sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

RT Comenta: DIREITO AMBIENTAL - Princípios do Direito Ambiental


Prova: Advogado BNDES 2013 
Tipo: Objetiva
Banca:
49

Os princípios do Direito Ambiental são fundamentais para análise e interpretação deste ramo do Direito, que se volta para a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

 
Considerando as orientações dos princípios do Direito Ambiental, analise as afirmações abaixo.

 
I - Os danos ambientais somente devem ser evitados quando se tenha certeza científica quanto à sua ocorrência, sob pena de ofensa à livre iniciativa.

 
II - É dever do empreendedor incorporar as externalidades negativas de seu processo produtivo, para que a coletividade não seja destinatária de tais ônus.

 
III - A discussão sobre dano moral ambiental relaciona-se à responsabilidade por danos ambientais, que é objetiva e baseada na teoria do risco integral.

 
É correto o que se afirma em

(A) I, apenas

(B) III, apenas

(C) I e II, apenas

(D) II e III, apenas

(E) I, II e III.
 

Hoje decidi comentar as questões de Direito Ambiental que foram recentemente objeto de cobrança na prova de advogado do BNDES. A banca que preparou o certame foi a Fundação CESGRANRIO.

A questão 49 não pode ser respondida diretamente, pois demanda raciocínio analítico a respeito de cada uma das afirmações. Sendo assim, peço ao leitor que me acompanhe nessa análise.

 
Afirmação I: está errada.

Note o leitor que o comando da questão alude aos princípios do Direito Ambiental. Entre estes, encontra-se o princípio da precaução. Trata-se do princípio 15 da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, proclamada na cidade do Rio de Janeiro, em 1992, por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Ei-lo (grifo meu):

Princípio 15

Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.

Ou seja, consoante o princípio da precaução, sempre que inexistir certeza científica quanto aos riscos de danos graves à natureza, estabelece-se uma presunção relativa em favor da proteção do meio ambiente, ora para impor ao autor de projeto econômico que faça prova de que sua ação não é prejudicial ao ecossistema (inversão do ônus da prova), ora para determinar ao Poder Público a adoção de medidas que visem a restringir atividades potencialmente lesivas, mesmo em áreas sobre as quais não haja certeza quanto ao dano ambiental.

O princípio da precaução é o que Paulo Affonso Leme Machado chama de in dubio pro natura, pois, na dúvida entre prosseguir com uma interveção antrópica possivelmente agressiva e salvaguardar a integridade ambiental, prevalece esta última.

Vejamos um caso concreto na jurisprudência do STJ (grifos meus):

PEDIDO DE SUSPENSÃO DE MEDIDA LIMINAR. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. Em matéria de meio ambiente, vigora o princípio da precaução. A ampliação de uma avenida litorânea pode causar grave lesão ao meio ambiente, sendo recomendável a suspensão do procedimento de licenciamento ambiental até que sejam dirimidas as dúvidas acerca do possível impacto da obra. Agravo regimental não provido. (STJ, Corte Especial, AgRg na SLS 1524/MA, Rel. Min. Ari Parglender, j. 02/05/2012, p. DJe 18/05/2012).    

De modo a evitar a propalada "ofensa à livre iniciativa", a doutrina defende que o princípio da precaução, por operar seus efeitos na presunção relativa de um nexo de causalidade entre a ação e a ocorrência de dano, só deve ser aplicado em se tratando de empreendimentos que sejam capazes de ocasionar danos consideráveis, ou virtualmente irreversíveis, ao meio ambiente. Assim, o princípio da precaução não se aplica a riscos pequenos, sob pena de engessar a atividade econômica.

A partir desse raciocínio, conclui-se pela convivência harmônica entre o princípio da precaução e o da livre concorrência, que é princípio da atividade econômica tanto quanto a defesa do meio ambiente (CF, art. 170, IV, c/c VI).

 
Afirmação II: está correta.

Segundo o princípio do poluidor-pagador, aquele que se dispõe a intervir no meio ambiente deve arcar com o ônus financeiro dessa intervenção. Por outras palavras, é dever do empreendedor incorporar à tabela de custos do processo produtivo os valores resultantes dos danos ambientais, seja na esfera da prevenção ou da reparação. É a isso que se chama de "externalidades negativas", isto é, são as consequências do processo produtivo que hão de ser suportadas pela coletividade, na medida em que a ação humana que intervém no meio ambiente causa algum tipo de impacto ao ecossistema. Como o empreendedor se apropria individualmente do lucro que decorre da sua atividade, não é justo que ele socialize tão somente os danos com o resto da população.

O princípio do poluidor-pagador está previsto no Princípio 16 da  Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (grifo meu): 

Princípio 16

As autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e  o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais.

É claro que o princípio em comento não visa a autorizar a poluição, conclusão que poderia equivocadamente resultar deste raciocínio: quem pagar, pode poluir à vontade. Logicamente, o princípio orienta o intérprete do direito em sentido diametralmente contrário, pois o que se quer, com a máxima do poluidor-pagador, é evitar que a possível configuração de um dano ao ambiente reste desapercebida de qualquer tipo de reparação pela alegada falta de recursos do empreendedor. Daí por que o poluidor-pagador é princípio que impõe ao produtor a internalização das "externalidade negativas" não apenas no plano repressivo (reparação do dano ambiental), mas também no plano preventivo (evitar a ocorrência de dano).  

