Absens non dicitur reversurus.
Introdução
O
enunciado 239, datado de 13 de dezembro de 1963, é um dos mais importantes da
súmula de jurisprudência do STF. Nele encontramos importante disciplina quanto
aos limites objetivos da coisa julgada em matéria tributária. Ei-lo:
STF, enunciado nº 239:
Decisão que
Declara Indevida a Cobrança do Imposto - Exercício Determinado e Posteriores -
Coisa Julgada
Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não
faz coisa julgada em relação aos posteriores.
Em uma
primeira leitura, a redação causa espécie, pois não é fácil observar o discrime
do qual se valeu o Supremo Tribunal Federal para admitir a limitação no tempo
dos efeitos da coisa julgada em matéria tributária.
Por sinal, consoante a corrente majoritária da doutrina no campo do processo civil, coisa julgada é uma qualidade que se agrega à tutela jurisdicional
prestada e entregue, de forma definitiva, ao jurisdicionado. Ainda de acordo com lição
doutrinária muito difundida, o fenômeno pode apresentar-se em duas ordens
qualitativas: coisa julgada formal e coisa julgada material. A primeira, também
chamada de preclusão máxima, verifica-se após o trânsito em julgado da decisão
judicial prolatada no processo, tornando-a imutável e indiscutível, seja porque
foram interpostos e decididos todos os recursos cabíveis, seja porque não foi
interposto nenhum recurso, seja porque já se procedeu ao reexame necessário naquelas
sentenças que o reclamam enquanto condição impeditiva do trânsito em julgado (CPC, art. 475). A segunda forma-se pari passu com a primeira, isto é, após
o trânsito em julgado e a consequente produção da coisa julgada formal, algumas
decisões (não todas, mas apenas aquelas que tiverem sido proferidas em sede de
cognição exauriente) também produzirão a coisa julgada material, a qual importa
a indiscutibilidade e imutabilidade da res
iudicata para além do processo em que originalmente proferida. Portanto,
coisa julgada material é a qualidade que permite a uma decisão projetar-se
sobre outras relações processuais, impedindo a rediscussão do que foi decidido
em grau definitivo em processo anterior.
Sobre o assunto, Cândido Rangel Dinamarco (2005, p. 314) leciona que:
Sobre o assunto, Cândido Rangel Dinamarco (2005, p. 314) leciona que:
O
mais elevado grau de imunidade a futuros questionamentos, outorgado pela ordem jurídica,
é a autoridade da coisa julgada
material, que se restringe às sentenças de mérito (CPC, arts. 467 e 468). A
própria Constituição a assegura (art. 5º, inc. XXXVI), primeiramente como
afirmação do poder estatal, não
admitindo que os atos de exercício de um poder que é soberano por natureza possam
ser depois questionados por quem quer que seja. Tal é o primeiro significado da
final enforcing power em que se traduz a autoridade da coisa julgada material.
Nem outros órgãos estatais, nem o legislador ou mesmo nenhum juiz, de qualquer
grau de jurisdição, poderá rever os efeitos de uma sentença coberta pela coisa
julgada e com isso alterar a situação concretamente declarada ou determinada
por ela (CPC, art. 267, inc. V, e art. 301, inc. VI). Daí ser ela uma garantia
constitucional, outorgada aos sujeitos em benefício da segurança das relações
jurídicas e intangibilidade dos resultados do processo. Sem a coisa julgada,
tais resultados poderiam ser revistos sucessivamente e muito menor seria a
utilidade social da jurisdição porque deixaria sempre o caminho aberto para o reacender
de conflitos.
É justamente no contexto do debate doutrinário derredor dos limites objetivos da coisa julgada que se insere o enunciado 239 da súmula de jurisprudência do STF.
Origem histórica do enunciado 239 e de sua premissa teórica fundamental
Para
entender o enunciado 239 da súmula do STF, é mister investigar o histórico dos precedentes que ensejaram sua formação. Assim, será possível
identificar a ratio decidendi que o acompanha.
Entretanto,
não se trata de tarefa muito fácil. Afinal, o enunciado em comento originou-se
de dois precedentes: o AI 11.227 (DJ de 10.02.1945) e o RE 59.423 (DJ de
12.06.1970). Ambas as decisões são antigas, como se vê. De qualquer modo, o
importante é notar que os julgados que impulsionaram a redação do enunciado originaram-se
de uma premissa teórica fundamental: a coisa julgada em matéria tributária pode
ser limitada no tempo.
