Em destaque, Min. Laurita Vaz, relatora do HC 190.759/RS no STJ. |
1 - Introdução
Quando estudamos processo penal, uma das primeiras lições a aprender diz respeito ao conceito de competência. Aprendemos que, embora a atividade jurisdicional oriente-se pelo princípio da unidade de jurisdição, o seu caráter uno não é absoluto, comportando repartições.
O Estado, assim, reparte a competência entre vários órgãos, de modo a racionalizar a prestação do serviço jurisdicional. Essa racionalização funda-se em regras, ditas regras de competência, que, por esse motivo, conceituam esse capítulo da doutrina processualista como sendo o que estabelece o limite da jurisdição. Portanto, se jurisdição, na terminologia processual, denota o poder, mais precisamente o poder de determinar o direito aplicável ao caso concreto, competência é conceito que se reporta ao limite desse poder (competência é o limite da jurisdição).
Como disse acima, a competência estatal de dizer o direito é repartida entre vários órgãos - todos igualmente dotados de jurisdição. Por razões históricas relacionadas ao federalismo, a Constituição é o locus privilegiado para efetuar essa repartição. As normas constitucionais são, consequentemente, a fonte primária das regras competenciais. Mas há regras de competência previstas também na legislação infraconstitucional, de modo a dar maior especificidade ao ideal de racionalização do exercício da atividade jurisdicional.
O importante é notar que há casos em que se dará a modificação da competência de um determinado órgão jurisdicional (desde que essa competência seja relativa, é claro, uma vez que a competência absoluta é inderrogável). Essa modificação é feita mediante os institutos da conexão e da continência. Ambos visam a assegurar o julgamento único desses feitos distintos (é o chamado simultaneus processus), pois, em razão de determinadas circunstâncias elencadas em lei (por exemplo: várias pessoas praticaram um mesmo crime, ou um fato delitusoso influi decisivamente na prova de outro), o legislador entende conveniente que se proceda ao seu julgamento conjunto. As razões são gritantes: economia processual, celeridade, maior facilidade na instrução probatória, até a salvaguarda da credibilidade da justiça (evita-se decisões conflitantes).
Conexão é, assim, o nexo que faz com que dois ou mais fatos delituosos, em princípio passíveis de julgamento por juízos distintos, sejam julgados no curso de um único processo (simultaneus processus). A continência, por seu turno, é a unicidade que decorre da circunstância de uma demanda estar contida em outra (exemplo é o que ocorre no concurso formal de delitos, quando há uma só conduta a gerar dois ou mais resultados lesivos, logo, é bastante racional supor que, dado o liame que os une, fundados que estão em uma mesma conduta, os fatos sejam julgados por um mesmo juízo).
2 - A sistemática processual penal do foro prevalente
No Código de Processo Penal brasileiro, o art. 76 estabelece as hipóteses em que haverá modificação da competência pela conexão. In verbis:
O Estado, assim, reparte a competência entre vários órgãos, de modo a racionalizar a prestação do serviço jurisdicional. Essa racionalização funda-se em regras, ditas regras de competência, que, por esse motivo, conceituam esse capítulo da doutrina processualista como sendo o que estabelece o limite da jurisdição. Portanto, se jurisdição, na terminologia processual, denota o poder, mais precisamente o poder de determinar o direito aplicável ao caso concreto, competência é conceito que se reporta ao limite desse poder (competência é o limite da jurisdição).
Como disse acima, a competência estatal de dizer o direito é repartida entre vários órgãos - todos igualmente dotados de jurisdição. Por razões históricas relacionadas ao federalismo, a Constituição é o locus privilegiado para efetuar essa repartição. As normas constitucionais são, consequentemente, a fonte primária das regras competenciais. Mas há regras de competência previstas também na legislação infraconstitucional, de modo a dar maior especificidade ao ideal de racionalização do exercício da atividade jurisdicional.
