1 – Pergunta enviada pelo leitor:
No conflito aparente de normas em sede de Direito Coletivo do Trabalho, o art. 620 das CLT, ao fixar que as condições estabelecidas em convenção, quando mais favoráveis, prevalecem sobre as estipuladas em acordo, afasta a aplicação da teoria do conglobamento para a definição hermenêutica da norma mais favorável ao trabalhador?
Para resolver essa dúvida do leitor, creio
que é preciso introduzir alguns elementos conceituais da doutrina do Direito
Material do Trabalho antes.
Em primeiro lugar, é preciso assinalar que,
ao falarmos de teoria do conglobamento, estamos a tratar de uma discussão que
se insere dentro do plexo principiológico do Direito do Trabalho, haja vista a
adoção, entre nós, do princípio da proteção.
O princípio da proteção (ou princípio protetor
ou princípio tutelar) está implicitamente consagrado no caput do art. 7° da
Constituição Federal (ele pode ser extraído da expressão "além de outros
que visem à melhoria de sua condição social"), e tem como inspiração doutrinária
inarredável o jurista Américo Plá Rodriguez e sua obra clássica “Princípios de
Direito do Trabalho”. Ele preconiza que, em sede de Direito do Trabalho, o
intérprete deve aplicar e utilizar a norma e/ou condição mais favorável ao trabalhador,
com vistas a permitir, pela hermenêutica jurídica, a compensação da
discrepância fática existente entre os polos da relação de vínculo empregatício,
isto é, o empregado (hipossuficiente) e o empregador.
Como consequência da dimensão de igualdade
substancial que quer afirmar, em ordem a equilibrar a relação jurídica capital
e trabalho, a superioridade jurídica posta pelo princípio da proteção desdobra-se
em três subprincípios, a saber: 1) princípio da norma mais favorável; 2)
princípio da condição mais benéfica; e 3) princípio do “in dubio pro operario”.
O subprincípio do princípio tutelar que diz
respeito à norma mais favorável está a reconhecer, no plano teórico da
disciplina, que o critério ordinário de hierarquia normativa, preponderante nos
subsistemas do Direito de caráter não iustrabalhista, não se harmoniza com o
subsistema do Direito do Trabalho, haja vista este possuir um caráter mais
complexo em sua estruturação e dinâmica operacional por lidar com a
normatização da delicada igualização de forças na relação capital x trabalho.
Daí surgem as teorias que visam a definir “in concreto” a aplicação
diferenciada do princípio protetor, a dar uma nova dimensão à exequibilidade do
critério hierárquico quando aplicado para a definição da norma mais favorável
nas relações jurídicas de labor. Isto é, independentemente do posicionamento da
norma na escala hierárquica, o intérprete está autorizado a escolher aquele
dispositivo que, entre dois igualmente aplicáveis ao caso, seja mais favorável
ao obreiro no caso concreto (mas, obviamente, não se trata de princípio
absoluto, razão pela qual ele deve ceder diante de normas estatais em sentido
contrário, como as leis regentes de normas de ordem pública incidentes sobre a
matéria).
Nesse sentido, no que diz respeito aos critérios para definição da norma mais favorável, existem basicamente cinco
teorias na doutrina brasileira, que abaixo estou a recopilar para o leitor:
1) Teoria da acumulação: na comparação duas ou mais normas aplicáveis ao mesmo caso concreto, o
intérprete escolhe os dispositivos mais favoráveis ao trabalhador;
2) Teoria do conglobamento: na comparação duas ou mais normas aplicáveis
ao mesmo caso concreto, o intérprete escolhe a norma mais favorável a partir do
conjunto normativo apreendido globalmente, ou seja, o intérprete realiza um
confronto em bloco das normas, a fim de selecionar aquela que favorece mais o
trabalhador;
3) Teoria do conglobamento orgânico ou por instituto: na comparação duas ou mais normas aplicáveis ao mesmo caso concreto, defende que o intérprete
seleciona a norma mais favorável a partir de uma comparação parcial entre
grupos homogêneos de matérias (p. ex., direito a férias na CCT e no ACT; percentual
do adicional de horas extras no CCT e no ACT etc.);
4) Teoria da adequação: na comparação duas ou mais normas aplicáveis ao mesmo caso concreto, o
intérprete seleciona o conjunto normativo mais adequado à realidade concreta, a
tomar em consideração fatos sociais, que são elementos da realidade sociológica
atinentes tanto à empresa quanto ao trabalhador;
5) Teoria da escolha da norma mais recente: na comparação duas ou
mais normas aplicáveis ao mesmo caso concreto, defende que a escolha da norma
mais favorável dar-se-á em favor do critério da recentidade na negociação
coletiva, isto é, o intérprete deve escolher a norma mais recente, pois, como o
fato social é mutante, a norma mais favorável é aquela que mais recentemente
foi modificada, para adequar-se à atualidade do fato social.
Na
doutrina e jurisprudência brasileiras, prevalece a adoção da teoria do
conglobamento, para fins de orientar a atividade hermenêutica de seleção, análise e
classificação das normas potencialmente em confronto no caso concreto. A adoção majoritária da teoria do conglobamento no Brasil deve sua simpatia à circunstância de que ela tem servido eficazmente ao propósito harmonizar a flexibilidade do critério hierárquico iustrabalhista com a noção
essencial de sistema, conceito inerente aos postulados epistemológicos de uma Ciência do Direito.
Por isso, a jurisprudência do TST tem
entendido que o artigo 620 da CLT, que dá prevalência às convenções coletivas,
não afasta a adoção da teoria do conglobamento. Eis a redação do dispositivo:
Art.