Por todos esses motivos, é correto, à luz do princípio do poluidor-pagador, afirmar que "É dever do empreendedor incorporar as externalidades negativas de seu processo produtivo, para que a coletividade não seja destinatária de tais ônus."

Afirmação III: está correta.

No direito brasileiro, o tema da responsabilidade civil encontra como regra mor o art. 927 do CC. In verbis:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

O dispositivo versa sobre a chamada responsabilidade civil extracontratual (previsão jurídica que regula as situações não disciplinadas em contrato). Pela cabeça do dispositivo, temos que a regra geral é a responsabilidade civil subjetiva, que é aquela que se consubstancia mediante a exigência de culpa lato sensu (dolo ou culpa) para a responsabilização do causador do dano. A exceção fica por conta do parágrafo único, onde o legislador previu a responsabilidade civil objetiva, que é aquela que dispensa a perquirição de culpa na análise da conduta do agente. Por se cuidar de uma exceção, só haverá responsabilização objetiva em duas circunstâncias: (1) nos casos especificados em lei; e (2) quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem.

É justamente essa última hipótese que se amolda ao Direito Ambiental. A atividade do empreendedor, que intervém para transformar a natureza, implica risco de degradação do meio ambiente, que é direito fundamental da coletividade (CF, art. 225). Natural supor, portanto, que a responsabilidade civil, em matéria ambiental, seja objetiva. 

No art. 4º, VII, 1º parte, da Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente - LPNMA), encontra-se a previsão do cabimento da responsabilidade civil no Direito Ambiental (grifo meu):

 Art 4º - A Política Nacional do Meio Ambiente visará:

        I - à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico;

        II - à definição de áreas prioritárias de ação governamental relativa à qualidade e ao equilíbrio ecológico, atendendo aos interesses da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios;

        III - ao estabelecimento de critérios e padrões de qualidade ambiental e de normas relativas ao uso e manejo de recursos ambientais;

        IV - ao desenvolvimento de pesquisas e de tecnologias nacionais orientadas para o uso racional de recursos ambientais;

        V - à difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente, à divulgação de dados e informações ambientais e à formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico;

        VI - à preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida;

        VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.

Adiante, no mesmo diploma, o legislador foi ainda mais enfático ao explicitar que, em sede de matéria ambiental, a responsabilidade civil é objetiva. Vejamos o teor do § 1º do art. 14 da LPNMA (grifo meu):

§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

Em conclusão: no Direito Ambiental, para efeito responsabilização do agente causador do dano ao meio ambiente, basta a constatação dos seguintes pressupostos: (a) dano; (b) nexo causal. Dispensa-se, assim, a discussão quanto à existência de dolo ou culpa na conduta do agente.

Mas o assunto não para por aí. Há ainda que se enfatizar que, no Direito Ambiental brasileiro, a responsabilidade civil objetiva é baseada na teoria do risco integral. Nos termos dessa teoria, a responsabilização do agente, além de prescindir da análise de dolo ou culpa na conduta, não admite as excludentes do nexo de imputação. Dessa forma, não cabe ao agente, para o fim de subtrair-se à reparação do dano ambiental, alegar em juízo ter havido caso fortuito ou força maior, culpa exclusiva da vítima ou culpa exclusiva de terceiro - que são excludentes só aplicáveis à responsabilidade civil extracontratual objetiva que se funda na teoria do risco criado. 

O STJ reforça em seus julgados o entendimento quanto à aplicabilidade da teoria do risco integral na seara ambiental. Abaixo, reproduzo um precedente recente que é explícito nesse sentido (grifos meus):     

PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. EFEITOS INFRINGENTES. IMPOSSIBILIDADE. JUNTADA DO VOTO VENCEDOR. DESNECESSIDADE. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. NÃO OCORRÊNCIA DE OMISSÃO. DANO AMBIENTAL. ROMPIMENTO DO POLIDUTO "OLAPA". TEORIA DO RISCO INTEGRAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA PETROBRAS. DANOS EXTRAPATRIMONIAIS CONFIGURADOS. PROIBIÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRA. APLICABILIDADE, AO CASO, DAS TESES DE DIREITO FIRMADAS NO RESP 1.114.398/PR (JULGADO PELO RITO DO ART. 543-C DO CPC). INEXISTÊNCIA DE CONTRADIÇÃO.

1. O STJ sedimentou entendimento de que não há obrigatoriedade de publicação do voto divergente em hipóteses nas quais não sejam admitidos embargos infringentes, mesmo porque tal lacuna não causa quaisquer prejuízos à parte recorrente.

2. No caso, a premissa vencedora do acórdão é a de que a responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, tendo por pressuposto a existência de atividade que implique riscos para a saúde e para o meio ambiente, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante  que permite que o risco se integre na unidade do ato que é fonte da obrigação de indenizar, de modo que, aquele que explora a atividade econômica coloca-se na posição de garantidor da preservação ambiental, e os danos que digam respeito à atividade estarão sempre vinculados a ela, por isso descabe a invocação, pelo responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil e, portanto, irrelevante a discussão acerca da ausência de responsabilidade por culpa exclusiva de terceiro ou pela ocorrência de força maior.

3. Embargos de declaração rejeitados, com imposição de multa de 1% sobre o valor da causa.

(STJ, Quarta Turma, EDcl no Resp 1346430/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 05/02/2013, DJe 14/02/2013).  