O importante é notar que há casos em que se dará a modificação da competência de um determinado órgão jurisdicional (desde que essa competência seja relativa, é claro, uma vez que a competência absoluta é inderrogável). Essa modificação é feita mediante os institutos da conexão e da continência. Ambos visam a assegurar o julgamento único desses feitos distintos (é o chamado simultaneus processus), pois, em razão de determinadas circunstâncias elencadas em lei (por exemplo: várias pessoas praticaram um mesmo crime, ou um fato delitusoso influi decisivamente na prova de outro), o legislador entende conveniente que se proceda ao seu julgamento conjunto. As razões são gritantes: economia processual, celeridade, maior facilidade na instrução probatória, até a salvaguarda da credibilidade da justiça (evita-se decisões conflitantes).
Conexão é, assim, o nexo que faz com que dois ou mais fatos delituosos, em princípio passíveis de julgamento por juízos distintos, sejam julgados no curso de um único processo (simultaneus processus). A continência, por seu turno, é a unicidade que decorre da circunstância de uma demanda estar contida em outra (exemplo é o que ocorre no concurso formal de delitos, quando há uma só conduta a gerar dois ou mais resultados lesivos, logo, é bastante racional supor que, dado o liame que os une, fundados que estão em uma mesma conduta, os fatos sejam julgados por um mesmo juízo).
2 - A sistemática processual penal do foro prevalente
No Código de Processo Penal brasileiro, o art. 76 estabelece as hipóteses em que haverá modificação da competência pela conexão. In verbis:
Art. 76. A competência será determinada pela
conexão:
I - se, ocorrendo
duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias
pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o
lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II - se, no mesmo
caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou
para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
III - quando a prova
de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na
prova de outra infração.
Já ao art. 77 do mesmo diploma coube a tarefa de definir as hipóteses de continência.
Reproduzi esses dispositivos pela contextura do raciocínio que estou a desenvolver. Porém, mais importante mesmo, para os fins deste artigo, é a leitura do art. 78 do CPP. Colaciono:
O art. 78 é dispositivo de relevo para a sistemática processual. Nele, como o leitor já notou, estão explicitadas as regras de fixação da competência para as hipóteses em que ocorrer conexão ou continência. Aí estão dispostas as regras que determinam o chamado "foro prevalente", que é aquele que, dentre juízos virtualmente competentes, há de concentrar o julgamento da causa (seja com base no critério das infrações ou dos acusados). Cabe a ele (foro prevalente) o julgamento único do feito, em razão de atrair para si a competência. É o que se chama em doutrina de vis attractiva, que outra coisa não quer dizer senão que o foro prevalente prorroga sua competência, para julgar um caso que, em princípio, não lhe competiria segundo as regras ordinárias de distribuição de feitos, de lugar da infração, de espécie de crime etc.
Ao ler o art. 78 do CPP, podemos facilmente depreender o sentido de algumas normas. Assim, há regra que determina que, se houver conexão entre crime de competência da justiça comum e crime de competência de justiça especial (especializada), prevalecerá a competência desta última (CPP. art. 78, IV). Ou seja, no concurso de jurisdições especial (militar, eleitoral) e comum (federal, estadual), cabe àquela, em tese, processar e julgar todos os delitos eventualmente conexos. Porém, se se tratar de crime de competência federal conexo a crime de competência estadual, o STJ afasta a aplicação do critério de preponderância da infração à qual for cominada a pena mais grave (CPP, art. 78, II, a), para firmar que o juízo federal exercerá a vis attractiva do simultaneus processus. É o que estipula o enunciado 122 da súmula de jurisprudência daquele tribunal superior:
Outra conclusão fácil de se perceber à luz do art. 78 do Código de Processo Penal refere-se à conexão (ou continência) de crime comum com crime da competência do Tribunal do Júri (crimes dolosos contra a vida). Em tais hipóteses, a lei determina que caberá ao júri a vis attractiva, de modo que tanto o crime doloso contra a vida quanto o crime comum serão julgados pelo Tribunal do Júri (CPP, art. 78, I). Contudo, a regra da justiça especial permanece válida, de modo que, se o crime doloso contra a vida for conexo a crime militar ou eleitoral, haverá obrigatoriamente separação do julgamento dos processos (idêntico raciocínio aplica-se ao concurso da jurisdição comum com a do juízo de menores, a acarretar a separação obrigatória dos processos que envolvam coautoria entre agente maior de 18 anos e agente abaixo desse limite etário, nos termos do art. 79, II, do CPP). Ressalva parecida pode ser feita quanto à hipótese de a conexão envolver crime doloso contra a vida e crime de competência comum federal, caso em que a Justiça Federal exercerá a vis attractiva (realizar-se-á júri federal).
