quinta-feira, 20 de setembro de 2012

DOS LIMITES DA COISA JULGADA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA: comentários ao enunciado 239 da súmula de jurisprudência do STF



Absens non dicitur reversurus.

Introdução

O enunciado 239, datado de 13 de dezembro de 1963, é um dos mais importantes da súmula de jurisprudência do STF. Nele encontramos importante disciplina quanto aos limites objetivos da coisa julgada em matéria tributária. Ei-lo:
 
STF, enunciado nº 239:
Decisão que Declara Indevida a Cobrança do Imposto - Exercício Determinado e Posteriores - Coisa Julgada
Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores.
 
Em uma primeira leitura, a redação causa espécie, pois não é fácil observar o discrime do qual se valeu o Supremo Tribunal Federal para admitir a limitação no tempo dos efeitos da coisa julgada em matéria tributária.
 
Por sinal, consoante a corrente majoritária da doutrina no campo do processo civil, coisa julgada é uma qualidade que se agrega à tutela jurisdicional prestada e entregue, de forma definitiva, ao jurisdicionado. Ainda de acordo com lição doutrinária muito difundida, o fenômeno pode apresentar-se em duas ordens qualitativas: coisa julgada formal e coisa julgada material. A primeira, também chamada de preclusão máxima, verifica-se após o trânsito em julgado da decisão judicial prolatada no processo, tornando-a imutável e indiscutível, seja porque foram interpostos e decididos todos os recursos cabíveis, seja porque não foi interposto nenhum recurso, seja porque já se procedeu ao reexame necessário naquelas sentenças que o reclamam enquanto condição impeditiva do trânsito em julgado (CPC, art. 475). A segunda forma-se pari passu com a primeira, isto é, após o trânsito em julgado e a consequente produção da coisa julgada formal, algumas decisões (não todas, mas apenas aquelas que tiverem sido proferidas em sede de cognição exauriente) também produzirão a coisa julgada material, a qual importa a indiscutibilidade e imutabilidade da res iudicata para além do processo em que originalmente proferida. Portanto, coisa julgada material é a qualidade que permite a uma decisão projetar-se sobre outras relações processuais, impedindo a rediscussão do que foi decidido em grau definitivo em processo anterior.

Sobre o assunto, Cândido Rangel Dinamarco (2005, p. 314) leciona que:

O mais elevado grau de imunidade a futuros questionamentos, outorgado pela ordem jurídica, é a autoridade da  coisa julgada material, que se restringe às sentenças de mérito (CPC, arts. 467 e 468). A própria Constituição a assegura (art. 5º, inc. XXXVI), primeiramente como afirmação do  poder estatal, não admitindo que os atos de exercício de um poder que é soberano por natureza possam ser depois questionados por quem quer que seja. Tal é o primeiro significado da final enforcing power em que se traduz a autoridade da coisa julgada material. Nem outros órgãos estatais, nem o legislador ou mesmo nenhum juiz, de qualquer grau de jurisdição, poderá rever os efeitos de uma sentença coberta pela coisa julgada e com isso alterar a situação concretamente declarada ou determinada por ela (CPC, art. 267, inc. V, e art. 301, inc. VI). Daí ser ela uma garantia constitucional, outorgada aos sujeitos em benefício da segurança das relações jurídicas e intangibilidade dos resultados do processo. Sem a coisa julgada, tais resultados poderiam ser revistos sucessivamente e muito menor seria a utilidade social da jurisdição porque deixaria sempre o caminho aberto para o reacender de conflitos.
 
É justamente no contexto do debate doutrinário derredor dos limites objetivos da coisa julgada que se insere o enunciado 239 da súmula de jurisprudência do STF. 

Origem histórica do enunciado 239 e de sua premissa teórica fundamental

Para entender o enunciado 239 da súmula do STF, é mister investigar o histórico dos precedentes que ensejaram sua formação. Assim, será possível identificar a ratio decidendi que o acompanha.