620. As condições estabelecidas em Convenção quando mais favoráveis,
prevalecerão sôbre as estipuladas em Acôrdo.
Vejamos um acórdão do TST coerente com a tese
que ora estou a afirmar (grifos meus):
ACORDO
EM DISSÍDIO COLETIVO. BANESPA. PREVALÊNCIA. CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO.
ART. 620 DA CLT.
TEORIA DO CONGLOBAMENTO.
1.
A prevalência de acordo em dissídio coletivo, em detrimento de convenção coletiva
de trabalho, firmada entre a Federação Nacional dos Bancos e a Confederação
Nacional dos Bancários, não viola literalmente o art. 620 da CLT. 2.
Impõe-se tal diretriz porquanto não se sobrepõe propriamente acordo coletivo de
trabalho a uma convenção coletiva de trabalho, mas um acordo em dissídio
coletivo homologado pelo TST, com o atributo de coisa julgada, a uma convenção
coletiva de trabalho. 3.
Impende considerar, ademais: a) que o acordo em dissídio coletivo homologado
reflete peculiaridades concernentes aos interessados, inclusive, no caso, após
um delicado processo de privatização do BANESPA; e b) no confronto entre dois
instrumentos normativos, aparentemente discrepantes, prevalece a Teoria do
Conglobamento, segundo a qual não se interpretam as cláusulas de forma atomista
e isolada, mas em seu conjunto; assim, não é dado aos interessados, ao seu
bel-prazer, extrair de instrumentos normativos díspares, de forma pontual,
apenas as normas mais vantajosas. 4.
Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento. (TST,
1ª Turma, RR 709400920025210002 70940-09.2002.5.21.0002, Min. Rel. João Oreste
Dalazen, j. 14/02/2007, p. DJ 27/04/2007)
De modo recente, essa posição foi reafirmada
pelo TST nos autos do RR-868-71.2012.5.04.0017. Nesse precedente, a 3ª Turma do
Tribunal Superior do Trabalho lançou mão da teoria do conglobamento, para
estabelecer a norma mais favorável ao trabalhador, prevista em convenção
coletiva, em detrimento de acordo coletivo que fixou piso salarial menor.
No caso concreto, a CCT 2007/2009 previa o
salário de R$ 544,00, ao passo que o ACT ajustava o salário em R$ 441,00.
O Poder Judiciário especializado foi então acionado pelo obreiro, que pleiteava
as diferenças salariais em relação ao valor definido na convenção, já que a
empresa lhe pagava o salário fixado no acordo coletivo.
No seu acórdão, o TRT4 argumentou que, via de
regra, tende-se a afirmar que o acordo coletivo, por ser mais específico,
prevalece sobre a convenção coletiva. Entretanto, como o Direito do Trabalho é
norteado pelo princípio da norma mais favorável e, sob o aspecto do Direito
Coletivo do Trabalho, há o art. 620 da CLT, o Regional entendeu que não merecia
prevalecer a cláusula prevista em acordo coletivo de trabalho, que reduz o piso
salarial determinado em convenção coletiva, sem a previsão de qualquer outro
benefício que pudesse compensar a perda salarial imposta. Logo, no caso dos
autos, apontou a convenção coletiva, e não o acordo coletivo, como norma mais
favorável à categoria profissional relativamente ao salário normativo.
Não foi, no entanto, a posição adotada pelo
TST, que, ao conhecer do recurso de revista por divergência jurisprudencial,
assinalou ser firme a jurisprudência da SBDI-1/TST quanto à adoção da teoria do
conglobamento em caso de conflito aparente entre normas coletivas.
Consoante anotou o relator do recurso, Min. Alberto
Bresciani, a teoria do conglobamento, ao preconizar que cada instrumento
autônomo deve ser considerado em seu conjunto, é a que se mostra mais adequada
para solucionar o conflito aparente de normas coletivas, pois, ao mesmo tempo
em que preserva o direito do trabalhador, privilegia todo o sistema normativo,
dando-lhe efetividade e contribuindo para maior segurança jurídica.
Trago para o leitor a íntegra do acórdão do RR-868-71.2012.5.04.0017:
RECURSO
DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.015/2014. 1. NULIDADE. NEGATIVA
DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. Preliminar que se deixa de examinar, com base no
art. 249, § 2º, do CPC. 2. DIFERENÇAS SALARIAIS E PRÊMIO ASSIDUIDADE. CONFLITO
APARENTE DE NORMAS COLETIVAS. PRINCÍPIO DA NORMA MAIS FAVORÁVEL. CONGLOBAMENTO.
A teoria do conglobamento, ao preconizar que cada instrumento autônomo deve ser
considerado em seu conjunto, é a que se mostra mais adequada para solucionar o
conflito aparente de normas coletivas, pois, ao mesmo tempo em que preserva o
direito do trabalhador, privilegia todo o sistema normativo, dando-lhe
efetividade e contribuindo para maior segurança jurídica. Recurso de revista
conhecido e provido. (TST, 3ª Turma, RR-868-71.2012.5.04.0017, Min. Rel. Alberto Bresciani, j. 30/03/2016, DJe 01/04/2016)
Forte nesses argumentos, a 3ª Turma do TST
deu provimento ao recurso, para determinar o retorno dos autos ao Tribunal de
origem, a fim de que possa apreciar novamente o feito, visto que o art. 620 da CLT não afasta a adoção da
teoria do conglobamento, segundo a qual cada instrumento deve ser
considerado no seu todo, e não a cláusula isoladamente, para a definição da
norma jurídica mais favorável ao empregado, corolário do princípio da proteção
ao trabalhador.
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