domingo, 31 de maio de 2015

RT Comenta: DIREITO ADMINISTRATIVO - Responsabilidade civil do Estado por ato legislativo


Prova: Procurador TCDF 2013
Tipo: Objetiva
Banca:
Hoje comentarei uma questão de Direito Administrativo sobre responsabilidade civil do Estado por ato legislativo.

1 - Questão 39

O Estado só responderá pela indenização ao indivíduo prejudicado por ato legislativo quando este for declarado inconstitucional pelo STF.

           O item proposto relaciona-se ao tema da responsabilidade civil do Estado, mas com uma peculiaridade importantíssima. Ele se refere à responsabilização estatal por ato legislativo.  

Inicialmente, o leitor deve recordar-se de que a responsabilidade do Estado pelos atos dos seus agentes pode apresentar-se em diferentes esferas (civil, penal e administrativa). Especificamente no campo civilístico, a doutrina reconhece que a responsabilidade pode decorrer de um contrato (responsabilidade contratual) ou de causa não prevista em contrato (responsabilidade extracontratual), que é quando inexiste relação jurídica prévia, a ligar o agente causador do dano e a vítima respectiva.  

Para o estudo do Direito Administrativo, interessa, sobretudo, a hipótese da responsabilidade civil extracontratual. Com efeito, as normas do ordenamento jurídico, que admitem o Estado como sujeito responsável, fazem-no com o objetivo de permitir a reparação dos danos que os agentes públicos, no exercício de função pública, venham a causar aos particulares. Nessas circunstâncias, mesmo não havendo um contrato anterior, o Estado responderá pelos danos causados em decorrência de sua atuação na disciplina da sociedade - o que significa dizer que a sua responsabilidade será extracontratual.  

Em regra, a responsabilidade extracontratual do Estado rege-se, no Brasil, pela teoria da responsabilidade objetiva. Segundo essa teorização, é suficiente à caracterização do dever de indenizar a comprovação de três elementos: 1) conduta; 2) dano; e 3) nexo causal. Diz-se “objetiva” tal teoria justamente por dispensar os elementos volitivos (culpa e dolo) na apuração do sujeito responsável. Além disso, mesmo que o ato administrativo seja lícito, a teoria objetiva impõe a reparação à vítima, uma vez que a mera relação causal entre o evento danoso e a conduta do agente do Poder Público já satisfaz seu tríplice pressuposto. 

No plano do direito constitucional positivo brasileiro, a teoria da responsabilidade civil objetiva do Estado encontra-se no art. 37, § 6º, da CF/88, in verbis:

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

            Não parece haver dúvidas de que o procedimento levado a cabo pela Administração Pública, caso venha a desencadear ato administrativo lesivo à esfera jurídica de terceiro, causará dano, o que, ato contínuo, imporá o dever de indenizar a vítima. Porém, será que esse mesmo raciocínio aplica-se aos atos legislativos? Será que o exercício da função legiferante também pode suscitar a figura do Estado enquanto sujeito responsável pela reparação do dano?     

A esse respeito, recordo ao leitor que, no Brasil, a atividade legislativa compreende a elaboração de alguns objetos, que são aqueles elencados no art. 59 da Constituição:

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

I - emendas à Constituição;

II - leis complementares;

III - leis ordinárias;

IV - leis delegadas;

V - medidas provisórias;

VI - decretos legislativos;

VII - resoluções.

            Sendo assim, sempre que o legislador estiver a se desincumbir da sua missão precípua, que é representar os interesses do povo, inovando o direito de acordo com os anseios da sociedade que o elegeu, deve-se entender que tal função não pode ser limitada pela ameaça do dever de indenizar. Daí o porquê de a doutrina brasileira afirmar que, em regra, não há responsabilidade civil do Estado pela produção de atos legislativos. Fundamenta-se esse posicionamento na certeza de que a criação do direito é feita por meio de leis lato sensu, que são atos normativos gerais e abstratos por excelência. Assim, destinando-se a regular as relações jurídicas ocorrentes na sociedade como um todo, afasta-se a possibilidade de dano indenizável a um particular específico. Acrescente-se igualmente que o Parlamento, ao desempenhar seu múnus legiferante, nos estritos limites das normas que regem o processo legislativo, encontra-se protegido pelo texto constitucional. O motivo é que o Poder Constituinte, ao disciplinar o exercício dos direitos políticos, estruturou o Estado nos moldes de uma democracia semidireta. Isto é, o Brasil adota uma democracia de caráter representativo-participativo, o que passa pela atuação do Poder Legislativo, cujos membros não podem ser tolhidos pela responsabilização civil quando do exercício de sua função típica (legislar). Assim, editado um ato legislativo constitucional (formal e materialmente), tem-se o desempenho regular da missão do Parlamento, o que calha com a democracia representativa brasileira. 

Nesse sentido, convém atentar para o que prescreve o parágrafo único do art. 1º, bem assim o art. 14, ambos dispositivos da Constituição de 1988:

Art. 1º omissis

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
 
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

             Acima, enfatizei que um dos fundamentos principais da irresponsabilidade estatal pelos atos legislativos é a sua constitucionalidade. Logo, se invertermos essa noção rudimentar, ficará fácil assimilar a ideia seguinte: admite-se a responsabilidade civil do Estado pela produção de leis inconstitucionais.
 
