Min. Luis Felipe Salomão, relator do REsp 1.345.331/RS no STJ |
Ouvindo atualmente: "Henryk Szeryng (v) - Tasso Janopoulo (p) -
Le Livre d'Or de Paris-Inter" (2013),
Henryk Szeryng foi, ao lado de Max Rostal, um dos mais
brilhantes alunos de Carl Flesch e um dos melhores violinistas do século XX.
Nesse álbum foi resgatada a sua gravação da "Sonata nº 3 em Ré Maior" (Op. 9)
do compositor barroco Jean-Marie Leclair ("O Velho"),
o grande fundador da escola francesa de violino. Obrigatório, portanto.
1 - Introdução
No estudo do Direito Civil, existe atualmente
uma tendência doutrinária favorável à superação das divisões classificatórias tradicionais
da dogmática jurídica (Direito Público e Privado, Direito Objetivo e Direito
Subjetivo). Apesar dessa corrente de pensamento, a dicotomia que separa os
direitos patrimoniais em direitos pessoais e direito reais ainda é válida do
ponto de vista didático.
Dessa maneira, no âmbito dos direitos
pessoais, surge o conceito de obrigação, que, por seu turno, dá origem aos
direitos obrigacionais. Estes direitos compreendem a titularidade de um direito
de crédito, que corresponde ao vínculo que une pessoas determinadas (ou determináveis) em torno
do cumprimento de uma prestação. Essa prestação é precisamente o comportamento
que o credor espera do devedor, no que importa conceituar a obrigação pela
finalidade da conduta almejada, isto é, obrigação de dar, de fazer ou de não
fazer. Conclui-se, portanto, que o credor, para satisfazer seu direito pessoal
de crédito, necessita da colaboração do devedor, cuja conduta positiva ou
negativa representará o adimplemento da obrigação.
Diferente é a estrutura dos direitos
patrimoniais de caráter real. Em tal hipótese, a relação jurídica dos direitos
reais forma-se a partir do exercício de um poder proprietário que o titular do
direito exerce sobre a coisa (res). A relação jurídica real se funda na ligação que se estabelece entre a pessoa e uma coisa, que pode ser móvel ou imóvel. Como consequência desse
poder proprietário, todos os outros sujeitos de direito ficam obrigados a não
praticar qualquer conduta atentatória ao exercício do direito de propriedade.
Isto é, os direitos reais criam um dever genérico de abstenção, oponível erga omnes, que impede todas as demais
pessoas da sociedade de estorvarem o exercício do direito real pelo seu
titular. Não há necessidade de colaboração de outrem (devedor) para a
satisfação dessa espécie de direito patrimonial. É suficiente à sua estrutura que o
titular possa exercitar o seu domínio sobre a coisa, usando-a, gozando-a,
dispondo-a de acordo com sua vontade.
Em linhas gerais, essa é a diferenciação
teórica estrutural por meio da qual a doutrina civilista reparte os direitos
patrimoniais, enquanto gênero, em direitos pessoais e direitos reais.
Compreendê-la é sobretudo útil para introduzir o estudo das obrigações propter rem, que se situam na fronteira
da dicotomia conceitual clássica, e que permitirão, ao final deste estudo,
analisar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da
responsabilidade pelas obrigações condominiais nos contratos de promessa de compra e venda.
2 – O conceito de
obrigações propter rem
A análise sumária da estrutura dos direitos
pessoais ao lado dos direitos reais revela a proximidade que há na gênese dessas
relações jurídicas. De um lado, há uma relação que une duas pessoas
determinadas ou determináveis em posições de sujeito ativo e sujeito passivo,
respectivamente, credor e devedor. De outro, há uma relação que liga uma pessoa
(sujeito ativo) a uma coisa (res), a
impor um dever geral de abstinência (respeito ao direito real) a todos os
outros membros da coletividade (sujeito passivo universal). Não é difícil supor
que esses direitos possam confluir na vida negocial, originando vínculos
híbridos, a fundir, numa mesma relação, direitos pessoais aos direitos reais.
