quinta-feira, 22 de novembro de 2012

DA NÃO VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA UNICIDADE SINDICAL PELO DESMEMBRAMENTO DE SINDICATO PREEXISTENTE: apontamentos doutrinários e jurisprudenciais à luz da OJ 15 do TST e do enunciado 677 da súmula de jurisprudência do STF

Min. Dias Tofolli, relator do RE 608.304 AgR/MG.

 
1 - Introdução
No Direito Coletivo do Trabalho, encontramo-nos diante do campo de estudos das relações travadas entre os entes coletivos das relações de labor sob o signo da chamada autonomia privada coletiva. Trata-se de uma seara que, para parte da doutrina, é autônoma do ponto de vista didático-científico, embora prevaleça a tese do seu enquadramento no Direito do Trabalho, subsistema jurídico que se subdividiria, de um lado, em Direito Individual do Trabalho e, de outro, em Direito Coletivo do Trabalho.

Em que pesem as divergências doutrinárias, há consenso, no plano das relações trabalhistas iuscoletivas, quanto ao protagonismo assumido pelos sindicatos. Estes, historicamente, surgiram da necessidade de os trabalhadores fortalecerem os seus movimentos reivindicatórios por melhores condições de trabalho. Considerada a irrefutável hipossuficiência do obreiro nas relações trabalhistas individuais, logo se notou que um ente capaz de agrupar e dirigir a luta dos trabalhadores poderia ter muito mais condições de arrostar a resistência do empregador (e, ao fim e ao cabo, do próprio Estado) em atender o reclamo por direitos sociais. Daí surgirem os sindicatos, originalmente qual entes de representação coletiva da classe trabalhadora, embora o ordenamento atual, como veremos adiante, não negue a existência de sindicatos patronais. 

Neste artigo, tendo em vista a relevância que assume no estudo das relações trabalhistas iuscoletivas, iniciarei minha argumentação com o conceito de sindicato. A seguir, exporei algumas características que peculiarizam o Direito Coletivo do Trabalho perante o Direito Individual do Trabalho. A importância desse delineamento consiste em permitir-me introduzir o tema relativo ao princípio da unicidade sindical no contexto da Constituição brasileira de 1988.

A partir daí, definido o enfoque principiológico, buscarei apontar as incongruências do modelo de sindicato único por força de lei no sistema de organização sindical do Brasil. Nesse momento, darei especial ênfase ao confronto antitético que existe entre o modelo autoritário, lastreado no princípio da unicidade sindical, e o modelo pluralista, que admite a criação de mais de um sindicato representativo de uma mesma categoria em uma mesma base territorial - a meu ver, mais condizente com o caráter democrático do Estado que a Constituição vigente intenta fundar.

Por fim, abordarei o modo com que a jurisprudência cuidou de disciplinar, na prática, a dimensão de eficácia do princípio da unicidade sindical. Para tanto, faz-se necessário visitar o enunciado 677 da súmula de jurisprudência do STF e a OJ 15 do TST. Só então, esclarecido bem o contexto em que se põe o debate jurídico sobre a matéria, avançarei na análise da jurisprudência do STF quanto à existência, ou não, de violação ao princípio da unicidade sindical pelo desmembramento de sindicato preexistente.    

2 - Conceito de sindicato

Ao analisar o direito positivo brasileiro, percebe-se que a CLT introduz a regulamentação jurídica da matéria sindical no caput do seu art. 511, a saber:
   
Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas.


Essa autorização legal do diploma celetista deve, no entanto, ser examinada à luz do Direito Civil, sob pena de restar conceitualmente esvaziada. Assim procedendo, hemos de encontrar, no art. 44 do CC, o rol das pessoas jurídicas de direito privado admitidas no Brasil. Vejamos:

Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
 
I - as associações;

II - as sociedades;

III - as fundações;

IV - as organizações religiosas; 

V - os partidos políticos;

VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada.

Nesse prisma, importa destacar o conceito civilista de associações. E por quê? Porque é aí que, em princípio, os sindicatos podem ser teoricamente classificados.

No plano jurídico civilístico, as associações se constituem pela "união de pessoas que se organizem para fins não econômicos" (CC, art. 53). Significa dizer que existem grupos de interesses na sociedade que, eventualmente,  podem unir-se, fortes em propósito comum que os anima, e fundar uma entidade que não vise à obtenção de lucro. Este, por sinal, caso venha a ser apurado no exercício, deverá ser revertido em prol do patrimônio da própria entidade, e não dos associados.

Assim, a associação se consubstancia na união de pessoas naturais, organizada para atender a fins não econômicos, que podem ser literários, pios, esportivos, acadêmicos etc., encontrando limites no disposto no art. 5º, XVII, da Constituição Federal que afirma ser plena a liberdade associativa para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 400).  

Além dos fins não econômicos supracitados, também a defesa dos interesses de classes ou categorias profissionais de trabalhadores podem servir de móvel ao ato instituidor de uma associação. É aí que surgem os sindicatos, que podem ser definidos como "a associação de pessoas físicas ou jurídicas, que têm atividades econômicas ou profissionais, visando à defesa dos interesses coletivos ou individuais dos membros da categoria (art. 511 da CLT)". (GARCIA, 2011, p. 714). Aliás, registre-se que o traço distintivo mais marcante dos sindicatos, a singularizar esses entes coletivos, diferençando-os das demais associações civis, é justamente o objetivo que guia sua atuação, qual  seja, o de "defesa e incremento de interesses coletivos profissionais e econômicos de trabalhadores assalariados (...), mas também outros trabalhadores subordinados (...), além dos próprios empregadores". (DELGADO, 2010, p. 1256, grifos do autor).       

Nesse ponto, é preciso ter cuidado para não associar, de forma inarredável, o conceito de sindicato com o de "entidade representativa dos interesses dos trabalhadores". A razão é que também se admite a existência de sindicatos representativos dos empregadores (ditos "sindicatos da categoria econômica" em oposição aos da "categoria profissional", que se referem ao obreiro). Esse representação patronal, inclusive, reforça a participação dos empregadores nas relações iuscoletivas de trabalho. Nem poderia ser diferente, haja vista o empregador ser um ser coletivo por natureza, cujas decisões repercutem para além da esfera estritamente individual, na medida em que influem sobre as condições laborais do grupo que vende, em regra, a energia de labor em troca do salário.