Por esses motivos, é correto afirmar que "A discussão sobre dano moral ambiental relaciona-se à responsabilidade por danos ambientais, que é objetiva e baseada na teoria do risco integral." 

Finalmente, a resposta correta para a questão 49 era a alternativa D.

RT Comenta: DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL - Regime jurídico das súmulas vinculantes

 
Prova: Juiz de Direito TJPA (2012)
Tipo: Discursiva
Banca:

Questão 2  

Com base na disciplina constitucional e legal a respeito das súmulas vinculantes, disserte sobre essa inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Em seu texto, aborde, necessariamente, os seguintes aspectos:

definição de súmula vinculante;

objeto e requisitos;

legitimidade para propor sua edição, revisão e cancelamento, de forma autônoma e incidental;

efeitos e possibilidade de modulação. 


Na seção RT Comenta de hoje resolverei uma questão discursiva cobrada na prova para o cargo de Juiz de Direito.

Portanto, eis infra a minha resposta à questão.

2 – Resposta RT

De início, antes de adentrar o tema propriamente dito das "súmulas vinculantes", é preciso consignar uma errata à nomenclatura adotada pelo legislador brasileiro. Não é correto, tecnicamente, falar-se em "súmula vinculante". Do ponto de vista do direito judicial, a aplicação reiterada de um precedente enseja a formação da jurisprudência. Caso a jurisprudência seja de tal forma cimentada nas decisões, avultando a sua predominância flagrante, o tribunal, superior ou não, pode, em apreço ao ideal da segurança jurídica, editar um enunciado jurisprudencial, isto é, um brevíssimo texto normativo, que sumaria a ratio decidendi das decisões reiteradamente aplicadas no plano jurisdicional.

Esses enunciados, uma vez reunidos, constituem a súmula de jurisprudência do tribunal. Adotando-se com rigor o significado lexical do substantivo, compreende-se com facilidade que - tecnicamente - súmula é o resumo das ratio decidendi predominantemente aplicadas nas decisões de um determinado tribunal (é o que os juristas antigos chamavam de "repositório" ou "repertório" de jurisprudência). 

Diante disso, é inevitável concluir que o que é vinculante não é a súmula, mas sim o enunciado sumulado (o termo "sumular", empregado como adjetivo por muitos doutrinadores, alguns até bem famosos, é totalmente errado, pois a gramática normativa culta só o conhece como verbo de transitividade direta). O próprio legislador, ao elaborar a Lei 11.417/06, parece ter percebido a atecnia, de modo que, no caput do art. 2º do diploma infraconstitucional, usou a expressão tecnicamente correta ("editar enunciado de súmula"), em detrimento à lambança que foi feita na redação do art. 103-A da Constituição ("aprovar súmula"), que, com péssima redação (no § 1º do art. 103-A esqueceram até as vírgulas da língua portuguesa!), só revela o alto grau de analfabetismo jurídico do Parlamento brasileiro. Essas lambanças, somadas à prática recorrente do assassínio da norma culta vernacular, até mesmo por alguns ilustres doutrinadores brasileiros, coloca o jurista na posição de um verdadeiro Ethan Hunt, tentando se desincumbir da missão quase impossível que é tentar salvar o direito posto, prenhe de atecnias, no Brasil.  

Ressalto que tais observações primam pela técnica no emprego da linguagem jurídica. Na prática, não há consequências graves pelo uso inadequado do termo "súmula" - máxime porque ele já se consagrou na praxe forense. No entanto, a atecnia não deixa de ser censurável, haja vista que o mínimo que se espera do bacharel em direito (rectius: alguém que estudou durante cinco anos a ciência jurídica) é que ele seja técnico no domínio do seu ofício. Mesmo porque, se não for o bacharel, quem mais será técnico? Com certeza o leigo não o será. Aliás, diferentemente do operador do direito, o leigo não tem a obrigação de dominar a técnica jurídica.     

Feita essa ressalva crítica, passo ao desenvolvimento da resposta da questão. 

A sistemática da "súmula vinculante" foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº 45/2004, a qual incluiu o art. 103-A no texto da Constituição de 1988. Ei-lo in verbis:     


Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. 

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. 

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

O art. 103-A é, portanto, o fundamento jurídico-constitucional para a aprovação de enunciados de jurisprudência com efeitos vinculantes. Tais enunciados constituem precedentes judiciais, firmados pelo Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, que possuem um efeito jurídico singular, a saber, a imposição da sua obrigatoriedade (caráter obrigatório/vinculatório) para todos os órgãos do Poder Judiciário, assim como para todos os órgãos da Administração Pública, direta e indireta, em todas as esferas (federal, estadual e municipal).    

O efeito obrigatório e vinculante dos enunciados de súmula deve ser entendido no contexto da chamada criação judicial do direito. Assim é que, normalmente, no sistema jurisdicional do Brasil, a eficácia de um precedente limita-se ao seu caráter persuasivo, o que significa dizer que a ratio decidendi reiteradamente aplicada, e posteriormente incluída em súmula por meio de um sintético texto de enunciado normativo, tem apenas o poder de persuadir o convencimento do juiz. Portanto, o efeito persuasivo do precedente não obriga à sua observância, de modo que o magistrado pode decidir aplicá-lo ou não, conforme tenha se convencido da autoridade da ratio decidendi do enunciado para o deslinde adequado da solução reclamada pelo caso concreto.      