No caso de infração cometida por agente que detenha foro privilegiado (ou foro por prerrogativa de função) com coautor sem o mesmo foro, será o caso de aplicar-se a regra do art. 78, III, do CPP, nos termos da qual é competente o órgão de maior graduação (hierarquicamente superior). Logo, por exemplo, se um senador da República pratica peculato com auxílio de um assessor (cidadão comum, sem foro privilegiado), ambos serão julgados perante o STF, que é detentor de competência originária (ratione personae) para o processo e julgamento dos membros do Congresso Nacional nas infrações penais comuns (CF, art. 102, I, b). Inclusive, não há que se falar em violação ao princípio do juiz natural nessas hipóteses, consoante entendimento consagrado no enunciado 704 da súmula de jurisprudência do STF:
Entretanto, exsurge a pergunta: se as jurisdições forem todas de mesma categoria? Isto é, se os juízos pertencerem ao mesmo grau hierárquico? Resolver-se-á em favor de quem o conflito?
Para dirimir essa dúvida, o leitor deve socorrer-se do art. 78 do CPP. Ali logo se notará que, em havendo concurso de jurisdições de mesmo grau hierárquico, "preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave" (art. 78, II, a). O exemplo clássico dado pela doutrina é o dos crimes de receptação (CP, art. 180) e de roubo (CP, art. 157). Aquele tem pena de 1 a 4 anos de reclusão, já este tem pena de 4 a 10 anos de reclusão. Segundo esse raciocíno, se receptação foi praticada na cidade "X", mas com produto de roubo perpetrado na cidade "Y", então, o foro prevalente para o julgamento do feito será o da cidade "Y", que exercerá a vis attractiva diante do fato de que o art. 157 tem pena privativa de liberdade, cominada em abstrato, mais elevada (entre roubo e receptação estabelecer-se-ia a conexão probatória ou instrumental, em face de a prova do primeiro influir na prova do segundo, tudo nos termos do que dispõe o art. 76, III, do CPP).
Jurisprudencialmente, o STJ acaba de reiterar esse raciocínio no julgamento do HC 190.756/RS. Nesse precedente, um réu impetrou habeas corpus com vistas a que o juízo de Porto Alegre fosse declarado competente para o processamento de feito que fora remetido para o juízo de Santa Maria. A concorrência de jurisdições envolvia fatos que apontavam para a prática dos delitos de extorsão (CP, art. 158), supostamente cometido em Porto Alegre, e de peculato-desvio (CP, art. 312, caput), corrupção passiva (CP, art. 317, caput), corrupção ativa (CP, art. 333, caput). Vejamos como a Quinta Turma do STJ decidiu o HC (grifos meus):
Com a ementa desse acórdão, o STJ explicita bem a exegese do art. 78, II, a, do CPP. Porém, a matéria relativa à fixação de competência por conexão ou continência no concurso de jurisdições de mesma categoria não se esgota nesse ponto. Basta pensar que pode suceder de os crimes conexos possuírem mesma pena máxima cominada em abstrato. Nesse ponto, há insuficiência notória do critério da gravidade do delito. Dessa maneira, será preciso recorrer à regra seguinte, nos termos da qual, em se tratando de infrações com a mesma gravidade, o foro prevalente determinar-se-á em favor do juízo do lugar em que tenha ocorrido a consumação do maior número de crimes (CPP, art. 78, II, b). Por fim, se suceder de os crimes terem igual gravidade, tendo sido praticados em diferentes lugares com o mesmo número de infrações, a lei se socorre de um critério subsidiário de fixação da competência, atribuindo a vis attractiva ao juízo prevento (CPP, art. 78, II, c), isto é, o juízo que tiver antecedido aos demais na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia (CPP, art. 83).