Sobre o assunto, é pertinente a observação de Maurício Godinho Delgado (2010, p. 1232) no sentido de que

Os sujeitos do Direito Coletivo são, portanto, essencialmente os sindicatos, embora também os empregadores possam ocupar essa posição, mesmo que agindo de modo isolado. Tal diferenciação ocorre porque os trabalhadores somente ganham corpo, estrutura e potência de ser coletivo através de suas organizações associativas de caráter profissional, no caso, os sindicatos. Em contraponto a isso, os empregadores, regra geral, já se definem como empresários, organizadores dos meios, instrumentos e métodos de produção, logo, são seres com aptidão natural de produzir atos coletivos em sua dinâmica regular de existência no mercado econômico e laborativo.  
 
Visto o conceito de sindicato, bem como esclarecido o seu protagonismo nas relações iuscoletivas, é possível avançar no estudo das peculiaridades do Direito Coletivo do Trabalho quando comparado ao Direito Individual do Trabalho, ocasião em que será possível introduzir a apreciação do princípio da unicidade sindical.

3 - O princípio da unicidade sindical no contexto do Direito Coletivo do Trabalho: críticas doutrinárias à luz do princípio da liberdade sindical na Constituição de 1988  

O Direito Coletivo do Trabalho apresenta muitas peculiaridades quando cotejado com o Direito Individual do Trabalho. Por exemplo: enquanto neste prevalece o princípuo do in dubio pro misero, em homenagem à hipossuficiência obreira, naquele há uma tendência a reconhecer-se uma relativa paridade de forças entre os entes que negociam na esfera das relações de trabalho coletivizadas. Outra peculiaridade relevante a ser sublinhada refere-se à natureza jurídica da associação sindical. Qual seria ela? Pública ou privada? Embora houvesse no passado quem advogasse tese diversa, é fato que, com o advento da Constituição de 1988, não resta mais dúvida: os sindicatos são entidades com natureza de pessoa jurídica de direito privado, sobretudo quando se considera que estão submetidas ao regime da liberdade associativa e da autonomia sindical (CF, art. 5º, XVI e XVII c/c art. 8º, V).

Dentre as peculiaridades acima destacadas, aquela que, indiscutivelmente, suscita mais discussões doutrinárias reporta-se ao sistema de organização sindical. Cuida-se do campo de estudos onde se investiga a forma de constituição das entidades sindicais - se feita com ampla liberdade associativa, admitindo-se pluralidade de entes, ou se restrita a uma única entidade atrelada a uma determinada base territorial, em face de imposição de lei. No Brasil, a questão é polemista ao extremo, em face das razões que apontarei a seguir.

A Constituição de 1988 trouxe muitas inovações normativas, quase todas de conformidade com o caráter democrático do Estado de Direito que tencionou instituir no Brasil. A consagração do princípio da liberdade sindical vai ao encontro desse desiderato, tanto que consiste

no direito dos trabalhadores (em sentido genérico) e empregadores de constituir as organizações sindicais que reputarem convenientes, na forma que desejarem, ditando suas regras de funcionamento e ações que devam ser empreendidas, podendo nelas ingressar ou não, permanecendo enquanto for sua vontade. (BRITO FILHO, 2007, p. 73).    

No Brasil, o caput do art. 8º da Constituição prevê que "é livre a associação profissional ou sindical". Esse preceito deve ser lido para abranger em seu conteúdo, genericamente, um duplo sentido de liberdade: a de associação e a de filiação. Aquela se reporta ao direito que assiste aos cidadãos de se unirem, derredor de interesses comuns, organizando um plano de ação voltado à defesa de interesses comuns. Esta diz respeito ao direito de associar-se (filiar-se) a sindicato - espécie de liberdade de índole positiva - ou de desfiliar-se do mesmo - espécie de liberdade de índole negativa. Não se confunde, dessa maneira, com a circunstância de pertencer a uma dada categoria profissional ou econômica, caso em que, diferentemente da filiação sindical, é dispensável a manifestação de vontade do empregado, bastando que sejam prestados serviços ao empregador cuja atividade preponderante está inserida em determinado setor da economia, em certa área territorial (GARCIA, 2011, p. 688). Em tais casos, o obreiro será considerado pertencente à categoria econômica junto à qual desenvolva suas atividades laborais, independentemente de quaisquer manifestações de vontade do empregado (o mesmo raciocínio vale também para o empregador).

A consagração expressa do princípio da liberdade sindical no texto da Constituição não esconde, entretanto, incongruências no seu próprio bojo normativo. Tal afirmativa decorre da leitura de algumas normas que - paradoxalmente - vão de encontro à liberdade ampla que se espera esteja protegida nas raias de um Estado Democrático de Direito. Essas normas restringem indevidamente a liberdade de associação coletiva no plano sindical, sobretudo quando se considera a Convenção 87 da OIT - tratado internacional que preconiza a ampla liberdade na organização dos sindicatos (sistema da pluralidade sindical).

A polêmica a que aludo gira em torno do inc. II do art. 8º da Constituição. Vejamo-lo:

Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

II - é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município;

Nessa norma, o povo constituinte optou em organizar o sistema sindical brasileiro lastreado na diretriz da unicidade sindical, isto é, um sistema limitador, restritivo da liberdade, visto que impõe que a representação sindical de um dado grupo ou uma dada categoria, em determinado espaço territorial (no Brasil, corresponde, no mínimo, à área de um município), seja feita por uma única entidade. É sistema que se encontra em diametral oposição com o da pluralidade sindical, regime prestigiado pela Convenção 87 da OIT, no qual se admite a coexistência de vários sindicatos representativos da mesma categoria em uma mesma base do território, podendo até mesmo gerar uma unidade sindical - hipótese decorrente do amadurecimento das lutas coletivas, caso em que os trabalhadores ou empregadores representados chegam espontaneamente a um consenso quanto ao sindicato mais eficiente na defesa dos interesses do grupo, elegendo-o qual ser coletivo único, a fim de conferir-lhe maior poder negocial quando de sua interveniência na normatização coletiva. Isso porque, segundo Carlos Chiarelli (apud NASCIMENTO, 2011, p. 1282),

Os países em que há maior vigor reinvidicatório e mais expressiva capacidade de mobilização são aqueles que ostentam a pluralidade entre as prerrogativas constitutivas da liberdade sindical em si. Veja-se que não existe a proposição da obrigatoriedade da pluralidade. Esta vale como prerrogativa, como direito. Se os trabalhadores, apesar de terem a faculdade, preferirem agrupar-se em representações unitárias, estaremos diante do ideal: a unidade na pluralidade.  