A eficácia meramente persuasiva dos precedentes judiciais é típica dos sistemas inspirados pela tradição do civil law. Não é, no entanto, o que se verifica nos sistemas adeptos da common law, para os quais a regra é a autoridade vinculativa do precedente judicial. É por essa razão que esses sistemas sobrevalorizam o brocardo latino do stare decisis et non quieta movere, do qual se extrai a sua expressão mais conhecida (stare decisis), para significar que, em regra, os precedentes firmados por um tribunal superior são vinculantes para todos os órgãos jurisdicionais hierarquicamente inferiores dentro da mesma jurisdição. É pela via do stare decisis que os sistemas judiciais filiados ao common law estabelecem que a decisão da Corte Suprema obriga/impõe/vincula todos os juízes e tribunais ao decidido.             

Ainda que não se possa afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro atribua o peso devido aos precedentes judiciais, ao menos não da forma como ocorre nos países do sistema da common law mediante o stare decisis, é indiscutível que as últimas reformas operadas no texto da Constituição de 1988, de que é exemplo a própria EC 45/04, têm caminhado no sentido da criação de instrumentos assecuratórios da obediência aos precedentes firmados pelo Supremo Tribunal Federal. É no bojo de tais reformas - que inclusive sinalizam, em âmbito constitucional, o tão propalado fenômeno da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade no Brasil - que surgem os institutos da repercussão geral no recurso extraordinário (CF, art. 102, § 3º) e da súmula vinculante (CF, art. 103-A).            

A "súmula vinculante" pode ser definida, por conseguinte, como um instrumento que visa a assegurar a força vinculante dos precedentes judiciais no Brasil (stare decisis), de modo a tornar efetivamente obrigatória a ratio decidendi (norma jurídica geral, norma jurídica elaborada jurisdicionalmente) consolidada nas decisões do Supremo Tribunal Federal. Desse modo, as teses jurídicas que forem cristalizadas em enunciados constantes da súmula de jurisprudência vinculante da Corte Suprema terão de ser obrigatoriamente seguidas por todos os órgãos do Poder Judiciário (incluindo o próprio STF) e da Administração Pública, direta e indireta, nas suas esferas federal, estadual e municipal.

É lógico que, dada a compulsoriedade característica do efeito vinculante, a subtrair parcela significativa do livre convencimento do juiz diante do caso concreto, o legislador constituinte restringiu o alcance da obrigatoriedade dos precedentes judiciais. Não é, portanto, qualquer decisão que dará ensejo a um enunciado normativo incluível na súmula de jurisprudência vinculante do STF. O objeto da "súmula vinculante" é restrito, só se admitindo sua edição quando o enunciado tiver por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de  normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários, ou entre esses e a Administração Pública, que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica" (CF, art. 103-A, § 1º).  

Essa ideia de limitação do objeto da "súmula vinculante" também se encontra presente na Lei 11.417/06, que regulamentou o instituto no plano infraconstitucional. É o que se percebe da leitura do § 1º do art. 2º do diploma legal: 

§ 1º  O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.

Interpretando o art. 2º, § 1º, da Lei 11.417/06, podemos identificar pelo menos três requisitos que autorizam a edição de um enunciado com eficácia vinculante:

a) requisito objetivo: o enunciado vinculante só pode ser editado para o fim de examinar questão de direito. Por outras palavras, questões de fato, ainda que submetidas à apreciação do STF, não ensejam a edição do enunciado vinculante. Somente a questão de direito que trate da validade, da interpretação e da eficácia de normas determinadas é que legitima a "súmula vinculante". Por sinal, cumpre sublinhar que a expressão "normas determinadas" não é exigência somenos da lei, na medida em que assinala que a questão de direito deve versar sobre norma jurídica determinada, o que implica a imprescindibilidade de que o Supremo Tribunal Federal indique qual o dispositivo controverso que ensejou a edição da "súmula".   

b) requisito circunstancial: além de o enunciado vinculante versar sobre questão de direito, a lei exige ainda que haja controvérsia atual quanto à validade, à interpretação ou à eficácia da norma jurídica determinada. Mas a simples atualidade da controvérsia, de per si, não basta para validar a edição da "súmula". É preciso, pois, que, além de atual, a controvérsia tenha criado repercussão significativa, com potencial para desestabilizar a segurança jurídica do sistema como um todo. Daí por que o art. 2º, § 1º, da Lei 11.417/06 estipula que a controvérsia atual deverá acarretar - cumulativamente - grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Observe-se que os requisitos são cumulativos, de tal arte que o STF deverá, necessariamente, divisar na controvérsia atual o estado de dúvida generalizado (grave insegurança jurídica), assim como a potencialidade de efeito multiplicador imanente à discussão jurídica, a qual, se não dirimida in continenti,  pode vir a obstaculizar o funcionamento regular da atividade jurisdicional (relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica).

c) requisito temático: trata-se da exigência de que a questão de direito, que suscitou a controvérsia atual que acarreta grave insegurança jurídica e relevante efeito multiplicador de processos sobre questão idêntica, esteja relacionada à controvérsia de natureza constitucional. O fundamento do requisito é a própria competência do Supremo Tribunal Federal, órgão jurisdicional ao qual compete, precipuamente, a guarda da Constituição (CF, art. 102, caput). Logo, como o STF dedica-se tão somente à interpretação e à aplicação do texto constitucional, não se admite a edição de "súmula vinculante" que venha a tratar de questão de natureza diversa, isto é, discussão de natureza que não seja constitucional.

