sábado, 2 de abril de 2016

Da inaplicabilidade das regras de foro privilegiado aos magistrados aposentados segundo a jurisprudência do STF

Min. Ricardo Lewandowski, relator do RE 546.609/DF no STF
Ouvindo atualmente: "Edvard Grieg - Peer Gynt Suiten 1&2" (1987),
Göteborgs Symfoniker/ Neeme Järvi.



Entre as garantias funcionais do Poder Judiciário, estabelecidas na Constituição de 1988, encontramos aquelas que visam a assegurar a independência dos seus órgãos. São elas: a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídios. O texto constitucional também prevê garantias da na forma de vedações, as quais têm o objetivo de assegurar a imparcialidade dos membros da magistratura.

Todas essas garantias podem ser extraídas do art. 95 da CF/88:

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:

I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;

II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;

II - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I. 

Parágrafo único. Aos juízes é vedado:

I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;

II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;

III - dedicar-se à atividade político-partidária.

IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; 

V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. 

Somadas a essas garantias, o Poder Constituído ainda atribuiu aos membros do Poder Judiciário, no campo processual penal, o foro privilegiado, por entender que o cargo que estão a ocupar lhes asseguraria a prerrogativa de serem julgados não por um juízo de primeiro grau (juízo monocrático), tal como é a regra para todos os cidadãos, mas sim por instâncias judiciárias de segundo grau ou superiores.     
Dessa maneira, sistematizando as regras da Constituição sobre foro privilegiado dos membros do Poder Judiciário, é possível sublinhar o seguinte:

1)      Membros do STF e Tribunais Superiores (STJ, TST, TSE, STM): são processados e julgados pelo STF (CF, art. 102, I, b e c);

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;

c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;

2)      Membros dos TRFs, TREs, TRTs, TJs e do TJDFT: são processados e julgados pelo STJ (CF, art. 105, I, a);

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:

a)       nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;

3)      Juízes federais, juízes do trabalho e juízes-auditores da Justiça Militar da União: são processados e julgados pelo TRF da respectiva área de jurisdição (CF, art. 108, I, a);

Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:

I - processar e julgar, originariamente:

a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;

4)      Juízes estaduais e distritais: são processados e julgados pelo TJ respectivo (CF, art. 96, III);

Art. 96. Compete privativamente:

[...]

III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.

5)      Juízes eleitorais: são processados e julgados pelo TRE da respectiva área de jurisdição, pois a Constituição ressalvou a competência da Justiça Eleitoral para julgar os crimes dos juízes eleitorais diante do foro privilegiado nos TJs, de modo que prevalece nessa matéria a competência firmada no Código Eleitoral (CF, art. 96, III, in fine, c/c CE, art. 29, I, d). Como, no entanto, o CE restringiu aos crimes eleitorais a competência dos TREs para julgar juízes eleitorais, podemos concluir que:

1) juiz eleitoral pratica crime comum: foro privilegiado no TJ;

2) juiz eleitoral pratica crime eleitoral: foro privilegiado no TRE.   

Art. 96. Compete privativamente:
[...]
III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.


Art. 29. Compete aos Tribunais Regionais:

I - processar e julgar originariamente:

d)      os crimes eleitorais cometidos pelos juízes eleitorais.

Pois bem. Já vimos as regras de competência processual penal que determinam foro privilegiado para os membros do Poder Judiciário brasileiro. A questão que se impõe agora é saber se esse privilégio estende-se aos magistrados aposentados ou, em sentido contrário, restringe-se aos membros da carreira na ativa.

Esse tema foi objeto de julgamento pelo STF nos autos do RE 546.609/DF. Nesse recurso, um desembargador aposentado do TJDFT, acusado da prática de crime, sustentou que a garantia da vitaliciedade (CF, art. 95, I) somente poderia ser afastada por sentença judicial transitada em julgado, na qual tivesse sido declara a perda do seu cargo. Sendo assim, o recorrente sustentou que não sofrera qualquer condenação nesse sentido, e sim tinha se aposentado voluntariamente como desembargador, razão pela qual defendia que, por força da vitaliciedade, manter-se-ia o seu foro privilegiado de processo e julgamento no STJ.        

A analisar teoricamente a tese defendida nesse recurso, poderíamos concluir que o que o recorrente pretendia era, em verdade, incluir os desembargadores aposentados na expressão “os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal”, a conferir, desse modo, uma interpretação mais ampla à regra competencial do art. 105, I, a, da Constituição.  

Entretanto, o STF não concordou com a tese levantada pelo recorrente. Na Suprema Corte brasileira, prevaleceu o entendimento de que as garantias constitucionais de independência funcional dos órgãos do Poder Judiciário (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios) referem-se, única e exclusivamente, aos magistrados no efetivo exercício do cargo. Na mesma toada, as regras de foro privilegiado dos membros do Poder Judiciário têm por objetivo assegurar-lhes o pleno exercício das suas funções jurisdicionais, não se aplicando aos magistrados aposentados.    

Tal argumentação desenvolve-se a partir de algumas premissas conceituais. Em primeiro lugar, provimento é o ato administrativo pelo qual o servidor público é investido no exercício de cargo, emprego ou função. Na mesma linha de raciocínio, “provimento vitalício” é o ato administrativo que garante a permanência do servidor em cargo público do qual só poderá ser afastado por sentença judicial transitada em julgado. Consequentemente, a vitaliciedade aplica-se tão somente àqueles servidores integrantes dos quadros ativos da carreira pública.      

Agora, vejamos o acórdão do RE 546.609/DF:

PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO PENAL. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO. DESLOCAMENTO PARA O PRIMEIRO GRAU. SÚMULAS 394 E 451 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INAPLICABILIDADE. PROVIMENTO VITALÍCIO. GARANTIA CONFERIDA AOS SERVIDORES DA ATIVA DE PERMANECEREM NO CARGO. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
I – A vitaliciedade é garantia inerente aos magistrados e tem como objetivo prover a jurisdição de independência e imparcialidade.
II – Exercem a jurisdição, tão somente, magistrados ativos.
III – A aposentadoria do magistrado, ainda que voluntária, transfere a competência para processamento e julgamento de eventual ilícito penal para o primeiro grau de jurisdição.
IV – Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(STF, Tribunal Pleno, RE 546.609/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22/03/2012, p. DJe 30/05/2014).   

A partir desse precedente, podemos extrair uma interpretação constitucional restritiva das garantias da vitaliciedade e do foro privilegiado. Com efeito, tais garantias só se aplicam aos membros ativos da carreira da magistratura, uma vez que existem na Constituição como mecanismos que visam a salvaguardar a instituição judiciária como um todo, e não os seus membros, ocupantes temporários dos cargos do Poder Judiciário.

Logo, se as garantias existem para assegurar o exercício da função judicante de modo independente e imparcial, admitir sua extensão a magistrados aposentados – que, portanto, não exercem mais a judicatura - afigurar-se-ia um privilégio odioso, incompatível com a lógica constitucional que visa a garantir aos cidadãos um Poder Judiciário que exercite a jurisdição com independência e imparcialidade.        

REFERÊNCIAS


BRASIL. Código Eleitoral. Lei 4.737, de 15 de julho de 1965. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 02 de abr. 2016.


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 02 de abr. 2016.


BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 546.609/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22/03/2012, p. DJe 30/05/2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 02 de abr. 2016.

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