            A autorização de legislar, que é conferida pela Constituição ao Parlamento, justifica-se com o fim de permitir a criação do direito. Mas essa força criadora (normogenética) deve ser compatível com o texto constitucional. Por outras palavras, se o legislador produz norma inconstitucional, assim reconhecida pelo STF, declara-se implicitamente que o Poder Legislativo se desincumbiu mal do seu múnus (função de legislar). Logo, se atuou de maneira indevida, não está protegido pela Constituição. Disso decorre que eventuais danos decorrentes dos atos legislativos inconstitucionais atrairão o dever de reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas. Afinal, no fundo, a lei inconstitucional corresponde a um ato ilícito (ato normativo inválido à luz do parâmetro constitucional). E atos ilícitos geram o dever de indenizar. Na verdade, se nos detivermos no exame da teoria objetiva da responsabilidade civil do Estado, concluiremos que até mesmo procedimentos lícitos ensejam o dever de reparação. 

Logicamente, não se há de concluir que toda e qualquer lei será capaz de ensejar a responsabilização do ente estatal. É preciso notar que a lei, por ser um ato precipuamente de caráter geral e abstrato, só atrairá a responsabilidade civil do Estado naqueles casos em que for possível individualizar o dano, isto é, quando houver um administrado cuja esfera patrimonial, perfeitamente identificada, tenha sido atingida pelo ato normativo nulo do Poder Público. Obviamente, esse raciocínio é corolário do sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade brasileiro, nos termos do qual somente a lei declarada inconstitucional pelo STF pode oportunizar a responsabilidade civil do Estado por ato legislativo

Nesse sentido, é conveniente citar alguns precedentes do STJ sobre o assunto. O mais conhecido deles consta do acórdão lavrado no REsp 201.972/RS (Rel. Min. Demócrito Reinaldo, j. 17/06/1999, p. DJ 30/08/1999). Nesse julgamento, a Primeira Turma do STJ registrou o seguinte: 

O Estado só responde (em forma de indenização, ao indivíduo prejudicado) por atos legislativos quando inconstitucionais, assim declarados pelo Supremo Tribunal Federal.

              Idêntico raciocínio foi esposado pelo mesmo STJ quando do julgamento do REsp 571.645/RS (Inf. 297), ocasião em que a Segunda Turma do Tribunal consignou no item 2 da do acórdão: 

2. Apenas se admite a responsabilidade civil por ato legislativo na hipótese de haver sido declarada a inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado.

             Observe o leitor que o excerto do julgado refere-se ao controle concentrado, que é uma das modalidades pelas quais se classifica a técnica de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público. Especificamente, a modalidade em comento elege como critério a competência do órgão fiscalizador. Porém, vale lembrar que já há doutrina a defender que também em sede de controle difuso far-se-ia possível a invocação da responsabilidade estatal pelo ato legislativo declarado inconstitucional.  

De pacífico nessa matéria, no entanto, é somente a conclusão segundo a qual o Estado só responderá pela indenização ao individuo prejudicado pelo ato legislativo quando este for declarado inconstitucional pelo STF. Eis a assertiva constante do item em apreço, a indicar a sua correção. 

Todavia, embora o gabarito do CESPE-UNB tenha considerado correta a assertiva, é fato que ela poderia ensejar discussões. O que problematizo é o emprego do advérbio "só" na oração, o que poderia levar o leitor, equivocadamente, a concluir que se trata de hipótese única. Mas não é verdadeira essa conclusão. Aqui vale sublinhar que, além da já amplamente referida responsabilidade civil do Estado pelo ato legislativo inconstitucional, também se admite em doutrina a responsabilização estatal na hipótese de leis de efeitos concretos. 

Leis de efeitos concretos são atos formalmente normativos, mas materialmente administrativos. São leis, visto que imperativas (obrigatórias) e normativas (estipulam dever-ser), mas carecem dos requisitos da generalidade e da abstração - as características distintivas da lei stricto sensu, ou seja, da norma que se destina a regular as relações da coletividade como um todo. Se não são gerais, é porque seu destinatário é certo, determinado. Se não possuem abstração, é porque não podem ser repetidas (invocadas) indefinidamente no tempo, porquanto exaurem seus efeitos na disciplina da situação concreta que se propõem a regular. O exemplo recorrentemente apresentado nos livros de doutrina é o das leis orçamentárias. Outros bons exemplos podem ainda ser mencionados: lei que concede indenização a uma vítima de tortura durante a ditadura militar, leis de anistia, leis que fixam nomes de ruas.

Para ilustrar a argumentação, trago ao leitor um exemplo curioso de lei de efeito concreto: trata-se da Lei 12.286, promulgada em 13 de julho de 2010 pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No art. 1º desse diploma, lê-se o seguinte:   

Art. 1º  Em 27 de janeiro de cada ano, a cidade de Olinda, no Estado de Pernambuco, será reconhecida, durante esse dia, como a Capital Simbólica do Brasil.
                                             
            É evidente que a Lei 12.286/10 é uma lei de efeitos concretos. A uma, porque não possui generalidade (seu destinatário é certo, isto é, a cidade de Olinda, sita no Estado de Pernambuco). A duas, porque não possui abstração (outras cidades brasileiras não a podem invocar para o fim de se considerar "capital simbólica do Brasil").   

Na hipótese de responsabilidade civil do Estado pela edição de leis de efeitos concretos, valem as mesmas exigências já apontadas para o caso de lei declarada inconstitucional: é preciso que o particular prejudicado demonstre a ocorrência de dano à sua esfera patrimonial, de modo a evidenciar o nexo de causalidade entre os efeitos concretos da lei editada (que corresponde à conduta do ente político que criou o ato normativo) e o prejuízo suportado (dano).   

Em resumo, em se tratando de responsabilidade por atos legislativos, a regra é a de que não cabe responsabilização civil do Estado pela edição de leis, salvo em duas hipóteses: 1) leis inconstitucionais; 2) leis de efeitos concretos.   

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