Diferentemente do que muita gente andou dizendo
por aí de maneira açodada, a Lei 12.403/11 não é a uma “nova lei de prisões”.
Muito pelo contrário. Ela foi editada justamente para evitar o encarceramento
dos acusados, restringindo-o ao máximo, de maneira que, somente em situações
excepcionais, caberá a constrição antecipada da liberdade.
Não abordarei o móvel da lei, que remete à tema de
política criminal, e entendo plenamente contextualizado com a Constituição GARANTISTA
de 1988 (faço questão de colocar “garantista” em letras garrafais, pois, como
sabemos, tem muita gente que sai por aí se anunciando “antigarantista” sem
saber explicar minimamente esse conceito que, por sinal, é ínsito à CF/88). Adentrarei,
isto sim, os aspectos diretamente processuais do tema.
Como é consabido, com a Lei 12.403/11 e o
consequente rompimento com o tradicional paradigma bipolar limitador das
cautelares no processo penal à cautela (prisão preventiva) e à contracautela
(liberdade provisória), o juiz criminal teve ampliados os seus poderes para
aferição em concreto da necessidade do encarceramento dos acusados.
Assim, a teor da atual configuração do CPP, o
raciocínio do juiz que deseja decretar a prisão cautelar deve invariavelmente
responder a três perguntas:
1)
Estão preenchidos os requisitos legais
do art. 313 do CPP?
2)
Verifica-se EM CONCRETO algum (ou
alguns) dos pressupostos do art. 312 que autorizam a cautelar da prisão?
3)
As medidas cautelares diversas da
prisão (art. 319) são proporcionalmente inadequadas ou insuficientes à aplicação
da lei penal, à investigação ou à instrução criminal e, nos casos expressamente
previstos, para evitar a prática de infrações penais (art. 282, I, c/c § 6º),
mesmo que se pudesse atingir os mesmos desideratos processuais pela via da
cautelar de prisão preventiva?
Feito esse raciocínio, pelo qual se evidencia que
a prisão preventiva é cautelar a ser aplicada apenas em “ultima ratio” pelo
julgador, prestigia-se a regra da liberdade, protegida pela presunção de
inocência, em detrimento a juízos antecipados de culpabilidade dos réus. Com
isso, é evidente que há de se conferir prevalência às medidas cautelares
diversas da prisão, porquanto figurem como providência menos gravosa aos
direitos fundamentais e, em especial, à liberdade de locomoção do acusados em geral.
Nos termos do art. 319 do CPP, são medidas
cautelares diversas da prisão:
I - comparecimento periódico em juízo, no
prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar
atividades;
II - proibição de acesso ou frequência a
determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o
indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de
novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa
determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado
ou acusado dela permanecer distante;
IV - proibição
de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária
para a investigação ou instrução;
V - recolhimento domiciliar no período noturno
e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho
fixos;
VI - suspensão do exercício de função pública
ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio
de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII -
internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com
violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou
semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração
VIII - fiança,
nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do
processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência
injustificada à ordem judicial;
IX - monitoração eletrônica.
Dentre as medidas cautelares do art. 319, destaco
a fiança. Esta, com efeito, consubstancia medida cautelar mediante a qual o
Delegado (com atuação restrita aos casos de infrações cuja pena privativa de
liberdade máxima não seja superior a 4 anos) ou o juiz pode condicionar a
concessão da medida de contracautela, isto é, a liberdade provisória.
Casos há em que o próprio legislador cuidou de
vedar a concessão de fiança. São exemplos disso as hipóteses de crime de
racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e
os definidos como crimes hediondos, além dos crimes cometidos por grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático (CPP, art. 323). Também não cabe fiança nas hipóteses de acusados
que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou
infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts.
327 (comparecimento em juízo) e 328 (dever de manter atualizado o seu endereço
e de não ausentar-se por mais de 8 dias de sua residência sem comunicar onde poderá ser encontrado), nos casos de prisão
civil ou militar ou quando presentes os requisitos do art. 312, i. e., os
requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva (CPP art. 324), porque
aí o fumus comissi delicti, conjugado
com o periculum libertatis, impõe a segregação cautelar.
Ocorre que o condicionamento da liberdade
provisória ao adimplemento de fiança que a lei permite ao magistrado e ao
Delegado (em caráter mais restrito, como apontei acima) não está afastado de um
necessário juízo de proporcionalidade. Colorário desse entendimento é que o
próprio Código cuidou de firmar balizas legais à proporcionalidade da cautelar
de fiança, associando-a ao quantum de
pena privativa de liberdade cominada em abstrato nos seguintes termos:
1)
Pena
privativa de liberdade de até 4 anos: cabe fiança de 1 a
100 salários mínimos;
2)
Pena
privativa de liberdade superior a 4 anos: cabe fiança de
10 a 200 salários mínimos.
Há casos, entretanto, em que o princípio da
proporcionalidade pode recomendar um raciocínio matemático distinto, sempre em
homenagem à situação econômica do preso. Disso derivam pelo menos três
consequências:
1)
Acusado
com boas condições econômicas: a fiança pode ser
aumentada em até 1000 vezes;
2)
Acusado
com condição econômica precária: a fiança pode ser
reduzida em até 2/3;
3)
Acusado
hipossuficiente: a fiança pode ser dispensada.
Nesta última hipótese, a dispensa da fiança
submete-se ao disposto no art. 350, nos termos do qual o juiz pode conceder a
liberdade provisória sem fiança, sujeitando o acusado às obrigações constantes
dos arts. 327 e 328 do CPP, sempre que verificar proporcionalmente o
descabimento da exigência pecuniária diante das condições econômicas
pauperizadas do preso.
Nesse sentido, andou bem o STJ quando, julgando o
HC 238956/SP (Rel. Min. Og Fernandes, j. 29.05.2012, p. 15.06.2012) entendeu
como sendo manifestamente ilegal o constrangimento imposto por decisão judicial
que condiciona a liberdade provisória ao pagamento de fiança em valor superior
à capacidade de pagamento dos presos. No precedente, os acusados eram moradores de rua e foram presos em
flagrante por furto qualificado, após levarem objetos de uma banca de jornais.
Parece claro que, se o julgador arbitra fiança ao
preso hipossuficiente em valor superior às forças mitigadas (ou mesmo inexistentes) de sua capacidade
econômica, ele está tão somente, pela via transversa, negando o direito de
liberdade.
Ora, retomando o raciocínio supra, se o juiz pode proporcionalmente à situação econômica dos
réus condicionar a liberdade provisória à observância de outras medidas
cautelares (a exemplo do monitoramento eletrônico, comparecimento a todos os
atos do processo, proibição de ausentar-se da comarca), que sentido haveria em
exigir o pagamento de um salário mínimo de fiança a quem não tem sequer o que
comer?
Salta
aos olhos a desproporcionalidade entre meios e fins. Logo, a concessão da ordem
de habeas corpus é medida de rigor
que se impõe.
Bela decisão do STJ.
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