Exemplo categórico dessa hibridez encontra-se
no conceito de obrigações propter rem
(também conhecidas em doutrina como obrigações in rem ou ob rem). Trata-se
de uma espécie de relação jurídica que se forma ao atrelar prestações obrigacionais
à titularidade de um direito real.
A respeito do conceito de obrigação propter rem, Silvio Rodrigues (2002, p.
79, grifos do autor) leciona:
A obrigação propter
rem é aquela em que o devedor, por ser titular de um direito sobre uma
coisa, fica sujeito a determinada prestação que, por conseguinte, não derivou
da manifestação expressa ou tácita de sua vontade. O que o faz devedor é a
circunstância de ser titular do direito real, e tanto isso é verdade que ele se libera da obrigação se renunciar a
esse direito.
Já Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 42,
grifos do autor) adverte que a obrigação propter
rem
[...] é uma obrigação de caráter misto, pelo fato
de ter como a obligatio in personam
objeto consistente em uma prestação específica; e como a obligatio in re estar sempre incrustada no direito real.
Alguns exemplos ajudam a esclarecer o
conceito.
No art. 1.297 do CC, o legislador assegura ao
proprietário o direito de constranger o confinante a proceder com ele à
demarcação entre os dois prédios, repartindo-se proporcionalmente entre os
interessados as respectivas despesas. A obrigação de demarcar do confinante é
consequência não de sua manifestação de vontade, mas da sua especial condição
de proprietário do prédio vizinho. Ou seja, é uma imposição ex vi legis ao titular do direito real
de propriedade (propter rem). Logo,
caso o proprietário perca o domínio, ele fica livre do dever de concorrer para
o pagamento das despesas com a demarcação.
Também há obrigação propter rem no comando do art. 1.277 do CC, que impõe ao
proprietário de prédio a obrigação de não dar causa a interferências
prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde daqueles moradores que habitam o
prédio vizinho. Mais uma vez essa obrigação não decorre de manifestação de
vontade, mas sim da lei, que usa como critério apto a fundar a imposição a mera
contiguidade de domínio sobre a coisa (ser proprietário ou possuidor de prédio
vizinho). Significa dizer que a obrigação exsurge por causa (advém) da coisa.
Assim, como o vínculo obrigacional provém da lei e está atrelado a um direito
real de propriedade, quem não detém domínio sobre o prédio fica desobrigado do
cumprimento da prestação estipulada pelo artigo.
Diante do raciocínio acima, evidencia-se que a
conceituação doutrinária de obrigação propter
rem está ligada a pelo menos dois elementos: (a) imposição legal (ausência de manifestação de vontade do obrigado);
e (b) titularidade de um direito real (domínio ou detenção) sobre a coisa.
Assim, quando faltam esses elementos na generatriz da obrigação, desfaz-se a
sua natureza propter rem.
É o caso dos serviços de energia, água e
esgoto, hipóteses de vínculos obrigacionais às quais a jurisprudência pacífica
do STJ nega a natureza de obrigação propter
rem. Senão vejamos (grifos meus):
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO
REGIMENTAL. FORNECIMENTO DE ÁGUA. INADIMPLEMENTO. OBRIGAÇÃO PESSOAL.
INVIABILIDADE DE SUSPENSÃO DO ABASTECIMENTO NA HIPÓTESE DE DÉBITO PRETÉRITO
VINCULADO A PROPRIETÁRIO ANTERIOR. INEXISTÊNCIA DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. PRÉDIO
DEMOLIDO. REEXAME VEDADO PELA SÚMULA 7/STJ. TUTELA ANTECIPADA. REQUISITOS.
SÚMULA 7/STJ.
1. Trata-se de pretensão recursal da prestadora de
serviço público com intuito de caracterizar a possibilidade de suspensão do fornecimento
de água com base em débitos contraídos por proprietário anterior e, com relação
à agravada, durante o período em que o prédio ficou demolido.
2. A
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o dever de
pagar pelo serviço prestado pela agravante - fornecimento de água - é
destituído da natureza jurídica de obrigação propter rem, pois não se vincula à titularidade do bem, mas ao
sujeito que manifesta vontade de receber os serviços.