3 - Conclusão
Embora a competência seja fixada de conformidade com regras previstas ora na Constituição, ora na lei, há hipóteses de modificação dessa mesma competência. Seja pela conexão, seja pela continência, um juízo que, em princípio não julgaria a causa, pode vir a fazê-lo. É que o CPP estabelece regras de foro prevalente, onde se dará, por razões de economia processual, e também para evitar decisões contraditórias, o simultaneus processus, isto é, o julgamento dos feitos distintos em um mesmo processo, perante um mesmo juízo.
As regras de foro prevalente do CPP, que determinam a fixação da competência em casos de crimes conexos, situam-se no art. 78. É nesse dispositivo que se pode encontrar as regras da vis attractiva, as quais incidem para fixar a competência em um ou outro juízo.
No precedente analisado neste artigo, busquei evidenciar de que maneira a jurisprudência posicionou-se em relação a uma dessas regras, mais precisamente àquela insculpida no art. 78, II, a, do código, segundo a qual, no concurso de jurisdições da mesma categoria (mesmo grau hierárquico), a vis attractiva preponderará em favor do juízo do local onde se tenha consumado a infração com a pena mais grave.
Nesse sentido, a ementa do acórdão do HC 190.756/RS evidencia a interpretação que o STJ faz sobre a regra do art. 78, II, a, do CPP. Para aquele tribunal superior, na hipótese de concurso de jurisdições de mesma categoria, deve-se repelir a argumentação segundo a qual a fixação da competência dar-se-ia com base no delito que tivesse pena mínima, cominada em abstrato, mais elevada. Logicamente, o tirocínio do STJ seguiu a lição já consagrada em sede doutrinária e jurisprudencial, a dar conta de que, para efeito do que dispõe o art. 78, II, a, do CPP, o julgador deverá observar a pena máxima cominada em abstrato aos delitos conexos, a fim de resolver eventual conflito de competência manifesto entre juízos concorrentes de mesma categoria.
Art. 77. A competência será determinada pela
continência quando:
I - duas ou mais
pessoas forem acusadas pela mesma infração;
II - no caso de
infração cometida nas condições previstas nos arts. 51, § 1o, 53, segunda
parte, e 54 do Código Penal.
Reproduzi esses dispositivos pela contextura do raciocínio que estou a desenvolver. Porém, mais importante mesmo, para os fins deste artigo, é a leitura do art. 78 do CPP. Colaciono:
Art. 78. Na determinação da competência por
conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras:
I - no concurso
entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá
a competência do júri;
Il - no concurso de
jurisdições da mesma categoria:
a) preponderará a do lugar da
infração, à qual for cominada a pena mais grave;
b) prevalecerá a do lugar em
que houver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem
de igual gravidade;
c) firmar-se-á a competência
pela prevenção, nos outros casos;
III - no concurso
de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação;
IV - no concurso
entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.
O art. 78 é dispositivo de relevo para a sistemática processual. Nele, como o leitor já notou, estão explicitadas as regras de fixação da competência para as hipóteses em que ocorrer conexão ou continência. Aí estão dispostas as regras que determinam o chamado "foro prevalente", que é aquele que, dentre juízos virtualmente competentes, há de concentrar o julgamento da causa (seja com base no critério das infrações ou dos acusados). Cabe a ele (foro prevalente) o julgamento único do feito, em razão de atrair para si a competência. É o que se chama em doutrina de vis attractiva, que outra coisa não quer dizer senão que o foro prevalente prorroga sua competência, para julgar um caso que, em princípio, não lhe competiria segundo as regras ordinárias de distribuição de feitos, de lugar da infração, de espécie de crime etc.