O sistema da pluralidade sindical, de conformidade com a Convenção 87 da OIT, é adotado em muitos países da Europa. Não no Brasil, pois, como vimos, o texto constitucional vigente optou em manter o sistema autoritário, e notadamente corporativista, de organização sindical fundado no princípio da unicidade.

Mas essa opção contraditoriamente antidemocrática do povo constituinte de 1988 não passou despercebida aos olhos da crítica acadêmica. Na verdade, ao menos quanto ao ponto em que incorporou normas flagrantemente autoritárias de organização dos sindicatos (além da unicidade sindical, pode-se citar a cobrança compulsória da contribuição sindical), a Constituição tem sido objeto de uma torrente de críticas doutrinárias acerbas - e que passam a contar, cada vez mais, com o apoio pretoriano.

Nesse sentido, as palavras de Maurício Godinho Delgado (2010, p. 1222) exemplificam bem essa vertente do pensamento crítico ao autoritarismo com que a CF/88 urdiu a organização iuscoletiva no Brasil:
 
Somente a partir da Carta Magna de 1988 é que teria sentido sustentar-se que o princípio autonomista ganhou corpo real na ordem jurídica do país. De fato, a nova Constituição eliminou o controle político-administrativo do Estado sobre a estrutura dos sindicatos, quer quanto à sua criação, quer quanto à sua gestão (art. 8º, I). Além disso, alargou as prerrogativas de atuação dessas entidades, seja em questões judiciais e administrativas (art. 8º, III), seja na negociação coletiva (art. 8º, VI e 7º, XXVI), seja pela amplitude assegurada ao direito de greve (art. 9º).
Entretanto, curiosamente, a mesma Constituição manteve traços relevantes do velho sistema corporativista do país. É o que se passa com a unicidade sindical (art. 8º, II), com o sistema de financiamento compulsório e genérico de toda a estrutura, inclusive sua cúpula (art. 8º, IV), com o poder normativo dos tribunais trabalhistas e, finalmente, com os mecanismos de representação corporativista no seio do aparelho de Estado - no caso, através da chamada representação classista na Justiça do Trabalho. São estruturas e instrumentos que se chocam, afinal, de modo patente, segundo as experiências ocidentais (como Itália e Alemanha, por exemplo), com o princípio da autonomia sindical. Embora um dos mais perversos desses traços tenha sido extirpado onze anos após a vigência da Carta Magna (a Emenda Constitucional n. 24, de dezembro de 1999, suprimiu a representação classista no corpo do Judiciário Trabalhista), as demais contradições permanecem, colocando em questão, mais uma vez, a plenitude do princípio da autonomia dos sindicatos na ordem jurídica e política do Brasil.

Sumarizando as críticas da doutrina ao regime da unicidade sindical, Amauri Mascaro Nascimento (2011, p. 1277) leciona:

As objeções que são apontadas quanto ao sistema do sindicato único cingem-se à restrição que se impõe à livre constituição de sindicatos pelos interessados, de modo que aqueles que pertencem ao grupo não têm outras opções, ainda que em desacordo com as diretrizes sindicais. A representação dos interesses fica canalizada para uma única organização, não restando alternativas para os representados em desacordo com as diretrizes da diretoria do sindicato, a não ser influir nas eleições para sua renovação.  

Todavia, todas essas considerações críticas ao princípio da unicidade sindical não têm o condão de afastar a vigência do art. 8º, II, da Constituição. Sendo assim, vigente o comando, deve-se assegurar, no Brasil, a eficácia do princípio regente do sindicato único por imposição de lei (rectius: norma constitucional).

4 - Instrumentos assecuratórios da eficácia do princípio da unicidade sindical

Garantir a eficácia de um princípio significa criar mecanismos assecuratórios de sua aplicação. E com o princípio da unicidade sindical não é diferente. De acordo com esse princípio, o Brasil adota o sistema do monopólio sindical (sindicato único por imposição de lei), ex vi do art. 8º, II, da CF/88. Na prática, tal monopólio é operacionalizado mediante a verificação de dois critérios: categoria de trabalhadores (ou empregadores) e geográfico-territorial. Logo, uma vez conjugados esses critérios, conclui-se que "é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores e empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município" (CF, art. 8º, II). Ou seja, a liberdade sindical tem sua amplitude restringida pela Constituição, pois não se admite que sejam criados mais de um sindicato da mesma categoria na mesma base territorial, sendo a área de um município o patamar geográfico mínimo para esse fim.

Em decorrência da necessidade de fiscalização da observância do princípio da unicidade sindical, as associações coletivas de trabalhadores (ou empregadores) devem proceder ao registro dos seus atos consttitutivos (in casu, dos respectivos estatutos sindicais) no órgão de Estado competente. No Brasil, compete ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) a competência administrativa para fins de registro das entidades coletivas de representação dos trabalhadores/empregadores e consequente concessão da carta sindical. É o que se depreende da leitura do enunciado nº 677 da súmula de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (grifo meu):

STF, Súmula nº 677 - 24/09/2003 - DJ de 9/10/2003, p. 4; DJ de 10/10/2003, p. 4; DJ de 13/10/2003, p. 4.
Incumbência do Ministério do Trabalho - Registro das Entidades Sindicais e Princípio da Unicidade
Até que lei venha a dispor a respeito, incumbe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade.