Aliás, é por força desse requisito temático que se pode asseverar que, hodiernamente, o conceito de "súmula" é um gênero a desdobrar-se em duas espécies, a saber: "súmulas vinculantes" e "súmulas não vinculantes", ambas pertencentes ao repertório de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O embasamento para essa dicotomia se dá ante a observação de que, enquanto as primeiras têm natureza constitucional, as segundas têm natureza processual. Essa distinção dicotômica foi fixada pelo próprio STF no julgamento do AgR na Rcl 3.979/DF (Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 03/05/2006, p. DJ 02/06/2006), em acórdão assim ementado:      

Agravo regimental em reclamação. 2. Súmulas vinculantes. Natureza constitucional específica (art. 103-A, § 3º, da CF) que as distingue das demais súmulas da Corte (art. 8º da EC 45/04). 3. Súmulas 634 e 635 do STF. Natureza simplesmente processual, não constitucional. Ausência de vinculação ou subordinação por parte do Superior Tribunal de Justiça. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.

No que concerne ao procedimento para revisão, edição e cancelamento da "súmula vinculante", mais uma vez é preciso recorrer à disciplina legal inscrita na Lei 11.417/06 (com as acheganças subsidiárias do Regimento Interno do STF).   

Dessa maneira, nota-se que o legislador cuidou de estabelecer um rol ex vi legis de legitimados a propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado com força vinculante. É o que consta do art. 3º do diploma legal supracitado:   

Art. 3º  São legitimados a propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante:

I - o Presidente da República;

II - a Mesa do Senado Federal;

III – a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV – o Procurador-Geral da República;

V - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

VI - o Defensor Público-Geral da União;

VII – partido político com representação no Congresso Nacional;

VIII – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional;

IX – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

X - o Governador de Estado ou do Distrito Federal;

XI - os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.

Esse rol de legitimados ainda incluiu, curiosamente, a figura do Município, com a ressalva de que a propositura de edição, revisão e cancelamento de enunciado de súmula vinculante, da lavra do ente munícipe, deve ser feita incidentalmente no curso de processo em que seja parte (art. 3º, § 1º).  

Note-se que o aspecto curioso da inclusão do ente municipal reporta-se ao texto da Constituição, onde se lê que, "sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, a revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade" (CF, art. 103-A, § 2º). Ou seja, o legislador constituinte definiu um piso para o rol de legitimados, lastreando-o no rol da ADI (CF, art. 103). Não maniatou, em consequência, a liberdade de conformação do elenco pelo legislador infraconstitucional, permitindo a sua extensão por meio de lei. Foi o que permitiu a inclusão de legitimados não pertencente ao rol dos atores aos quais se autoriza o ajuizamento da ADI, de que são exemplos o Defensor Público-Geral da União e os Tribunais de maneira geral (STJ, STM, TST, TSE, TRFs, TRTs, TJEs, TJDFT, TJMs), além, é claro, do próprio Município.   

Do plexo do raciocínio acima é que se extrai a classificação doutrinária que defende a existência de dois tipos de legitimados a propor a edição, revisão e cancelamento do enunciado de súmula vinculante. O critério adotado para o discrime classificatório é a exigência de processo em andamento. Assim, para efeito de proposta de edição, revisão ou cancelamento de "súmula vinculante", a doutrina aponta que são legitimados autônomos todos aqueles que podem atuar perante o STF independentemente de vinculação a um processo judicial em curso (Lei 11.417/06, art. 3º c/c art. 103 da CF/88), enquanto são legitimados incidentais aqueles que dependem da existência de um processo judicial em curso para agir (Lei 11.417/06, art. 3º, § 1º).  

À luz do procedimento estabelecido pela Lei 11.417/06, é fácil concluir que somente os Municípios integram a categoria dos legitimados incidentais, uma vez que sua atuação fica na dependência de ter sido previamente ajuizada uma ação. Apenas nesses processos em que figuram como parte é que os Municípios poderão - incidentalmente - propor a edição, a revisão ou o cancelamento do enunciado de súmula vinculante, sem que tal autorize a suspensão do processo (art. 3º, § 1º, in fine).

A propósito, é conveniente ressaltar que a sistemática da Lei 11.417/06 vedou, em todas as hipóteses, a suspensão de processos nos quais a questão de direito controversa esteja a ser debatida. É a conclusão que decorre da conjugação dos art. 3º, § 1º, in fine, combinado com o art. 6º do mesmo diploma legal (grifos meus):

Art. 3º (omissis)

§ 1º  O Município poderá propor, incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante, o que não autoriza a suspensão do processo.

Art. 6º  A proposta de edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante não autoriza a suspensão dos processos em que se discuta a mesma questão.

Sendo assim, eventual provocação do STF, com o fim de editar, revisar ou cancelar "súmula vinculante", jamais terá o condão de autorizar a suspensão de processos judiciais em curso. Ou seja, o STF, uma vez instado a manifestar-se a respeito de enunciado de súmula de jurisprudência vinculante, irá fazê-lo sem que isso tenha qualquer repercussão na tramitação normal dos processos, circunstância que torna o procedimento da Lei 11.417/06 substancialmente diferente daquele aplicável ao julgamento por amostragem das teses suscitadas em sede de recurso extraordinário e que tenham tido sua repercussão geral reconhecida pelo Plenário Virtual da Corte Suprema, caso em que o tribunal de origem selecionará um ou mais recursos representativos da controvérsia, sobrestando os demais (CPC, art. 543-B, 1º).   