Mas
por quê?
A
Corte Suprema brasileira, nesses precedentes antigos, houve por bem assumir posição no sentido de
que as sentenças que eventualmente afetassem situações jurídicas individuais e
concretas circunscrever-se-iam ao tempo em que ocorridos os fatos jurídicos
tributários.
O
exemplo mais contundente a guiar semelhante raciocínio pode ser encontrado nas
demandas cujo pedido pleiteie direito potestativo de anulação do lançamento
tributário, especialmente em se tratando de embargos à execução fiscal. Em tais
casos, como o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da
obrigação tributária, era natural que não se estendessem os efeitos preclusivos
da coisa julgada material para os lançamentos posteriores. Vejamos a
redação do art. 144 do CTN (grifo meu):
Art. 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da
obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente
modificada ou revogada.
§ 1º
Aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato
gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos
de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades
administrativas, ou outorgado ao crédito maiores garantias ou privilégios,
exceto, neste último caso, para o efeito de atribuir responsabilidade
tributária a terceiros.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica
aos impostos lançados por períodos certos de tempo, desde que a respectiva lei
fixe expressamente a data em que o fato gerador se considera ocorrido.
Nesse ponto, deve-se notar que o lançamento tributário reporta-se ao
exercício financeiro no qual é realizado. Ou seja, ele é independente
dos lançamentos que serão realizados posteriormente, não ficando a eles vinculado. Numa palavra: o
lançamento vale para o exercício no qual foi efetuado com vistas à constituição
do crédito tributário.
É
evidente que esse raciocínio vincula-se a uma compreensão estritamente formal
do Direito Tributário. Formal, visto que ligada a procedimento administrativo
tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente
(CTN, art. 142, caput).
Sentido
diverso, todavia, far-se-á presente na hipótese em que se verificar discussão
(e consequente decisão judicial) que verse sobre a existência da relação
jurídico-tributária. Em tais casos, estar-se-á diante de decisum de órgão
jurisdicional no plano do Direito Tributário compreendido num sentido material,
capaz, portanto, de impugnar a própria existência da relação jurídica. Seria o
caso, por exemplo, de decisão que afastasse a cobrança de tributo por
inconstitucionalidade ou ilegalidade da exigência da exação, situações nas
quais se faria necessário reconhecer, em detrimento do disposto no enunciado
nº 239 da súmula do STF, a incidência dos arts. 467 e 471, 1ª parte, do CPC.
Colaciono:
Art. 467.
Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e
indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou
extraordinário.
Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as
questões já decididas (...)
Postas essas considerações, a
conclusão é a de que “se a sentença afastasse
relações jurídicas tributárias individuais, mas de menor densidade de concreção
(mais abstratas), de modo a proibir a constituição do crédito tributário,
irrelevante a presença de circunstâncias de fato distintivas, os efeitos da
coisa julgada se projetariam para o futuro” (STF, AI 817.239/GO, Rel. Min. Joaquim
Barbosa, j. 01.02.2012, DJ de 08.02.2012).
De maneira a facilitar o entendimento do raciocínio acima expendido, é admissível esquematizá-lo, inclusive com arrimo na jurisprudência tributária do STJ (RE 1057733/RS), nos seguintes moldes:
1) Se o dispositivo da decisão
judicial conclui pela improcedibilidade da exação em face de peculiaridades constantes do lançamento tributário ou em razão de reconhecimento de prescrição, a coisa julgada ali reconhecida é restrita àquele exercício;
2) Se o dispositivo da decisão judicial firmar-se com fundamento em ilegalidade da espécie tributária em si mesma considerada, ou com base em sua inconstitucionalidade, ou ainda se se referir à tributabilidade como um todo, aí será forçoso reconhecer a projeção pró-futuro da coisa julgada tributária, protegendo-se o julgado prolatado, mediante a conservação de seus efeitos – mesmo em face de relação jurídico-tributária que verse sobre imposto continuativo e de obrigação periódica.
Com vistas a facilitar o entendimento do assunto, a abordagem de um exemplo, oriundo da jurisprudência (TRF1, 0029433-20.2010.4.01.3400/DF), vem a calhar.