Significa dizer que, a teor do enunciado supra, a aquisição da personalidade jurídica sindical dá-se tão somente com o registro dos atos constitutivos no MTE, pois a inscrição no cartório de registro civil das pessoas jurídicas confere apenas o status de associação (pessoa jurídica de direito privado) ao ente coletivo, mas não o legitima à representação de uma determinada categoria na qualidade de sindicato. É como o STF vem decidindo (grifo meu):

Agravo regimental no agravo de instrumento.Prequestionamento. Ausência. Sindicato.Registro. Necessidade. Precedentes.
1. Não se admite o recurso extraordinário quando os dispositivos constitucionais que nele se alega violados não estão devidamente prequestionados. Incidência das Súmulas nºs 282 e 356/STF.
2. A orientação firmada nesta Corte é no sentido de ser o registro do Sindicato no Ministério do Trabalho e Emprego o ato que o legitima à representação de determinada categoria. 3. Agravo regimental não provido.(STF, Primeira Turma, AI 820.650/AgR/DF, Rel. Min. Dias Toffoli. j. 04/09/2012, p. DJe 26/09/2012).  

 A consequência imeditada da negativa de reconhecimento da legitimidade do ente para fins de representação sindical da categoria é a sua impossibilidade de atuação processual, haja vista carecer de legitimidade ad processum, consoante a Seção de Dissídios Coletivos do TST já teve oportunidade de anotar na sua orientação jurisprudencial de nº 15. Colaciono (grifo meu):

SDC, OJ 15. SINDICATO. LEGITIMIDADE "AD PROCESSUM". IMPRESCINDIBILIDADE DO REGISTRO NO MINISTÉRIO DO TRABALHO.  (inserida em 27.03.1998)
A comprovação da legitimidade "ad processum" da entidade sindical se faz por seu registro no órgão competente do Ministério do Trabalho, mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Outro ponto de análise relevante em relação à operacionalização prática do princípio da unicidade sindical concerne aos limites geográficos do território sobre o qual o ser coletivo há de exercer a representação única da categoria. Acima, observei que, a teor do inc. II do art. 8º da Constituição, a base territorial não pode ser inferior à área de um município. Trata-se, por conseguinte, de um critério territorial mínimo. Daí se inferir que nada obsta a que sejam fundados sindicatos únicos fulcrados em base territorial mais ampla. Exemplos suscetíveis de menção são encontrados em sindicatos cuja representação dá-se em uma base territorial abrangente de vários municípios, ou de toda a extensão de um Estado federado (base estadual), ou até mesmo de todo o território do País (base nacional). O importante é isto: de acordo com o princípio da unicidade sindical, a base territorial nunca pode ser inferior à área de um município. 

5 - O desmembramento de sindicatos preexistentes à luz do princípio da unicidade sindical: discrime da jurisprudência do STF

Partindo dessas premissas, a jurisprudência tem buscado delimitar, com maior precisão jurídica, os contornos da unicidade. Nesse sentido, uma importante diferenciação que vem sendo feita pelos tribunais diz respeito ao desmembramento de sindicatos preexistentes. A questão gira derredor da hipótese do sindicato com base territorial a abarcar a área de vários municípios. Em tais casos, poderiam os sindicalizados decidirem desmembrar a entidade, para constituir outros entes coletivos, representativos da mesma categoria, porém em bases geograficamente menores? Ou, nessa hipótese, ter-se-ia por fulminado o núcleo do princípio da unicidade sindical?

Para o STF, que já se debruçou incontáveis vezes sobre o busílis, a resposta é positiva. Inclusive, há jurisprudência farta da Corte Suprema admitindo o desmembramento, senão vejamos (grifos meus):

EMENTA: I. Sindicato: unicidade e desmembramento. 1. O princípio da unicidade sindical (CF, art. 8º, II, da Constituição) não garante por si só ao sindicato a intangibilidade de sua base territorial: ao contrário, a jurisprudência do STF está consolidada no sentido da legitimidade constitucional do desmembramento territorial de um sindicato para constituir outro, por deliberação dos partícipes da fundação deste, desde que o território de ambos não se reduza a área inferior à de um município (v.g., MS 21.080, Rezek, DJ 1º.10.93; RE 191.231, Pertence, DJ 06.08.99; RE 153.534; Velloso, DJ 11.06.99; AgRgRE 207.910, Maurício, DJ 4.12.98; RE 207.780, Galvão, DJ 17.10.97; RE 180222, Galvão, DJ 29.08.00). 2. No caso, o Tribunal a quo assentou que não houve superposição sindical total, mas apenas um desmembramento que originou novas organizações sindicais regionais cuja área de atuação é menor do que a do agravante, o que não ofende a garantia constitucional da unicidade. II. Recurso extraordinário: descabimento: ausência de prequestionamento do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal: incidência das Súmulas 282 e 356” (RE nº 154.250/SP-AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJe de 8/6/07).  

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SINDICATO. DESMEMBRAMENTO. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA UNICIDADE SINDICAL. IMPROCEDÊNCIA. 1. É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que não implica ofensa ao princípio da unidade sindical a criação de novo sindicato, por desdobramento de sindicato preexistente, desde que o território de ambos não se reduza a área inferior a de um município. 2. Agravo regimental desprovido. (STF, Segunda Turma, RE 573.533 AgR/SP, Rel. Min. Ayres Britto, j. 14/02/2012, p. DJe 19/03/2012).

EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Negativa de prestação jurisdicional. Não ocorrência. Desmembramento. Novo sindicato. Princípio daunicidade sindical. Violação. Não ocorrência. Precedentes. 1. A jurisdição foi prestada pelo Tribunal de origem mediante decisão suficientemente motivada. 2. Segundo a jurisprudência desta Corte, a criação de novo sindicato por desmembramento de sindicato preexistente não viola o princípio da unicidade sindical, desde que respeitada a base territorial mínima de um município. 3. Agravo regimental não provido. (STF, Primeira Turma, RE 608.304 AgR/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 28/08/2012, p. DJe 13/09/2012).