Assinale-se que as etapas de edição, revisão e cancelamento de enunciado com força vinculante dependem de decisão do Supremo Tribunal Federal. A decisão referenciada é obviamente do Plenário, que poderá deliberar de ofício ou por provocação, contanto que seja respeitado o quorum qualificado de 2/3 (dois terços) dos membros da Corte (CF, art. 103-A, caput, c/c art. art. 2º, § 3º, da Lei 11.417/06). Caso o quorum não venha a ser atingido, o texto do enunciado normativo elaborado em sessão plenária não será invalidado, apenas ficará limitado à eficácia persuasiva, desapercebido de força vinculante.       

A menção à eficácia vinculante dos precedentes vem a calhar, pois permite a digressão quanto aos seus efeitos. Assim, pode-se afirmar que, tão logo seja aprovado o enunciado com o quorum qualificado, a "súmula vinculante" daí resultante será de observância obrigatória por todos os órgãos jurisdicionais do País, idêntica consequência a valer para os órgãos da Administração Pública, direta e indireta, em todas as suas esferas.    

Diante do caráter vinculatório do enunciado da súmula de jurisprudência vinculante, caso um órgão do Poder Judiciário ou da Administração Pública venha a decidir em desacordo com a ratio decidendi do precedente, o art. 7º da Lei 11.417/06 previu o cabimento da reclamação constitucional, endereçada ao STF (art. 102, I, l), para assegurar a autoridade jurídico-impositiva da norma construída jurisdicionalmente. In verbis:  

Art. 7º  Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.

§ 1º  Contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas.

§ 2º  Ao julgar procedente a reclamação, o Supremo Tribunal Federal anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso.

A reclamação, portanto, é o instrumento processual que se presta ao escopo de preservar a autoridade vinculante dos enunciados judiciais editados pelo do STF.   

Em princípio, a Lei 11.417/06 não cominou sanções de natureza penal, civil ou administrativa para a desobediência do precedente vinculante. Apenas estipulou que o ato de rebeldia pode ser impugnado junto ao STF de maneira direta, no que se impõe a abertura da via processual por meio de uma ação de rito célere, que é, in casu, a reclamação. Em tais hipóteses, julgada procedente a reclamação, o Supremo Tribunal Federal anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada - neste último caso, podendo determinar ainda que a autoridade de origem profira nova decisão, com ou sem a aplicação do enunciado, a depender do caso concreto (art. 7º, § 2º).   

Nesse ponto, um detalhe merece ser lembrado: em se tratando de autoridade administrativa recalcitrante na desobediência ao enunciado com força vinculante, o legislador previu uma sanção excepcional. Diz-se excepcional pela sua pessoalidade, já que ela se volta a punir o agente público rebelde, nos termos do disposto no art. 64-B da Lei 9.784/99 (incluído pela Lei 11.417/06, grifo meu):    

Art. 64-B.  Acolhida pelo Supremo Tribunal Federal a reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante, dar-se-á ciência à autoridade prolatora e ao órgão competente para o julgamento do recurso, que deverão adequar as futuras decisões administrativas em casos semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e penal.

Finalmente, cumpre frisar que, após a publicação do enunciado em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União, a força vinculante do precedente opera seus efeitos imediatamente (Lei 11.417/06, art. 2º, § 4º, c/c art. 4º, 1º parte). Todavia, a eficácia imediata da tese jurídica inscrita no enunciado pode sofrer modulação temporal, conforme prevê o art. 4º da Lei 11.417/06: 

Art. 4º A súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público.

Portanto, é perfeitamente cabível a modulação do efeito vinculante do enunciado de súmula, uma vez obedecidos os requisitos legais (com ênfase para o quorum qualificado de dois terços). Nessa hipótese, o STF, modulando a força vinculatória do precedente, poderá restringir os efeitos vinculantes do enunciado, ou decidir que ele só tenha eficácia a partir de um momento futuro, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público.

RT COMENTA - DIREITO AMBIENTAL - Instrumentos do Direito Ambiental


Prova: Advogado BNDES 2013 
Tipo: Objetiva
Banca:
 
3 - Questão 7
70
Os instrumentos do Direito Ambiental são fundamentais para a garantia do direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo que
 
(A) a audiência pública deve ser realizada nos casos que envolvam atividades capazes de causar significativa degradação ambiental, exceto quando o Ministério Público solicitar sua dispensa.


(B) a unidade de conservação da natureza deve ter sua criação precedida de consultas públicas, inclusive em relação às categorias voltadas para pesquisas científicas (estação ecológica e reserva biológica).


(C) a cobrança pelos recursos hídricos não é permitida pela legislação ambiental, tendo em vista a importância da água para toda espécie de vida.


(D) o plano de resíduos sólidos que deve ser elaborado pelos Municípios, inclusive com vistas ao acesso a determinados recursos da União, constitui obrigação relacionada à garantia da saúde da população.