Ao ler o art. 78 do CPP, podemos facilmente depreender o sentido de algumas normas. Assim, há regra que determina que, se houver conexão entre crime de competência da justiça comum e crime de competência de justiça especial (especializada), prevalecerá a competência desta última (CPP. art. 78, IV). Ou seja, no concurso de jurisdições especial (militar, eleitoral) e comum (federal, estadual), cabe àquela, em tese, processar e julgar todos os delitos eventualmente conexos. Porém, se se tratar de crime de competência federal conexo a crime de competência estadual, o STJ afasta a aplicação do critério de preponderância da infração à qual for cominada a pena mais grave (CPP, art. 78, II, a), para firmar que o juízo federal exercerá a vis attractiva do simultaneus processus. É o que estipula o enunciado 122 da súmula de jurisprudência daquele tribunal superior:
STJ Súmula nº 122 - 01/12/1994 - DJ 07.12.1994.
Competência -
Crimes Conexos - Federal e Estadual - Processo e Julgamento
Compete à Justiça Federal o processo e julgamento
unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se
aplicando a regra do Art. 78, II, "a", do Código de Processo Penal.
Outra conclusão fácil de se perceber à luz do art. 78 do Código de Processo Penal refere-se à conexão (ou continência) de crime comum com crime da competência do Tribunal do Júri (crimes dolosos contra a vida). Em tais hipóteses, a lei determina que caberá ao júri a vis attractiva, de modo que tanto o crime doloso contra a vida quanto o crime comum serão julgados pelo Tribunal do Júri (CPP, art. 78, I). Contudo, a regra da justiça especial permanece válida, de modo que, se o crime doloso contra a vida for conexo a crime militar ou eleitoral, haverá obrigatoriamente separação do julgamento dos processos (idêntico raciocínio aplica-se ao concurso da jurisdição comum com a do juízo de menores, a acarretar a separação obrigatória dos processos que envolvam coautoria entre agente maior de 18 anos e agente abaixo desse limite etário, nos termos do art. 79, II, do CPP). Ressalva parecida pode ser feita quanto à hipótese de a conexão envolver crime doloso contra a vida e crime de competência comum federal, caso em que a Justiça Federal exercerá a vis attractiva (realizar-se-á júri federal).
No caso de infração cometida por agente que detenha foro privilegiado (ou foro por prerrogativa de função) com coautor sem o mesmo foro, será o caso de aplicar-se a regra do art. 78, III, do CPP, nos termos da qual é competente o órgão de maior graduação (hierarquicamente superior). Logo, por exemplo, se um senador da República pratica peculato com auxílio de um assessor (cidadão comum, sem foro privilegiado), ambos serão julgados perante o STF, que é detentor de competência originária (ratione personae) para o processo e julgamento dos membros do Congresso Nacional nas infrações penais comuns (CF, art. 102, I, b). Inclusive, não há que se falar em violação ao princípio do juiz natural nessas hipóteses, consoante entendimento consagrado no enunciado 704 da súmula de jurisprudência do STF:
STF, Súmula nº 704 - 24/09/2003 - DJ
de 9/10/2003, p. 6; DJ de 10/10/2003, p. 6; DJ de 13/10/2003, p. 6.
Garantias do Juiz Natural - Ampla Defesa - Devido Processo Legal -
Atração por Continência ou Conexão - Prerrogativa de Função
Não viola as garantias do juiz natural, da ampla
defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do
processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.
Para dirimir essa dúvida, o leitor deve socorrer-se do art. 78 do CPP. Ali logo se notará que, em havendo concurso de jurisdições de mesmo grau hierárquico, "preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave" (art. 78, II, a). O exemplo clássico dado pela doutrina é o dos crimes de receptação (CP, art. 180) e de roubo (CP, art. 157). Aquele tem pena de 1 a 4 anos de reclusão, já este tem pena de 4 a 10 anos de reclusão. Segundo esse raciocíno, se receptação foi praticada na cidade "X", mas com produto de roubo perpetrado na cidade "Y", então, o foro prevalente para o julgamento do feito será o da cidade "Y", que exercerá a vis attractiva diante do fato de que o art. 157 tem pena privativa de liberdade, cominada em abstrato, mais elevada (entre roubo e receptação estabelecer-se-ia a conexão probatória ou instrumental, em face de a prova do primeiro influir na prova do segundo, tudo nos termos do que dispõe o art. 76, III, do CPP).