3. O Tribunal de origem consignou indevida a
imposição da cobrança de água por inexistência de efetiva prestação do serviço.
A revisão desse entendimento depende do reexame fático, o que é inviável em Recurso
Especial, conforme disposto na Súmula 7/STJ.
4. A apreciação dos requisitos do art. 273 do CPC,
para apurar suposta presença dos requisitos necessários para a concessão da tutela
antecipada exige análise do contexto fático-probatório dos autos. Incidência da
Súmula 7/STJ.
5. Agravo Regimental não provido. (STJ, T2 –
Segunda Turma, AgRg no AREsp 29.879/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin,
j. 24/04/2012, p. DJe 22/05/2012)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO
REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA E
COLETA DE ESGOTO. DÉBITO DE ANTIGO LOCATÁRIO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO
DO IMÓVEL. ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO LOCAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 280/STF. AGRAVO
REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. É firme o entendimento no STJ de que o dever
de pagar pelo serviço prestado pela agravante - fornecimento de água – é
destituído da natureza jurídica de obrigação propter rem, pois não se vincula à
titularidade do bem, mas ao sujeito que manifesta vontade de receber os
serviços (AgRg no AREsp 2.9879/RJ, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 22.05.2012).
2. A
análise de Legislação Estadual é medida vedada na via estreita do Recurso
Especial, a teor da Súmula 280 do STF, aplicável ao caso por analogia.
3. Agravo
Regimental da SABESP desprovido.
(STJ, T1 – Primeira Turma, AgRg no AREsp 265.966/SP,
Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 21/03/2013, p. DJe 10/04/2013)
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS
COMO AGRAVO REGIMENTAL. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL. SERVIÇO DE ÁGUA E ESGOTO.
OBRIGAÇÃO DE NATUREZA PESSOAL
1. Embargos de declaração recebidos como agravo
regimental em razão da nítida pretensão infringente que deles emerge. Aplicação
dos princípios da fungibilidade e da economia processual.
2. A decisão
agravada foi baseada na jurisprudência pacífica desta Corte, a qual entende que
a natureza da obrigação pelo pagamento de contas de consumo de energia e de
água é pessoal, e não propter rem.
3. Agravo regimental não provido.
(STJ, T2 – Segunda Turma, EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp
332.334/SP, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, j. 08/10/2013, p. DJe 15/10/2013).
Os argumentos expendidos pelo tribunal
conduzem ao entendimento de que os serviços de energia, água e esgoto não
decorrem da lei, porquanto esta não prende o nascimento da obrigação necessariamente
à titularidade de um direito real. Acorde com os arestos do STJ, tais serviços
são prestados àqueles que por eles reclamam, isto é, que manifestam sua vontade no
sentido de recebê-los. O serviço de água, por exemplo, não acompanha o imóvel
onde quer que ele esteja, e sim cabe ao proprietário ou ao inquilino
solicitá-lo à prestadora do serviço.
Com isso, percebe-se que sempre que o
elemento volitivo for relevante para o surgimento do enlace obrigacional, a
prestação daí decorrente não estará indissociavelmente incrustada no direito
real. Portanto, não será propter rem.
3 – Obrigações condominiais
em face dos contratos de promessa de compra e venda: os critérios jurisprudenciais
para definição da responsabilidade pelo pagamento das despesas
Visto o conceito de obrigações propter rem, cumpre analisar agora a
responsabilidade pelas obrigações condominiais, a fim de saber se o adquirente
do imóvel responde pelas dívidas da unidade.
Nessa toada, é preciso, de início, verificar
a natureza da obrigação. Assim, considerando que, nos termos do art. 1.315 do
CC, o condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer para as
despesas de conservação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que estiver
sujeita, verifica-se que há uma imposição ex
vi legis de prestação a quem detém a titularidade de parte ideal do
condomínio. Quer isso dizer que o dever de cumprir a prestação não decorre de
uma manifestação de vontade do condômino, sendo suficiente ao nascimento da
obrigação que ele tenha assumido a titularidade de um direito real sobre a
coisa. Portanto, trata-se, a toda evidência, de uma obrigação propter rem.