Exemplificando o que a jurisprudência cimentou, poder-se-ia pensar em um sindicato de trabalhadores da construção civil cuja representatividade alcançasse 10 municípios. Se os sindicalizados de um desses municípios decidirem desmembrar-se do sindicato ao qual se encontram vinculados, reduzindo a abrangência de representação da entidade, o STF entende como sendo medida perfeitamente legítima, não havendo que se falar em violação do princípio da unicidade sindical, desde que - e isto é o mais importante para assegurar a inteireza eficacial principiológica - o ente coletivo resultante do desmembramento não tenha área territorial inferior a de um município.

6 - Conclusão

Considerando ser o Direito Coletivo o segmento do Direito do Trabalho que se propõe a discutir as relações trabalhistas iuscoletivas, é notório o protagonismo dos sindicatos - associações civis, com personalidade jurídica de direito privado, cuja nota distintiva perspícua relaciona-se aos fins de representação dos interesses de uma determinada categoria profissional ou econômica, no que também se destaca a imprescindibilidade de sua interveniência na normatização das relações coletivas de labor.

Com a Constituição de 1988 e a conseguinte consagração do Estado Democrático de Direito, inaugurou-se, no Brasil, um novo sindicalismo, tendo por bases fundamentais o respeito ao princípio da liberdade sindical, visto em uma dimensão dicotômica: positiva (de associação, de filiação) e negativa (faculdade de desassociar-se do sindicato).

Entretanto, paradoxalmente, o texto constitucional democrático manteve determinados aspectos autoritários do regime jurídico de organização sindical tal como se encontrava disposto no Estado de Direito pretérito, isto é, a ditadura pré-Constituição de 1988. Exemplos cabais disso são a contribuição sindical (tributo, portanto, de exigência compulsória a todos os integrantes da categoria) e, com especial ênfase, o princípio da unicidade sindical.

O princípio da unicidade sindical fundamenta o sistema do sindicato único, decorrente de imposição de lei (norma constitucional), no Brasil. Segundo referido vetor principiológico do Direito Coletivo, ex vi do inc. II do art. 8º da CF/88, em uma mesma base territorial, que nunca pode ser inferior à área de um município, é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica. Portanto, é um mandamento autoritário-corporativista, antitético aos valores democráticos que inspiraram a redação da atual Constituição. Sendo assim, a doutrina é prenhe de críticas a esse dispositivo, reclamando a reforma do texto constitucional vigente, a fim de permitir que o Brasil possa inserir-se no rol dos países que encampam o sistema da pluralidade sindical, muito mais consentâneo a um Estado de índole democrática, que, inclusive, conta, no plano do Direito Internacional, com apoio na Convenção 87 da OIT.

Firmadas essas premissas, a jurisprudência do STF (enunciado 677) definiu competir, administrativamente, ao Ministério do Trabalho e Emprego chancelar a pretensão de trabalhadores ou empregadores que desejem fundar um ente coletivo, mediante a expedição da carta sindical. O TST, por seu turno, delimitou que, caso a entidade não tenha adquirido a personalidade jurídica sindical por meio do registro administrativo junto ao órgão competente (in casu, o MTE), será considerada desprovidade de legitimidade ad processum (SDC, OJ 15).

Essa mesma jurisprudência, contudo, houve por bem estabelecer algumas balizas que determinam hipóteses nas quais não há que se falar em violação ao princípio da unicidade sindical. É o que ocorre, exemplificativamente, no caso de sindicato preexistente cuja base territorial abranja mais de um município. Se os sindicalizados desejarem desmembrar-se do ente coletivo, pulverizando a abrangência geográfica da representação em bases territoriais menores, a jurisprudência do STF é pacífica em considerar tal desiderato legítimo, à luz do princípio da unicidade sindical. A única exigência feita pela Corte é que os novos sindicatos assim formados, resultantes do desmembramento, não tenham área inferior a de um município.
 
REFERÊNCIAS
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Direito sindical. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2007.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. rev. atual. São Paulo: LTr, 2010. 1373 p.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, vol. 1. 10ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 856 p.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de Direito do Trabalho. 3ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. 775 p.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho; relações individuais e coletivas do trabalho. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 1469 f.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

CHEQUE, DANO MORAL E O LIMITE TEMPORAL DA OBRIGAÇÃO DO SACADOR DE MANTER SUFICIENTE PROVISÃO DE FUNDOS PARA COMPENSAÇÃO DO TÍTULO DE CRÉDITO: análise dos REsp 875.161/SC e 1.297.353/SP do STJ


Este artigo é dedicado à querida Daiane,
fã do Rush como eu e leitora declaradamente fiel deste humilde blog,
que, na minha mais recente viagem a Porto Alegre,
pediu que eu tocasse a clássica "Bravado" do trio canadense 
e escrevesse sobre o tema do Direito Empresarial,
área na qual atua enquanto advogada. 

1 - Introdução

No contexto de uma sociedade tipicamente capitalista, tal qual é a brasileira, o estudo do Direito Empresarial adquire importância pari passu ao aprofundamento das negociações comerciais.

Nesse campo vasto de estudos, desponta a teoria geral do Direito Cambiário, que visa a estudar a disciplina jurídica dos títulos de crédito. Estes, a propósito, podem ser definidos como "documentos representativos de obrigações pecuniárias" (COELHO, 2009, p. 231). A importância empresarial desses títulos resulta do fato de proporcionarem ao mercado, simultaneamente, negociabilidade (facilidade na circulação creditícia) e executividade (garantia de mecanismos mais eficientes de cobrança de débitos).


O direito cambiário brasileiro conhece alguns títulos de crédito próprios, a exemplo da letra de câmbio, da nota promissória, da duplicata e do cheque. Pois é justamente sobre este último que versará este artigo. Minha intenção é analisar o regime jurídico dessa espécie de título de crédito paralelamente ao estudo da jurisprudência aplicável à matéria no STJ, especificamente quanto ao limite temporal da obrigação de manutenção de provisão de fundos, junto ao sacado, imposta ao sacador quando da emissão do cheque.   

2 - Noções gerais sobre o regime jurídico do cheque

A disciplina jurídica do título de crédito "cheque" encontra-se prevista em uma lei especial. Trata-se da Lei 7.357/85, que, por razões óbvias, ficou conhecida como "Lei do Cheque". Nesse diploma não há um conceito legal estipulado para a definição do título. No seu art. 1º, encontram-se os elementos do cheque, mas não seu conceito. Ciente disso, a doutrina cuidou de conceituá-lo.

