequência será a renúncia do contratante de opor a exceptio non adimpleti contractus. Dessa maneira, nos ajustes em que tenha sido estipulada, a cláusula solve et repete admite que uma das partes seja compelida a adimplir sua obrigação, ainda que a parte contrária não tenha cumprido simultaneamente a sua (não custa nada lembrar que solve et repete significa "pague e depois peça" ou "pague e depois reclame"). Em resumo: a cláusula solve et repete afasta a regra constante do art. 476 do CC.           
É evidente que a renúncia antecipada à exceção do contrato não cumprido deve ser tomada com temperamento. Afinal, ela afasta um importante mecanismo assecuratório do princípio da boa-fé nas relações contratuais (simultaneidade e reciprocidade no dever de adimplemento das obrigações pactuadas). Por isso, a cláusula solve et repete não se aplica a todos os contratos indistintamente. O próprio ordenamento cuida de estabelecer hipóteses em que a estipulação da cláusula é inválida. É o caso dos contratos de adesão, tal como previstos no art. 424 do CC, in verbis:   
Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.
 
Outro exemplo a ser citado é o dos contratos de consumo, aos quais, por expressa disposição de lei, é igualmente inaplicável a cláusula em comento. Nesse prisma, vejamos o teor do art. 51, I, do CDC (grifo meu):
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
 
[...]
 
No entanto, excetuadas essas hipóteses pontuais dentro do ordenamento, nada obsta a que as partes insiram no contrato a cláusula solve et repete. A bem dizer, a esfera da autonomia negocial é ampla; permite-se, assim, seja excluída a exceção do contrato não cumprido nas avenças sinalagmáticas celebradas à luz do Direito Civil. Daí ser possível concluir que, no Brasil, a máxima "paga e depois pede ou reclama" (solve et repete) é perfeitamente válida.
Como apontei no início destes comentários, a cláusula solve et repete tem sido objeto constante de cobrança nos mais variados concursos públicos pelo País. Dessa forma, em homenagem ao leitor que prestigia o blogue do GERT, preparei uma pequena compilação de questões sobre o tema. Vamos a elas:       
1) Prova IRB Brasil Resseguros S. A. (ESAF 2006):

30 - Assinale a opção correta.
 
a) Não responde o alienante pelos vícios redibitórios se a coisa for vendida em hasta pública.
b) O alienante não responde pela evicção se a venda houver sido realizada em hasta pública. 
c) A resilição unilateral do contrato é direito potestativo de um dos contratantes.
d) A cláusula da exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus) é compatível com a cláusula solve et repete.
e) Em homenagem ao princípio pacta sunt servanda e à soberania da vontade dos contratantes, pedra angular do Direito das Obrigações, deve ser conservado o contrato a despeito de causas supervenientes e alheias à vontade das partes.
 
O gabarito da banca apontou como certa a alternativa C. Contudo, o que me importa mesmo é observar que a alternativa D está incorreta. Sua incorreção consiste no fato de que a cláusula solve et repete implica o afastamento da exceção do contrato não cumprido. Logo, solve et repete e exceptio non adimpleti contractus são cláusulas mutuamente excludentes, não se podendo compatibilizá-las validamente num mesmo contrato.

Vamos a outra questão, desta vez exigida no Exame de Ordem da OAB:
2) Prova IV Exame de Ordem Unificado (FGV 2011 - Caderno Branco):
 
56 A redação da Súmula Vinculante 28 ("É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade do crédito tributário") tem por escopo impedir a adoção de que princípio jurídico?
 
(A) Venire Contra Factum Proprium.
(B) Exceção de contrato não cumprido.
(C) Solve et Repete.
(D) Contraditório e ampla defesa.