Entretanto, não se trata de tarefa muito fácil. Afinal, o enunciado em comento originou-se de dois precedentes: o AI 11.227 (DJ de 10.02.1945) e o RE 59.423 (DJ de 12.06.1970). Ambas as decisões são antigas, como se vê. De qualquer modo, o importante é notar que os julgados que impulsionaram a redação do enunciado originaram-se de uma premissa teórica fundamental: a coisa julgada em matéria tributária pode ser limitada no tempo.

Mas por quê?

A Corte Suprema brasileira, nesses precedentes antigos, houve por bem assumir posição no sentido de que as sentenças que eventualmente afetassem situações jurídicas individuais e concretas circunscrever-se-iam ao tempo em que ocorridos os fatos jurídicos tributários.
 
O exemplo mais contundente a guiar semelhante raciocínio pode ser encontrado nas demandas cujo pedido pleiteie direito potestativo de anulação do lançamento tributário, especialmente em se tratando de embargos à execução fiscal. Em tais casos, como o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, era natural que não se estendessem os efeitos preclusivos da coisa julgada material para os lançamentos posteriores. Vejamos a redação do art. 144 do CTN (grifo meu):
 
Art. 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada.
 § 1º Aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades administrativas, ou outorgado ao crédito maiores garantias ou privilégios, exceto, neste último caso, para o efeito de atribuir responsabilidade tributária a terceiros.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica aos impostos lançados por períodos certos de tempo, desde que a respectiva lei fixe expressamente a data em que o fato gerador se considera ocorrido.
 
Nesse ponto, deve-se notar que o lançamento tributário reporta-se ao exercício financeiro no qual é realizado. Ou seja, ele é independente dos lançamentos que serão realizados posteriormente, não ficando a eles vinculado. Numa palavra: o lançamento vale para o exercício no qual foi efetuado com vistas à constituição do crédito tributário.
 
É evidente que esse raciocínio vincula-se a uma compreensão estritamente formal do Direito Tributário. Formal, visto que ligada a procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente (CTN, art. 142, caput).
 
Sentido diverso, todavia, far-se-á presente na hipótese em que se verificar discussão (e consequente decisão judicial) que verse sobre a existência da relação jurídico-tributária. Em tais casos, estar-se-á diante de decisum de órgão jurisdicional no plano do Direito Tributário compreendido num sentido material, capaz, portanto, de impugnar a própria existência da relação jurídica. Seria o caso, por exemplo, de decisão que afastasse a cobrança de tributo por inconstitucionalidade ou ilegalidade da exigência da exação, situações nas quais se faria necessário reconhecer, em detrimento do disposto no enunciado nº 239 da súmula do STF, a incidência dos arts. 467 e 471, 1ª parte, do CPC. Colaciono:
 
Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.
 Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas (...)

Postas essas considerações, a conclusão é a de que “se a sentença afastasse relações jurídicas tributárias individuais, mas de menor densidade de concreção (mais abstratas), de modo a proibir a constituição do crédito tributário, irrelevante a presença de circunstâncias de fato distintivas, os efeitos da coisa julgada se projetariam para o futuro” (STF, AI 817.239/GO, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 01.02.2012, DJ de 08.02.2012).
 
De maneira a facilitar o entendimento do raciocínio acima expendido, é admissível esquematizá-lo, inclusive com arrimo na jurisprudência tributária do STJ (RE 1057733/RS), nos seguintes moldes:
 
1)    Se o dispositivo da decisão judicial conclui pela improcedibilidade da exação em face de peculiaridades constantes do lançamento tributário ou em razão de reconhecimento de prescrição, a coisa julgada ali reconhecida é restrita àquele exercício;
 
2)    Se o dispositivo da decisão judicial firmar-se com fundamento em ilegalidade da espécie tributária em si mesma considerada, ou com base em sua inconstitucionalidade, ou ainda se se referir à tributabilidade como um todo, aí será forçoso reconhecer a projeção pró-futuro da coisa julgada tributária, protegendo-se o julgado prolatado, mediante a conservação de seus efeitos – mesmo em face de relação jurídico-tributária que verse sobre imposto continuativo e de obrigação periódica.