Jurisprudencialmente, o STJ acaba de reiterar esse raciocínio no julgamento do HC 190.756/RS. Nesse precedente, um réu impetrou habeas corpus com vistas a que o juízo de Porto Alegre fosse declarado competente para o processamento de feito que fora remetido para o juízo de Santa Maria. A concorrência de jurisdições envolvia fatos que apontavam para a prática dos delitos de extorsão (CP, art. 158), supostamente cometido em Porto Alegre, e de peculato-desvio (CP, art. 312, caput), corrupção passiva (CP, art. 317, caput), corrupção ativa (CP, art. 333, caput). Vejamos como a Quinta Turma do STJ decidiu o HC (grifos meus):
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DESCABIMENTO. COMPETÊNCIA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DESTE SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MATÉRIA DE DIREITO
ESTRITO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO DO STJ, EM CONSONÂNCIA COM O DO STF. DIREITO
PROCESSUAL PENAL. ART. 78, INCISO II, ALÍNEA A, DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL. CONCURSO DE JURISDIÇÕES DE MESMA
CATEGORIA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DO LUGAR ONDE PRATICADA
A INFRAÇÃO A QUE
FOR COMINADA, ABSTRATAMENTE, A PENA
MÁXIMA MAIS ALTA. IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM
DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
1. O Excelso Supremo Tribunal Federal,
em recente alteração jurisprudencial, retomou
o curso regular
do processo penal,
ao não mais admitir
o habeas corpus
substitutivo do recurso
ordinário. Precedentes: HC 109.956/PR, 1.ª Turma, Rel. Min. MARCO
AURÉLIO, julgado em 07/08/2012, DJe de 10/09/2012; HC 104.045/RJ,
1.ª Turma, Rel. Min. ROSA WEBER, julgado em 28/08/2012, DJe de 05/09/2012.
Decisões monocráticas dos ministros LUIZ
FUX e DIAS
TOFFOLI, respectivamente,
nos autos do HC 114.550/AC (DJe de 27/08/2012) e HC 114.924/RJ (DJe de 27/08/2012).
2. Sem embargo, mostra-se precisa
a ponderação lançada pelo Ministro
MARCO AURÉLIO, no
sentido de que,
"no tocante a
habeas já formalizado sob a
óptica da substituição
do recurso constitucional, não ocorrerá
prejuízo para o
paciente, ante a
possibilidade de vir-se
a conceder, se for o caso, a
ordem de ofício. “
3. Não é o que ocorre no caso. Na hipótese, em que há concurso entre jurisdições
de mesma categoria, discute-se o local do Juízo em que praticada a conduta mais grave.
Em Porto Alegre/RS foi
cometido o delito
de extorsão (art. 158,
do Estatuto Repressor),
cuja pena cominada
em abstrato é
de 4 (quatro) a
10 (dez) anos
de reclusão e,
em Santa Maria/RS,
os delitos de
peculato desvio (art.
312, caput), corrupção
passiva (art. 317, caput)
e corrupção ativa (art. 333, caput),
todos punidos com reclusão
2 (dois) a 12 (doze)
anos, conforme o Código Penal.
4. No concurso
de jurisdições de mesma
categoria, prevê o
art. 78, inciso II, alínea a, do
Código de Processo Penal, que "preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave ".
5. A gravidade do delito, para
fins penais, é
estabelecida pelo Legislador. Por
isso, tem-se por mais grave o delito para o qual está prevista a possibilidade
de, abstratamente, ser conferida pena maior. Doutrina.