Segundo André Luiz Santa Cruz Ramos (2012, p. 452, grifo meu),

O cheque é uma ordem de pagamento à vista emitida contra um banco em razão de fundos que a pessoa (emitente) tem naquela instituição financeira. É, como visto, um título de modelo vinculado, uma vez que só é cheque aquele documento emitido pelo banco, em talonário específico, com uma numeração própria, seguindo os padrões fixados pelo Banco Central. 

A ideia doutrinária, portanto, que mais fortemente singulariza o cheque perante os demais títulos do direito cambiário brasileiro é a que consiste em considerá-lo uma ordem de pagamento à vista. Essa conclusão é extraível do próprio texto da Lei do Cheque, senão vejamos (grifo meu):

Art. 32 O cheque é pagável à vista. Considera-se não-estrita qualquer menção em contrário.
Parágrafo único - O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação.

Essa ordem de pagamento à vista, por seu turno, é emitida por alguém (devedor) em favor de outrem (credor). Surgem, assim, as figuras do sacador (o emitente do cheque, em geral o correntista), do sacado (a instituição financeira, em geral o banco) e o tomador (credor do título, aquele que irá apresentá-lo perante o banco para obter o pagamento devido).

Do ponto de vista processual, vale recordar que, nos termos do art. 585, inc. I, do CPC (com a redação dada pela Lei 8.953/94),  o cheque é considerado uma das espécies de títulos executivos extrajudicias. In verbis:  

Art. 585.  São títulos executivos extrajudiciais: 
   I - a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, a debênture e o cheque;

Esclarecidos esses conceitos primordiais do regime jurídico aplicável ao título de crédito cheque, quero destacar um importante aspecto da Lei 7.357/85, qual seja, o relativo aos prazos de apresentação e de prescrição da pretensão executória. É o que veremos a seguir.

3 - Diferenciando as consequências do prazo de apresentação e do prazo de prescrição na disciplina jurídica do cheque: o posicionamento do STJ a partir do REsp 875.161/SC 

No estudo da disciplina legal do cheque, é muito importante diferenciar os prazos de apresentação e de prescrição. Aquele reporta-se ao tempo de pagamento. Este ao tempo de execução do título. 

O prazo de apresentação do cheque vem previsto no art. 33 da Lei 7.357/85:

Art . 33 O cheque deve ser apresentado para pagamento, a contar do dia da emissão, no prazo de 30 (trinta) dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago; e de 60 (sessenta) dias, quando emitido em outro lugar do País ou no exterior.
Parágrafo único - Quando o cheque é emitido entre lugares com calendários diferentes, considera-se como de emissão o dia correspondente do calendário do lugar de pagamento.

Sistematizando esse artigo de lei, podemos concluir que o prazo de apresentação de 30 dias aplica-se ao cheque emitido pelo sacador na mesma praça bancária onde haverá de ser pago (o cheque foi emitido na cidade "X" e o banco sacado fica na mesma cidade "X"). Já o prazo de 60 dias aplica-se em casos nos quais a praça bancária de emissão do cheque seja distinta daquela onde houver de ser pago (o cheque foi emitido na cidade "X", mas o banco sacado fica na cidade "Y").  

Aqui, é importante mais uma vez enaltecer que esse prazo de apresentação do cheque para pagamento é substancialmente diverso do prazo prescricional da pretensão que acompanha a executividade do título. Na Lei 7.357/85, inclusive, o dispositivo é diverso: não o art. 33, mas sim o art. 47 autoriza seja promovida a execução mediante o ajuizamento da ação por falta de pagamento do título de crédito. Ei-lo in verbis:

Art . 47 Pode o portador promover a execução do cheque:
I - contra o emitente e seu avalista;
II - contra os endossantes e seus avalistas, se o cheque apresentado em tempo hábil e a recusa de pagamento é comprovada pelo protesto ou por declaração do sacado, escrita e datada sobre o cheque, com indicação do dia de apresentação, ou, ainda, por declaração escrita e datada por câmara de compensação.
§ 1º Qualquer das declarações previstas neste artigo dispensa o protesto e produz os efeitos deste.
§ 2º Os signatários respondem pelos danos causados por declarações inexatas.
§ 3º O portador que não apresentar o cheque em tempo hábil, ou não comprovar a recusa de pagamento pela forma indicada neste artigo, perde o direito de execução contra o emitente, se este tinha fundos disponíveis durante o prazo de apresentação e os deixou de ter, em razão de fato que não lhe seja imputável.
§ 4º A execução independe do protesto e das declarações previstas neste artigo, se a apresentação ou o pagamento do cheque são obstados pelo fato de o sacado ter sido submetido a intervenção, liquidação extrajudicial ou falência.

Como sói acontecer no direito, até por imposição do vetor segurança jurídica, essa pretensão executória que a lei comete ao tomador do cheque inadimplido não pode ficar pairando ad aeternum, qual uma espada de Dâmocles, sobre a cabeça do emitente. É preciso definir um marco temporal limítrofe ao exercício da pretensão executiva. Esse marco é precisamente o prazo prescricional. 

O prazo prescricional a que aludo encontra-se disposto no art. 59 da Lei 7.357/85. Vejamo-lo: 

Art . 59 Prescrevem em 6 (seis) meses, contados da expiração do prazo de apresentação, a ação que o art. 47 desta Lei assegura ao portador.
Parágrafo único - A ação de regresso de um obrigado ao pagamento do cheque contra outro prescreve em 6 (seis) meses, contados do dia em que o obrigado pagou o cheque ou do dia em que foi demandado.

Portanto, a executividade da cártula do cheque desaparece após 6 meses. Notem o detalhe: a contagem desse prazo prescricional é deflagrada pelo término do prazo de apresentação para pagamento (art. 33), seja ele de 30 dias (mesma praça bancária) ou de 60 dias (praças bancárias diferentes).