Casuística

Com vistas a facilitar o entendimento do assunto, a abordagem de um exemplo, oriundo da jurisprudência (TRF1, 0029433-20.2010.4.01.3400/DF), vem a calhar.
 
Suponhamos, por exemplo, que o Fisco venha a efetuar lançamento tributário sobre parcelas de caráter indenizatório, tais como aquelas oriundas de verbas recebidas a título de pagamento de horas extras devidas aos empregado. Ora, tratar-se-ia, na hipótese, claramente de cobrança ilegal de tributo.

É cediço que parcelas de caráter indenizatório não podem sofrer desconto por força de contribuição previdenciária. É o que determina a Lei 8.212/91 (LCPS), que expressamente exclui do rol de parcelas integrantes do salário-de-contribuição do empregado as importâncias recebidas a título de ganhos eventuais e os abonos expressamente desvinculados do salário.

Eis o que determina o § 9º do art. 28 da LCPS (grifo meu):
 
§ 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente:
(...)
e) as importâncias:
(...)
7. recebidas a título de ganhos eventuais e os abonos expressamente desvinculados do salário.  

Ora, é notório que a verba trabalhista oriunda do pagamento da jornada extraordinariamente trabalhada configura ganho eventual a título de indenização. E isso porque, consoante anota Maurício Godinho Delgado (2010, p. 835):
 
a jornada extraordinária é o lapso de trabalho ou disponibilidade do empregado perante o empregador que ultrapasse a jornada padrão, fixada em regra jurídica ou cláusula contratual. É a jornada cumprida em extrapolação à jornada padrão aplicável à relação empregatícia concreta.

Dessa maneira, o empregado, que sacrifica seu direito ao descanso e ao lazer fora do horário normal de trabalho, recebe, a título de indenização, a verba adicional pelas horas trabalhadas extraordinariamente. Logo, descabe a incidência do desconto de contribuição previdenciária sobre verbas de horas extras ante seu manifesto caráter indenizatório.  
 
Destarte, eventual decisão - que viesse a reconhecer a ilegalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre parcelas de natureza indenizatória - atacaria, fatalmente, o gravame em si, ou seja, estaria a infirmar de ilegal o tributo em seu aspecto material de hipótese de incidência, não se podendo exigir o seu adimplemento, ainda que para exercícios posteriores, sem ofensa manifesta à coisa julgada.
 
Mas vale frisar que, se a decisão proferida pelo órgão judicial notadamente restringe o seu dispositivo, para afastar a cobrança do tributo apenas quanto a um determinado exercício financeiro, impende aplicar o enunciado nº 239 da súmula do STF (“Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores”).
 
Conclusões

Diante de tudo quanto foi exposto, é possível fixar algumas premissas com vistas a embasar a leitura do enunciado nº 239 da súmula de jurisprudência do STF, proporcionando os seguintes elementos concludentes de sua interpretação:

a)   os efeitos da coisa julgada material em matéria tributária podem ser limitados validamente no tempo;

b)   a decisão em matéria tributária, uma vez transitada em julgado, produz efeito para o futuro, mas desde que a situação nela versada permaneça a mesma, isto é, contanto que a situação de fato e de direito declarada na sentença reste inalterada pelo decurso do tempo;

c)    se a decisão impugnar a legalidade ou a constitucionalidade do tributo (isto é, atacá-lo como  um todo), os efeitos da imutabilitade e indiscutibilidade da coisa julgada projetar-se-ão para o futuro, ainda que se cuide de relação jurídico-tributária de caráter continuativo e de obrigações aferidas com periodicidade;

d)   a contrario sensu, se a sentença que transitou em julgado versar sobre situação de fato e de direito modificável pelo decurso do tempo, especialmente naqueles casos em que o sentido e o alcance da decisão prolatada se tenham restringido a um determinado exercício financeiro (plano do Direito Tributário estritamente formal), aí será caso de aplicar o enunciado 239 da súmula de jurisprudência predominante do STF, autorizando-se o ajuizamento de nova demanda por parte do contribuinte, pois os limites objetivos da nova coisa julgada serão distintos daqueles apreciados no processo que engendrou a formação da coisa julgada anterior.  
 