(E) os estudos prévios de impacto ambiental (EIA) devem ser elaborados pelos servidores ambientais do órgão ou entidade ambiental competente pelo licenciamento ambiental, às custas do empreendedor.
 
 
 

(A) a audiência pública deve ser realizada nos casos que envolvam atividades capazes de causar significativa degradação ambiental, exceto quando o Ministério Público solicitar sua dispensa.

A alternativa A está errada.

Entre os princípios do Direito Ambiental, encontra-se o princípio da participação comunitária. Ele foi expressamente previsto na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento:  
 
Princípio 10


A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionado o acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à compensação e reparação de danos.

A partir do princípio da participação comunitária, o art. 3º da Res. 237/1997 do CONAMA, que regula o procedimento de licenciamento ambiental, previu a possibilidade de realização de audiências públicas (grifo meu): 

 

Art. 3º- A licença ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio dependerá de prévio estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto sobre o meio ambiente (EIA/RIMA), ao qual dar-se-á publicidade, garantida a realização de audiências públicas, quando couber, de acordo com a regulamentação.
Parágrafo único. O órgão ambiental competente, verificando que a atividade ou empreendimento não é potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente, definirá os estudos ambientais pertinentes ao respectivo processo de licenciamento.
    

Esse ato infralegal do CONAMA incluiu ainda as audiências públicas qual etapa facultativa do procedimento de licenciamento ambiental. É o que consta do art. 10, V, da supracitada resolução:
 

Art. 10 - O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas:
V - Audiência pública, quando couber, de acordo com a regulamentação pertinente;
   
 
 

Disse que as audiências públicas constituem-se em etapa facultativa, visto que seu cabimento foi condicionado à regulamentação pertinente, que é aquela prevista na Res. 09/1987 do CONAMA:
 

Art. 1º - A Audiência Pública referida na RESOLUÇÃO/conama/N.º 001/86, tem por finalidade expor aos interessados o conteúdo do produto em análise e do seu referido RIMA, dirimindo dúvidas e recolhendo dos presentes as críticas e sugestões a respeito.


Já no art. 2º encontramos os requisitos que dizem respeito à convocação das audiências:
 
Art. 2º - Sempre que julgar necessário, ou quando for solicitado por entidade civil, pelo Ministério Público, ou por 50 (cinqüenta) ou mais cidadãos, o Órgão de Meio Ambiente promoverá a realização de audiência pública.

A alternativa A cobrou esses requisitos do art. 2º da Res. 09/1987 do CONAMA. E, pelo visto, descabe falar em dispensa de audiência pública pelo órgão ministerial, haja vista o caráter facultativo com que se apresentam no procedimento de licenciamento ambiental. Na verdade, cabe ao Ministério Público solicitar a realização da audiência, a fim de garantir o princípio da participação comunitária no Direito Ambiental.  


(B) a unidade de conservação da natureza deve ter sua criação precedida de consultas públicas, inclusive em relação às categorias voltadas para pesquisas científicas (estação ecológica e reserva biológica).

A alternativa B está errada.

Trata-se de alternativa que cobrou a letra da lei. Na questão, o diploma legal em comento é a Lei 9.985/00 (Lei do SNUC).

Segundo a LSNUC, em regra, as unidades de conservação da natureza são criadas por ato do Poder Público, devendo ser precedida de estudos técnicos e consulta pública. Mas há uma exceção: quando se tratar de criação de Estação Ecológica ou Reserva Biológica, a consulta pública não é obrigatória. É o que se extrai do §§ 2º e 4º do art. 22 da LSNUC (grifos meus):  
 
Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.
§ 1º (VETADO)
§ 2º A criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento.
§ 3º No processo de consulta de que trata o § 2º, o Poder Público é obrigado a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes interessadas.
§ 4º Na criação de Estação Ecológica ou Reserva Biológica não é obrigatória a consulta de que trata o § 2º deste artigo.
(omissis)

Logo, está incorreta a alternativa B.

 
(C) a cobrança pelos recursos hídricos não é permitida pela legislação ambiental, tendo em vista a importância da água para toda espécie de vida.

A alternativa C está errada.

Aqui é preciso recordar o princípio do usuário-pagador. Segundo esse princípio, o usuário de recursos naturais pode ser compelido a pagar pelo uso. Enquanto o princípio do poluidor-pagador preconiza a internalização, pelo empreendedor, dos custos das externalidades negativas no processo produtivo, o do usuário-pagador autoriza a cobrança pela utilização de recursos naturais. Duas são as finalidades: de um lado, propiciar à sociedade uma contrapartida financeira pelo uso do bem comum, de outro, incentivar o aproveitamento racional dos recursos naturais, de modo a evitar o seu desperdício.

O fundamento ex lege do usuário-pagador encontra-se no art. 4º, VII, in fine, da LPNMA (grifo meu):

 
Art 4º - A Política Nacional do Meio Ambiente visará:
(omissis)
VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.


Em consequência do influxo do princípio do usuário-pagador, a Lei 9.433/97 (Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos) previu expressamente a possibilidade de cobrança pela utilização da água, que é bem de domínio público. Colaciono (grifo meu):  

 
Art. 5º São instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos:


        I - os Planos de Recursos Hídricos;


        II - o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água;


        III - a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos;


        IV - a cobrança pelo uso de recursos hídricos;


        V - a compensação a municípios;


        VI - o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.