A esse respeito, houve um tempo em que a jurisprudência do STJ admitiu que a prática comercial de emissão de cheque "pré-datado" ou "pós-datado", isto é, aquele título emitido com data futura para pagamento, tinha o condão de estender o prazo de apresentação inscrito no art. 33 da lei em comento, o que, em consequência, alargaria também o prazo prescricional a ele atrelado. Vejamos um precedente nesse sentido (grifo meu):


Cheque "pré-datado". Prova. Art. 563 do Código de Processo Civil. Precedente da Corte.
1. A prática comercial de emissão de cheque com data futura de apresentação, popularmente conhecido como cheque "pré-datado", não desnatura a sua qualidade cambiariforme, representando garantia de dívida com a conseqüência de ampliar o prazo de apresentação.
2. A questão da prova da culpa e a da existência de relação jurídica subjacente foram consideradas pelo Acórdão recorrido a partir do conjunto probatório, inviável de reapreciação no especial, a teor da Súmula nº 07 da Corte.
3. É obrigatória a ementa, nos termos do art. 563, do Código de Processo Civil, com a redação da Lei nº 8.950/94, não sendo suficiente a simples indicação de que foi negado provimento ao recurso. Todavia, como já decidiu a Corte, "sua falta não implica nulidade de decisão que, se omissa quanto a este ponto, poderá suprir-se via embargos de declaração".
4. Recurso especial não conhecido.
(STJ, REsp 223.486/MG, Terceira Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 08/02/2000, p. DJ 27/03/2000) 

Entretanto, esse posicionamento da Corte encontra-se, hodiernamente, superado. O STJ mudou sua orientação no precedente firmado no julgamento do REsp 875.161/SC, quando o tribunal passou a entender que o cheque deixa de ser título executivo no prazo de 6 meses, contados do término do prazo de apresentação fixado no art. 33 da Lei 7.357/85, não havendo que se falar em ampliação do prazo prescricional por convenção entre sacador e tomador, máxime na hipótese de pactuação extracartular (cheque "pré-datado"). Eis a ementa do julgado em apreço (grifos meus):

DIREITO COMERCIAL.  RECURSO  ESPECIAL.  CHEQUE.  ORDEM DE PAGAMENTO À VISTA. CARACTERE ESSENCIAL DO TÍTULO. DATA  DE  EMISSÃO  DIVERSA  DA  PACTUADA  PARA APRESENTAÇÃO  DA  CÁRTULA. COSTUME  CONTRA  LEGEM. INADMISSÃO  PELO  DIREITO  BRASILEIRO.  CONSIDERA-SE  A DATA DE EMISSÃO CONSTANTE NO CHEQUE.
1.  O  cheque  é  ordem  de  pagamento  à  vista  e  submete-se  aos princípios  cambiários  da  cartularidade,  literalidade,  abstração, autonomia  das  obrigações  cambiais  e  inoponibilidade  das exceções  pessoais  a  terceiros  de  boa-fé,  por  isso  que  a  sua pós-datação não amplia o prazo de apresentação da cártula, cujo marco inicial é, efetivamente, a data da emissão.
2.  "A alteração do prazo de apresentação do cheque pós-datado implicaria na dilação do prazo prescricional do título, situação que deve ser repelida, visto que infringiria o artigo 192 do Código Civil. Assentir com a  tese  exposta  no  especial,  seria  anuir  com  a possibilidade  da  modificação  casuística  do  lapso  prescricional, em  razão  de  cada  pacto  realizado  pelas  partes".  (AgRg  no  Ag 1159272/DF,  Rel.  Ministro  VASCO  DELLA  GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 13/04/2010, DJe 27/04/2010)
3. Não se pode admitir que  a parte descumpra o  artigo 32 da Lei 7.357/85  e,  ainda  assim,  pretenda  seja  conferida  interpretação antinômica  ao  disposto  no  artigo  59  do  mesmo  Diploma,  para admitir  a  execução do título prescrito.  A  concessão de  efeitos  à pactuação extracartular  representaria  desnaturação  do  cheque naquilo  que  a  referida  espécie  de  título  de  crédito  tem  de essencial,  ser  ordem  de  pagamento  à  vista,  além  de  violar  os princípios da abstração e literalidade.
4. Recurso especial não provido.
(STJ, REsp 875.161/SC, Quarta Turma, Rel. Min. luiz Felipe Salomão, j. 09/08/2011, p. DJe 22/08/2011)

Da leitura desse precedente, é possível concluir que a atual jurisprudência do STJ entende que, findo o prazo de apresentação (art. 33), inicia-se o cômputo do prazo prescricional da pretensão de execução do cheque inadimplido (art. 59), o qual se encontra vinculado à data em que o título foi emitido. Sendo assim, em se tratando de prescrição, o tribunal nega efeitos jurídicos à prática comercial corrente de "pré-datar" ou "pós-datar" o cheque, já que a mera convenção entre sacador e tomador não tem o poder de alterar a disciplina legal dos prazos prescricionais, dilatando-os ilegalmente.

A consequência dessa decisão do STJ está na assunção de riscos pelo tomador do título de crédito: ao aceitar um cheque "pré-datado" ou "pós-datado", o credor terá de arcar com o ônus de ver o transcurso do prazo prescricional iniciar-se do término da data de apresentação para pagamento na praça bancária, o que, no futuro, pode resultar na prescrição da pretensão executória da cártula. Nessa circunstância, consequentemente, restringir-se-ia  a cobrança do cheque prescrito apenas às vias processuais da ação monitória ou da ação de conhecimento - aqui com todas as fases de instrução probatória que o título executivo extrajudicial automaticamente dispensaria.

4 - O prazo de apresentação do cheque para pagamento e a limitação temporal da obrigação do sacador de manter provisão de fundos junto ao sacado para fins de adimplemento do título de crédito conferido ao tomador: pressupostos caracterizados de dano moral na jurisprudência de direito cambiário do STJ

Nessa matéria, outro ponto importante a destacar-se diz respeito à relação eventualmente existente entre o dever de o sacador manter fundos junto ao sacado para satisfazer a obrigação pecuniária representada pelo título de crédito. Afinal, haveria algum limite temporal desse dever atribuído ao emitente do cheque? Ou ele perduraria eternamente?