Referências

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: LTr, 2010.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. 3. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.




















domingo, 9 de setembro de 2012

RESUMO RT - CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE - Parte IV: Classificação das Inconstitucionalidades

 
Abusus non tollit usum. 

Recapitulação
 
Na terceira parte deste resumo, o leitor pôde acompanhar o tema relativo à teoria da inconstitucionalidade. Ali resumi como o princípio da supremacia da Constituição afeta o surgimento da ideia de “inconstitucionalidade” das leis e atos normativos do Poder Público, bem como de que forma a teoria da escada ponteana aplica-se ao controle de constitucionalidade (planos de existência, validade e eficácia da norma inconstitucional). Analisei ainda as distintas teorias sobre a natureza do ato inconstitucional e, em especial, a dicotomia entre as teorias da nulidade (teoria estadunidense) e teoria da anulabilidade (teoria kelseniana), buscando demonstrar a inserção dessas teorizações estrangeiras no Brasil.

Avancemos agora para a classificação das inconstitucionalidades.

Introdução

O fenômeno da inconstitucionalidade é múltiplo. Com isso, quero dizer que as leis e atos normativos do Poder Público que se chocam com a Constituição podem apresentar formas variadas de manifestação. Diante disso, é natural que surjam na doutrina maneiras distintas de classificar as espécies de inconstitucionalidade. E é exatamente isso que veremos agora.

Existem critérios classificatórios clássicos, como os que dizem respeito à inconstitucionalidade de procedimento/competência (formal) e de conteúdo (material). Outros são mais recentes, como aquele que se reporta à inconstitucionalidade por omissão. Todos, no entanto, afiguram-se importantes para um estudo aprofundado da teoria da inconstitucionalidade. Ei-los, então:
 
Inconstitucionalidade formal x inconstitucionalidade material:

Considerando caber à Constituição disciplinar o chamado processo normogenético, isto é, o processo mediante o qual as normas são produzidas num dado ordenamento jurídico, encontramos no seu texto várias normas procedimentais; outras, ainda, definidoras de competências; todas, no entanto, relacionando-se à criação das espécies normativas. Pois bem, quando uma norma é editada pelo Parlamento em desacordo com as regras constitucionais de competência e/ou de procedimento, diz-se que a inconstitucionalidade daí resultante é de tipo formal. Portanto, inconstitucionalidade formal é aquela oriunda de ato legislativo com vício de forma.

A inconstitucionalidade formal pode ser orgânica (quando o ato viola norma competencial) ou propriamente dita (quando a violação é do iter do processo legislativo, compreendendo as fases de iniciativa, deliberação, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação). Por exemplo: a Constituição reserva a iniciativa privativa ao Presidente da República quanto à apresentação dos projetos de leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores da União (CF, art. 61, § 1º). Sendo assim, se um projeto de lei (PL), de autoria de um Deputado, for submetido ao Parlamento para efeito de modificar o regime jurídico dos servidores da União, ter-se-á inconstitucionalidade formal propriamente dita, visto que o membro da Câmara não detém a iniciativa de elaboração das leis nessa matéria (o PL violou a fase de iniciativa do processo legislativo). Por outro lado, se lei estadual vem a estabelecer regras sobre a propaganda comercial, aí se estará diante de inconstitucionalidade formal orgânica, visto que violada regra de competência privativa da União (CF, art. 22, XXIX).
 