Dessa maneira, por se tratar de uma obrigação
propter rem, a definição da
responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais deverá tomar em
consideração o caráter misto da obrigação, na medida em que a prestação devida
fica incontornavelmente embutida no direito real.
Nesse contexto das obrigações condominiais,
de natureza propter rem, houve quem
controvertesse acerca da legitimidade para responder pelas despesas devidas ao
condomínio na hipótese de compromisso de compra e venda. A questão consistia em
saber se, em não tendo sido levado o contrato preliminar à averbação no registro de imóveis, o
condomínio estaria obrigado a ajuizar a ação de cobrança contra o promissário
comprador imitido na posse do bem ou, ao revés, o promitente vendedor
continuaria a figurar no polo passivo ou, ainda, ambos (promitente vendedor e promissário comprador) poderiam ser demandados.
A fim de descobrir a solução desse problema jurídico, inicialmente, é preciso frisar que a jurisprudência do STJ,
atento à natureza propter rem da
obrigação in casu, já havia definido
que tanto o promitente vendedor quanto o promissário comprador são legitimados
passivos para responder pelas despesas do condomínio, de acordo com as
circunstâncias do caso concreto. Colaciono (grifo meu):
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
COBRANÇA. DESPESAS CONDOMINIAIS. COMPRA E VENDA REGISTRADA. ALIENAÇÃO
FIDUCIÁRIA. POSSE. OBRIGAÇÃO DE NATUREZA PROPTER REM. LEGITIMIDADE DA
ADQUIRENTE. 1.- A jurisprudência desta
Corte entende que que "a responsabilidade pelas despesas de condomínio
pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário
comprador, dependendo das circunstâncias do caso concreto" (EREsp
138.389/MG, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA , DJ 13.09.99). 2.- No
presente caso, "o adquirente, em alienação fiduciária, responde pelos
encargos condominiais incidentes sobre o imóvel, ainda que anteriores à
aquisição, tendo em vista a natureza propter rem das cotas condominiais"
(REsp 827.085/SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em
04/05/2006, DJ 22/05/2006, p. 219). 3.- Agravo Regimental improvido.
(STJ, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1413977/SP,
Rel. Min. Sidnei
Beneti, j. 11/02/2014, p. DJe 14/03/2014).
À luz desse julgado, nota-se que a responsabilidade
pelo adimplemento das obrigações propter
rem, da qual derivam as dívidas condominiais, não depende de averbação da
promessa de compra e venda no registro de imóveis, mas sim está atreladas à titularidade
do direito real sobre a coisa. Por esse motivo, a depender das circunstâncias
do caso concreto, tanto o promissário comprador quanto o promitente vendedor
podem figurar no polo passivo da demanda de cobrança de cotas condominiais.
Essa argumentação funda-se no teor do art.
1.334, § 2º, do CC, que dispõe:
Art. 1.334 omissis
§ 2º São equiparados aos proprietários,
para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes
compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas.
Desse modo, para fins de responsabilização, o
próprio código cuidou de equiparar promitente vendedor e promissário comprador quanto
ao status jurídico de proprietário.
Sendo assim, se ambos são “proprietários” no âmbito condominial, ambos são
titulares de direito real sobre a coisa e, conseguintemente, estão aptos a
responder ob rem pelas quotas condominiais.
Nesse sentido, colaciono excertos de um importante precedente do STJ (grifos meu):
RECURSO ESPECIAL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA DE AÇÃO
DE COBRANÇA PROMOVIDA PELO CONDOMÍNIO CONTRA O PROMISSÁRIO COMPRADOR. REAQUISIÇÃO
DO BEM PELO PROMITENTE VENDEDOR, QUE, CIENTE DOS DÉBITOS CONDOMINIAIS QUE
PASSARIAM A SER DE SUA RESPONSABILIDADE, BEM COMO DA RESPECTIVA AÇÃO, REMANESCE
INERTE, POR MAIS DE SEIS ANOS, SOMENTE INTERVINDO NO FEITO PARA ALEGAR NULIDADE
DA CONSTRIÇÃO JUDICIAL. PROCEDER PROCESSUAL REPETIDO EM OUTRAS SETE AÇÕES
CONTRA O MESMO CONDOMÍNIO. PREJUÍZO MANIFESTO DA ENTIDADE CONDOMINIAL.