O gabarito apontou a alternativa C como sendo a correta. Segundo entendeu a banca organizadora, ao editar o enunciado nº 28 da sua súmula de jurisprudência vinculante, o STF quis impedir que o direito fundamental de acesso à justiça pudesse ser condicionado pela exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade da ação judicial com a qual o contribuinte tivesse por escopo discutir a exigibilidade do crédito tributário cobrado pela Fazenda Pública. Ou seja, o STF afastou a cláusula solve et repete, segundo a qual o contribuinte deve pagar (rectius: depositar previamente o valor do tributo) para só depois reclamar (rectius: impugnar em juízo a exigibilidade do crédito tributário). Mas, aqui entre nós, quem leu os votos que culminaram na redação da SV 28, sabe que a Suprema Corte editou o enunciado com efeito vinculante motivado pelo desejo de assegurar ao contribuinte, em sua plenitude, o princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV). O raciocínio a envolver a cláusula solve et repete foi uma inferência inovadora da FGV, o que me parece uma descabida "invenção de tese" sobre matéria jurisprudencial, em tudo a prejudicar o concurseiro, que se vê, muita vez, obrigado a adivinhar o pensamento da banca examinadora. 

Vamos analisar mais uma questão sobre o assunto:
3) Prova Juiz TJBA (CESPE 2012 - Caderno de Questões Tipo I)
 
Questão 1
A respeito das obrigações e dos contratos, assinale a opção correta.
(A) Ainda que o contrato seja oneroso, a intensidade da culpa do devedor que se negou à prestação será considerada para fins de apuração do quantum de sua responsabilidade contratual.
(B) Havendo boa-fé, a faculdade do credor para a resolução contratual pode ser limitada se o devedor tiver cumprido substancial parcela do contrato.
(C) Ao adotar de forma limitada o princípio da autonomia de vontade, a legislação brasileira não admite a inserção da cláusula solve et repete nos contratos.
(D) Caso o credor constate defeitos na qualidade da coisa entregue pelo devedor, poderá resolver o contrato por estar configurado inadimplemento relativo.
(E) Em contratos locatícios de imóvel residencial, a purgação da mora pelo locatário, depois de ajuizada ação de despejo, poderá ocorrer a qualquer tempo, desde que o pagamento seja integral.

O gabarito oficial apontou a alternativa B como correta. Contudo, no presente contexto, interessa é a análise da alternativa C, onde está escrito que é vedado o emprego da cláusula solve et repete como consequência de uma suposta limitação ao princípio da autonomia da vontade. Ora, tal conclusão seria verdadeira em Portugal, cujo ordenamento veda expressamente a renúncia antecipada à exceção do contrato não cumprido. No ordenamento brasileiro, entretanto, como procurei demonstrar nestes comentários, inexiste disposição expressa nesse sentido, ressalvados os casos específicos dos contratos de adesão e de consumo. Portanto, a alternativa C está errada, pois, nos marcos do Direito Civil brasileiro, a autonomia de vontade é ampla, a admitir a inserção da cláusula solve et repete nos contratos bilaterais.     

Agora vamos retomar a assertiva inicial, extraída de prova de concurso para o cargo de Advogado da União, organizada pelo CESPE-UNB no ano de 2008. Segundo a assertiva:
(  ) Em virtude do princípio da autonomia de vontade, admite-se que seja inserida, no contrato de compra e venda de bem móvel, pactuado entre particulares, a cláusula solve et repete.
A banca requereu o julgamento do item. E o candidato deveria julgá-lo correto. Como dantes apontei, o ordenamento jurídico brasileiro, diferentemente do lusitano, não veda, regra geral, a inserção da cláusula solve et repete nos contratos civis sinalagmáticos (bilaterais), ressalvadas as hipóteses do contrato de adesão (CC, art. 424) e do contrato de consumo (CDC, art. 51, I). Assim, num contrato de compra e venda de bem móvel cujo instrumento contenha a cláusula solve et repete, estaremos diante de uma situação na qual uma das partes poderá ser compelida validamente a entregar o bem móvel ainda que não tenha havido pagamento do preço pela contraparte. Portanto, a assertiva 98 da prova da AGU está correta.     

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