A inconstitucionalidade material, por seu turno, refere-se ao conteúdo do ato que se intenta impugnar. Tem-se, assim, a chamada incompatibilidade substancial ou substantiva, importando o reconhecimento de que a norma cujo conteúdo contraria o sentido conteudístico-valorativo da Constituição está eivada de nulidade. O vício material contido no ato pode apresentar-se tanto pelo desrespeito a um princípio quanto a uma regra constitucional. Por exemplo: lei municipal que estabelece alíquotas diversas do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN), tributando mais gravosamente o sujeito passivo pelo simples exercício de uma dada profissão, viola o princípio constitucional da isonomia tributária (CF, art. 150, II), o qual veda instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. Da mesma maneira, lei federal que, a pretexto de legislar sobre direito civil, viesse a restabelecer o pátrio poder na ordem civilista brasileira acarretaria violação material ao teor da regra, inscrita na Constituição, que determina a igualdade de gênero entre homens e mulheres (art. 5º, I), além de contrastar com a ideia de que o poder familiar não é um direito absoluto do pai, assegurando-se o seu exercício em igualdade de condições aos genitores que participam de uma sociedade conjugal (art. 226, § 5º) .
 
Aprofundando no estudo da casuística do controle de constitucionalidade brasileiro, vale a pena recordar o julgamento da ADC 19. Nessa ação, que, sumamente, visava a dirimir os sucessivos questionamentos quanto ao conteúdo da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), encontramos exemplos de alegações de inconstitucionalidades tanto de índole formal quanto material. A ADC 19, por exemplo, foi ajuizada pelo Presidente da República para que a Corte assentasse a constitucionalidade do art. 1º da Lei Maria da Penha (“Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”), em razão de que o controle difuso de constitucionalidade vinha sendo utilizado para impugnar, por supostamente discriminatório, o uso do critério de gênero pelo legislador com vistas à criação de mecanismos específicos de proteção da mulher contra a violência no ambiente doméstico e familiar. Ou seja, a ADC 19 tinha por objetivo superar uma arguição de inconstitucionalidade material (violação do princípio da igualdade entre homens e mulheres). Essa mesma ação ainda pedia que fosse assentada a constitucionalidade do art. 33 do diploma em comento (“Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.”), novamente por força de que havia se instaurado controvérsia judicial significativa, em especial pelo acolhimento da tese, em sede de controle difuso, de que a previsão legal de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher iria de encontro à norma do art. 125, § 1º, da Constituição, o qual estabelece competir aos Tribunais de Justiça a iniciativa das leis que disponham sobre organização judiciária em âmbito estadual. Ou seja, cuidava-se de sobrepujar uma alegação de inconstitucionalidade formal orgânica (inobservância da regra de competência do processo legislativo).
 