A discussão é relevante, embora seja fácil presumir uma resposta. A ideia da "eternidade" da obrigação do sacador soa estranha, porque o direito normalmente é infenso à perpetuidade das relações obrigacionais. Desse modo, o vetor da segurança jurídica impõe seja estabelecido um limite de tempo à obrigação pecuniária. A questão consiste apenas em saber qual será a baliza a limitar no tempo o dever obrigacional do emitente do cheque.

Sobre esse ponto, mais uma vez, ganha importância o estudo do prazo de apresentação do cheque para pagamento.

Já sabemos que, a teor do art. 33 da Lei 7.357/85, o cheque deve ser apresentado perante o sacado no prazo de 30 ou 60 dias, conforme se cuide, respectivamente, de mesmas ou diferentes praças bancárias, a contar da data da emissão do título. Pois é justamente esse prazo de apresentação que irá balizar o limite temporal da obrigação do emitente do cheque no sentido de garantir suficiente provisão de fundos junto ao sacado. Dito de outro modo, uma vez expirado o prazo de apresentação para pagamento, seja ele de 30 ou de 60 dias, o sacador (emitente) fica liberado da obrigação de manter dinheiro em conta bancária para que o banco sacado venha a descontar, em favor do tomador, o valor inscrito na cártula do cheque. Assim decidiu o STJ no julgamento do REsp 1.297.353/SP. Colaciono (grifo meu):   

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL.  TÍTULOS DE CRÉDITO.  CHEQUE.  PRAZO DE APRESENTAÇÃO. DEVOLUÇÃO DE CHEQUE PRESCRITO POR FALTA DE FUNDOS.  MOTIVO INDEVIDO.  INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES.  DANO MORAL CONFIGURADO.
1.- O prazo estabelecido para a apresentação do cheque (30 dias, quando  emitido  no  lugar  onde  houver  de  ser  pago  e  de  60  dias, quando  emitido  em  outra  praça)  serve,  entre  outras  coisas,  como limite  temporal  da  obrigação  que  o  emitente  tem  de  manter provisão  de  fundos  em  conta  bancária,  suficiente  para  a compensação do título.
2.-  Ultrapassado  o  prazo  de  apresentação,  não  se  justifica  a devolução  do  cheque  pelos  "motivos  11  e  12"  do  Manual Operacional da COMPE. Isso depõe contra a honra do sacador, na  medida  em  que  ele  passa  por inadimplente  quando,  na realidade, não já que não tinha mais a obrigação de manter saldo em conta.
3.- Tal conclusão ainda mais se reforça quando,  além do prazo de  apresentação,  também  transcorreu  o  prazo  de  prescrição, hipótese em que o próprio Manual determinada a devolução por motivo diverso ("motivo 44").
4.- No caso concreto, a devolução por motivo indevido ganhou publicidade com a inclusão do nome do consumidor no Cadastro de Emitentes  de Cheques sem  Fundo - CCF,  gerando  direito  à indenização por danos morais.
5.- Recurso Especial provido.
(STJ, REsp 1297353/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 16/10/2012, p. DJe 19/10/2012).   

Aceitando-se a premissa de que o prazo de apresentação serve de limite temporal à obrigação de manter provisão de fundos suficientes para a satisfação da ordem de pagamento contida no cheque, findo esse prazo, o sacador não mais poderá ser considerado responsável pela emissão de cheque sem fundos. E isso porque, repiso, o sacador, uma vez expirado o prazo de apresentação do cheque, já não mais estará obrigado a ter saldo suficiente em conta bancária para adimplir o título de crédito. 

Logo, partindo desse raciocínio, a teor da ementa do julgado supracitado, nota-se que a Terceira Turma do STJ consignou haver dano moral, a depor contra a honra do sacador, sempre que for efetuada a inclusão do seu nome no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundo (CCF) após a expiração do prazo de apresentação do título pelo tomador, tal qual se encontra previsto na Lei 7.357/85.

5 - Conclusão

No estudo do Direito Cambiário brasileiro, o cheque qualifica-se qual uma ordem de pagamento à vista. Essa característica, que se pode considerar a nota distintiva precípua dessa espécie de título de crédito, vem inscrita na lei especial que o regula (Lei 7.357/85).    

Essa mesma legislação estabelece ainda outros aspectos importantes do regime jurídico atrelado ao cheque. Nesse sentido, destaca-se o prazo de apresentação para pagamento (art. 33), que é o limite de tempo, contado da data de emissão da cártula, garantido por lei ao tomador que deseja beneficiar-se da ordem de pagamento à vista perante o sacado. Expirado esse prazo de apresentação para pagamento, inicia-se o cômputo do prazo prescricional de 6 meses (art. 59) da ação de execução que a lei assegura ao portador (art. 47) do cheque - típico título executivo extrajudicial (CPC, art. 585, I).

Nesse sentido, cumpre sublinhar que o STJ entende não ser possível a alteração do prazo de apresentação do cheque para pagamento - e, conseguintemente, a ampliação do prazo de prescrição a ele atrelado - na hipótese de o título de crédito ter sido emitido de maneira "pré-datada" ou "pós-datada". Para o STJ, ainda que se trate de cheque pré-datado, o marco inicial da contagem dar-se-á a partir da data de emissão do título (REsp 875.161/SC), independentemente de existir convenção  extracartular entre o sacador e o tomador.     

Igualmente, é preciso assinalar que o prazo de apresentação do cheque para pagamento tem ainda outra importante função, qual seja, a de balizar temporalmente a obrigação pecuniária do sacador, consistente na mantença de provisão de fundos junto ao banco sacado para que seja adimplida a ordem de pagamento à vista. Ora, uma vez expirado o prazo de apresentação, o sacado não está mais obrigado a garantir a existência de fundos na conta bancária, de modo que eventual apresentação do cheque para desconto não autorizará o sacado a inscrevê-lo em Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundo (CCF), sob pena de restar configurado dano moral, a implicar direito à indenização em favor do emitente do cheque que teve sua honra maculada no mercado de consumo (REsp 1297353/SP).   
 
REFERÊNCIAS
COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 21ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. 497 f.  
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012. 816 f.