6. Ora, o Legislador permitiu cominar sanção mais alta a determinado delito
porque previu hipóteses em que a conduta ocorre sob particularidades de maior reprovabilidade,
razão pela qual
essa deve, em
abstrato, ser entendida como a
mais grave.
7. É competente o juízo do
lugar do crime
em que a pena
máxima cominada é a mais alta, e não o daquele em que a pena mínima é maior.
8. Ausência de ilegalidade
flagrante que permita a concessão da ordem
de ofício.
9. Habeas corpus não conhecido.
(STJ, Quinta Turma, HC 190.756/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23/10/2012, p. DJe 31/10/2012).
(STJ, Quinta Turma, HC 190.756/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23/10/2012, p. DJe 31/10/2012).
Com a ementa desse acórdão, o STJ explicita bem a exegese do art. 78, II, a, do CPP. Porém, a matéria relativa à fixação de competência por conexão ou continência no concurso de jurisdições de mesma categoria não se esgota nesse ponto. Basta pensar que pode suceder de os crimes conexos possuírem mesma pena máxima cominada em abstrato. Nesse ponto, há insuficiência notória do critério da gravidade do delito. Dessa maneira, será preciso recorrer à regra seguinte, nos termos da qual, em se tratando de infrações com a mesma gravidade, o foro prevalente determinar-se-á em favor do juízo do lugar em que tenha ocorrido a consumação do maior número de crimes (CPP, art. 78, II, b). Por fim, se suceder de os crimes terem igual gravidade, tendo sido praticados em diferentes lugares com o mesmo número de infrações, a lei se socorre de um critério subsidiário de fixação da competência, atribuindo a vis attractiva ao juízo prevento (CPP, art. 78, II, c), isto é, o juízo que tiver antecedido aos demais na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia (CPP, art. 83).
3 - Conclusão
Embora a competência seja fixada de conformidade com regras previstas ora na Constituição, ora na lei, há hipóteses de modificação dessa mesma competência. Seja pela conexão, seja pela continência, um juízo que, em princípio não julgaria a causa, pode vir a fazê-lo. É que o CPP estabelece regras de foro prevalente, onde se dará, por razões de economia processual, e também para evitar decisões contraditórias, o simultaneus processus, isto é, o julgamento dos feitos distintos em um mesmo processo, perante um mesmo juízo.
As regras de foro prevalente do CPP, que determinam a fixação da competência em casos de crimes conexos, situam-se no art. 78. É nesse dispositivo que se pode encontrar as regras da vis attractiva, as quais incidem para fixar a competência em um ou outro juízo.
No precedente analisado neste artigo, busquei evidenciar de que maneira a jurisprudência posicionou-se em relação a uma dessas regras, mais precisamente àquela insculpida no art. 78, II, a, do código, segundo a qual, no concurso de jurisdições da mesma categoria (mesmo grau hierárquico), a vis attractiva preponderará em favor do juízo do local onde se tenha consumado a infração com a pena mais grave.
Nesse sentido, a ementa do acórdão do HC 190.756/RS evidencia a interpretação que o STJ faz sobre a regra do art. 78, II, a, do CPP. Para aquele tribunal superior, na hipótese de concurso de jurisdições de mesma categoria, deve-se repelir a argumentação segundo a qual a fixação da competência dar-se-ia com base no delito que tivesse pena mínima, cominada em abstrato, mais elevada. Logicamente, o tirocínio do STJ seguiu a lição já consagrada em sede doutrinária e jurisprudencial, a dar conta de que, para efeito do que dispõe o art. 78, II, a, do CPP, o julgador deverá observar a pena máxima cominada em abstrato aos delitos conexos, a fim de resolver eventual conflito de competência manifesto entre juízos concorrentes de mesma categoria.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 190.756/RS, da Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 23/10/2012, publicado no DJE em 31/10/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 28 dez. 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 190.756/RS, da Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 23/10/2012, publicado no DJE em 31/10/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 28 dez. 2012.