No entanto, o que interessa enfatizar é que, seja a inconstitucionalidade de tipo formal, seja de tipo material, a consequência é sempre a mesma: a nulidade da norma. Mas há uma exceção. Trata-se da incompatibilidade de norma infraconstitucional preexistente com uma nova Constituição ou com uma emenda constitucional superveniente. Aí as consequências mudam, conforme se cuide de inconstitucionalidade formal ou inconstitucionalidade material.
Em se tratando de ato normativo infraconstitucional preexistente, conflitante materialmente com a nova Constituição, dar-se-á o fenômeno da não recepção, isto é, a norma anterior sequer ingressa no ordenamento jurídico, pelo que se pode considerá-la automaticamente revogada. É diferente, todavia, o que ocorre com a incompatibilidade de índole formal: nesse caso, o ato normativo anterior, que se reputa incompatível com a nova Constituição, restringe sua discordância a uma mudança na regra da competência legislativa para a edição da norma apta a dispor sobre a matéria. Ou, ainda, a nova Constituição apenas modifica a espécie normativa passível de disciplinar o assunto versado na lei pretérita. Um exemplo para facilitar a compreensão do raciocínio: o Código Eleitoral (Lei 4.737/65, de 15 de julho de 1965) foi originalmente editado como lei ordinária; ocorre que a Constituição de 1988 passou a exigir lei completar para dispor sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais (CF, art. 121, caput). Considerando que essa matéria é disciplinada no Código Eleitoral, uma lei ordinária, como se resolve essa inconstitucionalidade formal? Simples. Na parte em que disciplina a organização e a competência da Justiça Eleitoral, a Lei 4.737/65 foi recepcionada com a natureza de lei material complementar, cabendo às suas demais normas a natureza de lei ordinária. Significa dizer, em conclusão, que a inconstitucionalidade formal de ato normativo preexistente à nova Constituição resolve-se com a recepção da norma pretérita, garantindo-se, todavia, que o processo legislativo ulterior respeite as regras competenciais e procedimentais previstas no novo texto constitucional - presumindo-se, é claro, que haja compatibilidade material do ato recepcionado.
Em síntese, o controle de constitucionalidade brasileiro não admite a inconstitucionalidade formal superveniente, resolvendo-se a pendência pela recepção da norma infraconstitucional pretérita com a natureza da espécie normativa que a nova Constituição, ou a emenda constitucional, instituiu como sendo a idônea a disciplinar a matéria. Em relação à inconstitucionalidade material superveniente, como vimos, o Supremo Tribunal Federal consolidou a tese de que as normas anteriores - materialmente incompatíveis com o novo texto constitucional - reputar-se-ão automaticamente revogadas (não recepcionadas).
 
Inconstitucionalidade por ação x Inconstitucionalidade por omissão:
 