Suponhamos,
por exemplo, que o Fisco venha a efetuar lançamento tributário sobre parcelas
de caráter indenizatório, tais como aquelas oriundas de verbas recebidas a
título de pagamento de horas extras devidas aos empregado. Ora, tratar-se-ia, na hipótese, claramente
de cobrança ilegal de tributo.
É
cediço que parcelas de caráter indenizatório não podem sofrer desconto por
força de contribuição previdenciária. É o que determina a Lei 8.212/91 (LCPS), que
expressamente exclui do rol de parcelas integrantes do salário-de-contribuição
do empregado as importâncias recebidas a título de ganhos eventuais e os abonos
expressamente desvinculados do salário.
Eis o que determina o § 9º do art. 28 da LCPS (grifo meu):
Eis o que determina o § 9º do art. 28 da LCPS (grifo meu):
§ 9º Não integram
o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente:
(...)
e) as
importâncias:
(...)
7. recebidas
a título de ganhos eventuais e os abonos expressamente desvinculados do
salário.
Ora, é
notório que a verba trabalhista oriunda do pagamento da jornada
extraordinariamente trabalhada configura ganho eventual a título de
indenização. E isso porque, consoante anota Maurício Godinho Delgado (2010, p.
835):
a jornada extraordinária é o
lapso de trabalho ou disponibilidade do empregado perante o empregador que
ultrapasse a jornada padrão, fixada em regra jurídica ou cláusula contratual. É
a jornada cumprida em extrapolação à jornada padrão aplicável à relação
empregatícia concreta.
Dessa
maneira, o empregado, que sacrifica seu direito ao descanso e ao lazer fora do horário normal de trabalho,
recebe, a título de indenização, a verba adicional pelas horas trabalhadas extraordinariamente. Logo,
descabe a incidência do desconto de contribuição previdenciária sobre verbas de
horas extras ante seu manifesto caráter indenizatório.
Destarte,
eventual decisão - que viesse a reconhecer a ilegalidade da incidência de
contribuição previdenciária sobre parcelas de natureza indenizatória - atacaria,
fatalmente, o gravame em si, ou seja, estaria a infirmar de ilegal o tributo em
seu aspecto material de hipótese de incidência, não se podendo exigir o seu
adimplemento, ainda que para exercícios posteriores, sem ofensa manifesta à
coisa julgada.
Mas vale
frisar que, se a decisão proferida pelo órgão judicial notadamente restringe o
seu dispositivo, para afastar a cobrança do tributo apenas quanto a um
determinado exercício financeiro, impende aplicar o enunciado nº 239 da súmula
do STF (“Decisão que declara indevida a
cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação
aos posteriores”).
Conclusões
Referências
Diante de tudo quanto foi exposto, é possível fixar algumas premissas com vistas a embasar a leitura do enunciado nº 239 da súmula de jurisprudência do STF, proporcionando os
seguintes elementos concludentes de sua interpretação:
a) os efeitos da coisa julgada
material em matéria tributária podem ser limitados validamente no tempo;
b) a decisão em matéria
tributária, uma vez transitada em julgado, produz efeito para o futuro, mas
desde que a situação nela versada permaneça a mesma, isto é, contanto que a
situação de fato e de direito declarada na sentença reste inalterada pelo
decurso do tempo;
c) se a decisão impugnar a
legalidade ou a constitucionalidade do tributo (isto é, atacá-lo como um todo), os efeitos da imutabilitade e indiscutibilidade da coisa julgada
projetar-se-ão para o futuro, ainda que se cuide de relação jurídico-tributária
de caráter continuativo e de obrigações aferidas com periodicidade;
d) a contrario sensu, se a
sentença que transitou em julgado versar sobre situação de fato e de direito
modificável pelo decurso do tempo, especialmente naqueles casos em que o
sentido e o alcance da decisão prolatada se tenham restringido a um
determinado exercício financeiro (plano do Direito Tributário estritamente
formal), aí será caso de aplicar o enunciado 239 da súmula de jurisprudência
predominante do STF, autorizando-se o ajuizamento de nova demanda por parte do contribuinte, pois os limites objetivos da nova coisa julgada serão distintos daqueles apreciados no processo que engendrou a formação da coisa julgada anterior.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: LTr, 2010.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. 3. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. 3. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
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