O STJ tem adotado esse posicionamento nos seus julgados (grifo meu):

 

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIÇO PÚBLICO. FORNECIMENTO DE ÁGUA. POLÍTICA TARIFÁRIA. TARIFA PROGRESSIVA. LEGITIMIDADE (LEI 6.528/78, ART. 4º; LEI 8.987/95, ART. 13). DOUTRINA. PRECEDENTES. PROVIMENTO.
1. O faturamento do serviço de fornecimento de água com base na tarifa progressiva, de acordo com as categorias de usuários e as faixas de consumo, é legítimo e atende ao interesse público, porquanto estimula o uso racional dos recursos hídricos. Interpretação dos arts. 4º, da Lei 6.528/78, e 13 da Lei 8.987/95.
2. "A política de tarifação dos serviços públicos concedidos, prevista na CF (art. 175), foi estabelecida pela Lei 8.987/95, com escalonamento na tarifação, de modo a pagar menos pelo serviço o consumidor com menor gasto, em nome da política das ações afirmativas, devidamente chanceladas pelo Judiciário (precedentes desta Corte)" (REsp 485.842/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 24.5.2004).
3. Recurso especial provido, para se reconhecer a legalidade da cobrança do serviço de fornecimento de água com base na tarifa progressiva e para julgar improcedente o pedido.
(STJ, REsp 861.661/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Denise Arruda, j. 13/11/2007, p. DJ 10/12/2007). 


A contrario sensu do afirmado na alternativa C, a cobrança da água justifica-se exatamente ante a sua imprescindibilidade para a vida humana, considerando-se sobretudo se cuidar de um recurso natural limitado, dotado de valor econômico, e que, consequentemente, merece ser utilizado com racionalidade (proibição do desperdício).

(D) o plano de resíduos sólidos que deve ser elaborado pelos Municípios, inclusive com vistas ao acesso a determinados recursos da União, constitui obrigação relacionada à garantia da saúde da população.

A alternativa D está correta.

Para entendê-la, é preciso mencionar a Lei 12.305/10 (Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos - LPNRS). Segundo esse diploma, o gerenciamento de resíduos sólidos consubstancia o conjunto de ações exercidas, direta ou indiretamente, nas etapas de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos (art. 3º, X). Esse gerenciamento deve efetuar-se de acordo com um plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos ou com um plano de gerenciamento de resíduos sólidos.

O plano de resíduos sólidos é um dos instrumentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (art. 8º, I). É um conceito amplo, a abranger como uma de suas espécie os planos municipais de gestão integrada de resíduos sólidos (art. 14, V). A lei estipula para os planos municipais de resíduos sólidos um conteúdo mínimo (art. 19), estatuindo ainda que a elaboração deles é condição para que os Municípios possam ter acesso aos recursos da União (art. 18, caput).

Nesse contexto, é evidente que a assertiva está correta ao afirmar que os planos municipais constituem obrigação relacionada à garantia de saúde da população, haja vista que um dos objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos é precisamente o de assegurar proteção à saúde pública (art. 7º, I). Prova disso é que o Poder Público deve atuar, subsidiariamente, com vistas a minimizar ou cessar o dano, logo que tome conhecimento de evento lesivo ao meio ambiente ou à saúde pública relacionado ao gerenciamento de resíduos sólidos (art. 29), tudo para salvaguardar a qualidade ambiental.     

(E) os estudos prévios de impacto ambiental (EIA) devem ser elaborados pelos servidores ambientais do órgão ou entidade ambiental competente pelo licenciamento ambiental, às custas do empreendedor.

A alternativa E está errada.

De acordo com o modelo brasileiro, o EIA não é elaborado pelos órgãos ambientais. Quem deve providenciar a elaboração do EIA é o próprio empreendedor, conforme se verifica do art. 11 da Res. 237/97 do CONAMA (grifo meu):
 
Art. 11 - Os estudos necessários ao processo de licenciamento deverão ser realizados por profissionais legalmente habilitados, às expensas do empreendedor.
Parágrafo único - O empreendedor e os profissionais que subscrevem os estudos previstos no caput deste artigo serão responsáveis pelas informações apresentadas, sujeitando-se às sanções administrativas, civis e penais.

Portanto, o EIA/RIMA, que é modalidade da AIA, e constitui etapa do procedimento de licenciamento ambiental (Res. 237/97, art. 10, II), fica sob a responsabilidade do requerente da licença, ao qual se impõe o pagamento de todos os custos e despesas inerentes aos estudos ambientais pertinentes. 

Nesse prisma, vale a pena lembrar do art. 17 da LPNMA:
 
Art. 17. Fica instituído, sob a administração do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA:  
I - Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa Ambiental, para registro obrigatório de pessoas físicas ou jurídicas que se dedicam a consultoria técnica sobre problemas ecológicos e ambientais e à indústria e comércio de equipamentos, aparelhos e instrumentos destinados ao controle de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras;  
II - Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, para registro obrigatório de pessoas físicas ou jurídicas que se dedicam a atividades potencialmente poluidoras e/ou à extração, produção, transporte e comercialização de produtos potencialmente perigosos ao meio ambiente, assim como de produtos e subprodutos da fauna e flora.  

Pelo disposto no inc. I do art. 17, a lei autoriza que o requerente da licença ambiental contrate equipe especializada para a elaboração do EIA/RIMA, mas desde que esta tenha registro no Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa Ambiental, sob a administração do IBAMA.