A origem das espécies de inconstitucionalidades, sob as formas de ação ou omissão do Poder Público, decorre da imperatividade das normas constitucionais. Dado que as regras e princípios constitucionais caracterizam, em tese, normas de observância obrigatória (comandos constitucionais), deve o legislador cumprir o que nelas se determinada, seja para o fim de proibir determinadas condutas (normas constitucionais de índole proibitiva), seja para o fim de garantir a prática de determinados comportamentos (normas constitucionais de índole preceptiva). Disso decorre que os atos do Poder Público podem violar a Constituição quando não vedam a conduta que o texto constitucional deseja proibir, assim como quando não asseguram a ação que o texto exige.
Conceitualmente, inconstitucionalidade por ação é aquela ocorrente quando o ato do Poder Público viola a Constituição mediante uma conduta positiva, um agir, isto é, edita-se um ato incompatível com o texto constitucional. Nos marcos do estudo do controle de constitucionalidade, o ato a que a doutrina se reporta é a lei (embora não se negue haver condutas ativas violadoras da Constituição nos atos dos Poderes Executivo e Judiciário, controláveis pela via dos recursos previstos no ordenamento). O agir inconstitucional sobre o qual se edificou a teoria do controle de constitucionalidade é aquele, portanto, que se refere à ação do Poder Legislativo consistente em criar norma viciada, ingressando no ordenamento de maneira inválida, a reclamar, em consequência, a paralisação de sua eficácia em cotejo com o parâmetro normativo superior.
A inconstitucionalidade por ação pode ser total, quando todo o diploma legislativo for declarado inválido, ou parcial, quando apenas um ou alguns dos dispositivos constantes do texto impugnado tiverem sua eficácia paralisada. Normalmente, o vício formal gera uma inconstitucionalidade total, ao passo que o vício material pode gerar tanto a declaração de inconstitucionalidade de toda a lei quanto de apenas parte dela.
De outro giro, há também a inconstitucionalidade por omissão. Aqui há uma conduta negativa da parte do legislador: tendo o dever de elaborar a norma requerida pelo povo constituinte, ele deixa de fazê-lo, gerando, com sua atitude, um problema de perda de efetividade do texto constitucional. Omissão inconstitucional, desse modo, deve ser compreendida nos lindes de um non facere do legislador, da inércia que impede a concretização dos comandos constitucionais.
Mas é preciso deixar claro que nem toda inação do legislador caracterizará necessariamente uma conduta inconstitucional. Na verdade, a regra é a de que o legislador, discricionariamente, decide a conveniência e a oportunidade de legislar sobre um determinado assunto (“ninguém pode obrigar o legislador a legislar”, reza o velho brocardo). Há hipóteses, porém, em que o próprio texto constitucional reclama uma regulamentação, a fim de que o direito constitucionalmente previsto possa vir a ser usufruído pelos cidadãos. Em tais casos, isto é, quando existe na Constituição um dever de legislar para assegurar a eficácia de um preceito constitucional, a inércia (abstenção) será ilegítima, ensejando inconstitucionalidade por omissão.
Questão interessante surge quando se está diante de normas programáticas, que são aquelas que consubstanciam diretrizes de atuação ad futurum dos órgãos estatais. Nessa hipótese, a doutrina entende não ser possível, em regra, reconhecer omissão inconstitucional do legislador, haja vista o cumprimento dos fins sociais do Estado dar-se no decurso de um espaço considerável de tempo, limitado que está a questões de ordem prática, como a reserva do financeiramente possível. Mas também aqui se reconhece uma exceção: caracteriza omissão inconstitucional a conduta do legislador que, com sua abstenção ilegítima, obsta a realização das prestações reclamadas pelo mínimo existencial.
Do ponto de vista doutrinário, costuma-se ainda afirmar que a omissão do legislador pode ser total (ou absoluta) ou parcial. A primeira ocorre quando a inércia legislativa produz um vazio normativo, contrariamente do seu dever jurídico-constitucional de legislar. Há total ausência de normatização jurídica, inviabilizando o gozo de direitos subjetivos. Quanto a esse ponto, a jurisprudência brasileira tem entendido, historicamente, que a omissão total resolve-se com a declaração de sua existência, constituindo-se em mora o legislador, cientificando-lhe para a adoção das providências necessárias. Já no caso da omissão parcial, a doutrina costuma dividi-la em duas subespécies, a saber: omissão parcial relativa e omissão parcial propriamente dita. Na omissão parcial relativa, a lei exclui do seu âmbito de incidência normativa uma categoria que nele deveria estar inserida, o que subtrai dos excluídos um dado direito, atentando contra o princípio da isonomia. Na omissão parcial propriamente dita, o legislador, embora não viole o preceito isonômico, atua de modo insuficiente ou deficiente, não satisfazendo em plenitude a obrigação que lhe foi imposta. Por outras palavras, o legislador realiza, de modo imperfeito, o seu dever constitucional de legislar.
Em relação à omissão parcial propriamente dita, é importante frisar que se cuida de comportamento omissivo tão censurável quanto aquele compreendido na inércia total. Em ambos os casos, há abstenção ilegítima. Apenas na omissão parcial strictu sensu haverá concretização insuficiente, pelo Poder Público, do conteúdo da norma material impositiva que se funda na Constituição, refletindo conduta estatal indesejada, merecedora de repulsa, na medida em que a inércia do Estado qualifica-se como um instrumento perigoso do processo de mudanças informais na Constituição.

Por fim, sob a ótica do processo constitucional, cumpre assinalar que, enquanto a inconstitucionalidade por ação pode ser atacada com diversos instrumentos processuais (ADI, ADC, ADPF, RI), o ferramental existente no ordenamento jurídico brasileiro, pós-Constituição de 1988, ainda é tímido no combate às omissões legislativas: há apenas o mandado de injunção (CF, art. 5º, LXXI), direcionado à tutela de direitos subjetivos, e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), pertinente ao controle abstrato, manejadas, respectivamente, nas vias incidental e principal, ambas tendo por objetivo combater a inércia do legislador. Tal constatação só reforça o desafio que a jurisdição constitucional  - pátria e estrangeira - ainda há de enfrentar no tratamento repressivo do non facere legiferante.