VERIFICAÇÃO. PENHORA SOBRE A UNIDADE IMOBILIÁRIA, POSSIBILIDADE,
EXCEPCIONALMENTE. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. As cotas condominiais, concebidas como obrigações propter rem, consubstanciam uma prestação, um dever proveniente da
própria coisa, atribuído a quem detenha, ou venha a deter, a titularidade do
correspondente direito real. Trata-se, pois, de obrigação imposta a quem ostente
a qualidade de proprietário de bem ou possua a titularidade de um direito real
sobre aquele. Por consectário, eventual alteração subjetiva desse direito,
decorrente da alienação do imóvel impõe ao seu "novo" titular,
imediata e automaticamente, a assunção da obrigação pelas cotas condominiais
(as vincendas, mas também as vencidas, ressalta-se), independente de
manifestação de vontade nesse sentido. Reconhecida, assim, a responsabilidade
do "novo" adquirente ou titular de direito real sobre a coisa, este
poderá, naturalmente, ser demandado em ação destinada a cobrar os
correspondentes débitos, inclusive, os pretéritos, caso em que se preserva seu
direito de regresso contra o vendedor (anterior proprietário ou titular de
direito real sobre o imóvel). [...] 3.
O promitente vendedor, em regra, não pode ser responsabilizado pelos débitos
condominiais posteriores à alienação, contemporâneos à posse do promissário
comprador, pois, ao alienar o bem, tem a intenção de justamente despir-se do
direito real sobre o bem. Diversa, todavia, é a situação em que o promitente
vendedor (independente da causa) objetiva readquirir - e, de fato, vem a reaver
- a titularidade de direito real sobre o bem imóvel anteriormente alienado.
Nesse caso, deve, sim, o promitente vendedor responder pelos débitos
condominiais contemporâneos à posse do posterior titular (compromissário
comprador), sem prejuízo de seu direito de regresso, pois, em virtude da
reaquisição do bem, sua condição de proprietário e/ou titular de direito real
sobre a coisa, na verdade, nunca se rompeu. [...]. (STJ, T3 - Terceira
Turma, REsp 1440780/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17/03/2015, p. DJe
27/03/2015).
Logo, se se trata de obrigação propter rem, o vínculo obrigacional é
imposto pela lei por força da titularidade de um direito que advém da coisa (ius ad rem), independentemente de
quaisquer condicionantes que não a relação jurídica material (imissão na posse) com o imóvel.
Adotando essa orientação, o STJ julgou, sob o
rito dos recursos repetitivos, o REsp 1.345.331/RS:
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE
CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. CONDOMÍNIO. DESPESAS COMUNS. AÇÃO DE COBRANÇA.
COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA NÃO LEVADO A REGISTRO. LEGITIMIDADE PASSIVA.
PROMITENTE VENDEDOR OU PROMISSÁRIO COMPRADOR. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO.
IMISSÃO NA POSSE. CIÊNCIA INEQUÍVOCA. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC,
firmam-se as seguintes teses: a) O que define a responsabilidade pelo pagamento
das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda,
mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na
posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca
da transação. b) Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a
responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o
promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das
circunstâncias de cada caso concreto. c) Se ficar comprovado: (i) que o
promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência
inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente
vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a
posse foi exercida pelo promissário comprador. 2. No caso concreto, recurso
especial não provido. (STJ, T3 - Terceira Turma, REsp 1.345.331/RS, Rel. Min. Luis
Felipe Salomão, j. 08/04/2015, p. DJe 20/04/2015).
Esse precedente explicita o posicionamento
segundo o qual a obrigação pelo pagamento das quotas condominiais decorre da
mera assunção de um direito real sobre a coisa. Consequentemente, a averbação
da transação concernente à promessa de compra e venda é desnecessária, pois o
que importa, para fins de responsabilidade pelas dívidas condominiais, é a
efetiva imissão na posse pelo promissário comprador a latere da ciência do credor.
Forte nesses argumentos, justifica-se inclusive a redação do art.
1.345 do CC (“O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em
relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios.”).
4 – Conclusão
A tradicional classificação doutrinária dos
direitos patrimoniais implica o estabelecimento de uma divisão dicotômica que
opõe o conceito de direitos pessoais (relação jurídica entre sujeito ativo
credor e sujeito passivo devedor) ao de direitos reais (relação jurídica entre
sujeito ativo e uma coisa, em face de um sujeito passivo universal).
A partir dessa divisão, é possível
identificar situações jurídicas híbridas, ocorrentes quando os direitos reais
também estimulam o surgimento de vínculos obrigacionais próprios dos direitos
pessoais. O exemplo por excelência de hibridismo obrigacional no Direito Civil brasileiro materializa-se na
figura das obrigações propter rem.
Nesta modalidade, o elo é misto: há um conteúdo prestacional que advém
exclusivamente da titularidade de direitos reais sobre a coisa.
Com base nesses fundamentos é que a
jurisprudência do STJ enfrentou a questão consistente em saber qual o
legitimado passivo para responder pelas dívidas condominiais em contrato
preliminar de promessa de compra e venda não levado a registro.
Nesse sentido, o STJ julgou, sob o rito dos
recursos repetitivos, o REsp 1.345.331/RS e firmou a seguintes teses no
acórdão:
a) o que define a responsabilidade pelo
pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra
e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela
imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do
condomínio acerca da transação;
b) havendo compromisso de compra e venda não
levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair
tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador,
dependendo das circunstâncias de cada caso concreto;
c) se ficar comprovado: (i) que o promissário
comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da
transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para
responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi
exercida pelo promissário comprador.
Portanto, de acordo com a jurisprudência do
STJ, na hipótese de contrato preliminar de promessa de compra e venda não
averbado no registro de imóveis, para efeito de definir o responsável pelas despesas
condominiais importa considerar dois critérios fundamentais: (i) a relação
jurídica material com o imóvel (representada pela imissão do promissário
comprador na posse) e (ii) a ciência inequívoca do condomínio acerca da
transação. São esses os critérios que hão de nortear a definição da responsabilidade pelo
adimplemento do conteúdo obrigacional ínsito ao direito real e, por conseguinte, a identificação do
sujeito legitimado para figurar no polo passivo da ação de cobrança de quotas condominiais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de
janeiro de 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 16 de mai.
2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T2 –
Segunda Turma, AgRg no AREsp 29.879/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin,
j. 24/04/2012, p. DJe 22/05/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T1 –
Primeira Turma, AgRg no AREsp 265.966/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes
Maia Filho, j. 21/03/2013, p. DJe 10/04/2013. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai.
2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T2 –
Segunda Turma, EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp 332.334/SP, Rel. Min.
Mauro Campbell Marques, j. 08/10/2013,
p. DJe 15/10/2013. Disponível em: www.stj.jus.br.
Acesso em: 16 de mai. 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T3 – Terceira
Turma, AgRg no REsp 1413977/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 11/02/2014, p. DJe
14/03/2014. Disponível em: www.stj.jus.br.
Acesso em: 16 de mai. 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T3 - Terceira
Turma, REsp 1440780/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17/03/2015, p. DJe
27/03/2015. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T3 - Terceira
Turma, REsp 1.345.331/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08/04/2015, p. DJe 20/04/2015.
Disponível
em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de
mai. 2015.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD,
Nelson. Curso de Direito Civil: obrigações, vol. 2. 6ª ed.
rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 652 p.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições
de Direito Civil, vol. II. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 448 p.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte
gral das obrigações, vol. 2. 30ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002.
289 p.
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