Et nos ergo manum ferulae subduximus.
Introdução
Dentre
os princípios orientadores do Direito da Criança e do Adolescente, o da
proteção integral é merecedor de destaque. É com base nele que a
doutrina sublinha, dentro da sistemática protetiva dos infantes, o aspecto consistente
no reconhecimento de que são autênticos sujeitos
de direito. Com isso, afasta-se a ideia de que crianças e adolescentes
seriam meros objetos da proteção
jurídico-legal.
A distinção entre sujeito e objeto é relevante para o Direito da Criança e do Adolescente. Por
exemplo, foi com base na noção de criança-objeto que se deu a elaboração da Declaração dos Direitos da Criança de Genebra de
1924 – marco regulatório pioneiro do tema dentro da historiografia do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, uma vez que enunciou o dever de proteção
integral da infância.
Com
a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, a
proteção da dignidade da pessoa humana tornou-se o centro nevrálgico da
sociedade internacional, que paulatinamente passou a reconhecer à tutela dos
direitos humanos o qualificativo de normas imperativas de direito internacional
(ius cogens).
Logicamente, os direitos infantojuvenis também foram
afetados pela nova conformação do Direito Internacional após a promulgação da
Declaração de 1948. Primeiro porque a infância foi inserida no bojo da DUDH
(“Artigo XXV, 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e
assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio,
gozarão da mesma proteção social.”). Segundo porque a generalidade dos termos
em que fora redigida a DUDH impunha a consequência de que documentos
internacionais posteriores viessem a complementá-la, delineando as
garantias dos direitos enunciados, tanto mais eficientes quanto capazes de apreender as especificidades
dos distintos grupos merecedores de proteção jurídica em nível mundial.
Foi esse o contexto que engendrou a promulgação de novo documento internacional relativo à proteção da infância: a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações
Unidas em 20 de novembro de 1959. Essa nova declaração modifica o paradigma
anterior, esposado pela Declaração de Genebra de 1924, ao enunciar um conjunto
de princípios protetivos da infância orientados doutrinariamente pelo reconhecimento de que as
crianças não mais eram meros objetos, mas verdadeiros credores (e, portanto,
sujeitos) desses direitos. Exemplificativamente, eis o que determina o
Princípio 1 da Declaração em comento:
Princípio 1
A criança gozará todos
os direitos enunciados nesta Declaração. Todas as crianças, absolutamente sem
qualquer exceção, serão credoras destes direitos, sem distinção ou
discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento
ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família.
Do
ponto de vista da fixação de garantias que pudessem dotar de coercibilidade as normas assecuratórias dos direitos da infância, o tratado mais importante foi promulgado pela
ONU apenas em 1989. Trata-se da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada,
no Brasil, por meio do decreto 99.710/90. Nesse tratado voltado à
proteção dos direitos humanos infantojuvenis, houve a consolidação da tendência que atribui às
crianças a condição de sujeitos de direito merecedores de proteção jurídica
integral e prioritária por parte dos Estados integrantes da sociedade
internacional. Vejamos um rápido exemplo:
Artigo 6
1. Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente
à vida.
2. Os Estados Partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o
desenvolvimento da criança.
Por
meio da redação acima, a convenção deixa claro que toda criança tem direito à
vida. Essa expressão “tem direito” permite ao exegeta compreender o seguinte:
as crianças são credoras, perante os Estados, do seu direito à vida. Logo, todo
ser humano com menos de dezoito anos de idade (conceito de criança extraído da
leitura do art. 1º do tratado) é sujeito
do direito à vida.
Esse breve introito do Direito Internacional dos Direitos Humanos serve para demonstrar o cenário histórico em que se encontra o cipoal normativo direcionado à proteção da infância e juventude no Brasil. Tanto a Constituição de 1988 quanto a legislação infraconstitucional – especialmente a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) – hão de incorporar o reconhecimento aos infantes da condição de titulares (credores) de direitos.
Esse breve introito do Direito Internacional dos Direitos Humanos serve para demonstrar o cenário histórico em que se encontra o cipoal normativo direcionado à proteção da infância e juventude no Brasil. Tanto a Constituição de 1988 quanto a legislação infraconstitucional – especialmente a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) – hão de incorporar o reconhecimento aos infantes da condição de titulares (credores) de direitos.
Direitos fundamentais e a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente
Uma
vez transpostos do plano dos tratados internacionais para o do direito interno,
os direitos humanos das crianças tomam a forma de direitos fundamentais. No
Brasil, essa transposição pode ser percebida à luz do caput art. 227 da Constituição de 1988
(com a redação dada pela EC 65/10):
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
Naturalmente,
também o Estatuto da Criança e do Adolescente consagra essa ordem de direitos
fundamentais em norma de redação praticamente idêntica. Colaciono o caput do art. 4º do Estatuto:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária.
Em
um e outro caso (Constituição e Estatuto), é possível notar um plexo de
direitos infantojuvenis a serem assegurados a todas as crianças e adolescentes
com absoluta prioridade. Esse raciocínio é ratificado pelo próprio art. 1º da
Lei 8.069/90. In verbis:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao
adolescente.
Sobre
o assunto, Rossato, Lépore e Sanches (2012, p. 77) ponderam que:
O art. 1º do Estatuto
adota expressamente a doutrina da proteção integral. Essa opção do legislador
fundou-se na interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais que
elevaram ao nível máximo de validade e eficácia as normas referentes às
crianças e aos adolescentes, e que, por sua vez, foram inspirados nas normas
internacionais de direitos humanos, tais como a Declaração Universal dos
Direitos da Criança e a Convenção sobre os Direitos da Criança. Assim, pode-se
apontar que o reconhecimento jurídico dos direitos da criança e do adolescente
se deu no Brasil já em um novo patamar, mais ligado aos processos
emancipatórios e constituído por uma concepção de positivação dos direitos
humanos, tornando-os fundamentais.
Para
os fins deste artigo, dentre os direitos fundamentais assegurados à infância e
à juventude, importa-me considerar, sobretudo, o direito à convivência
familiar.
Direito fundamental à convivência familiar e excepcionalidade da colocação em família substituta: crítica ao epíteto doutrinário da "Lei Nacional de Adoção"
Interpretando
o direito fundamental à convivência familiar, conclui-se que o seu
estabelecimento implica a priorização do desenvolvimento integral da criança e
do adolescente no seu núcleo familiar de origem. Por outras palavras, quaisquer
medidas que visem a retirar o infante do seio de sua família, seja ela natural (pais e seus descendentes)
ou extensa (parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade), serão tomadas em caráter absolutamente excepcional.
Por
esse motivo, parece-me desaconselhável a referência que parte da doutrina faz à
Lei 12.010/09 – um dos mais importantes diplomas reformistas da Lei 8.069/90 -
pelo recurso ao epíteto de “Lei Nacional de Adoção”. Na verdade, o objetivo do
diploma não é facilitar a adoção, como a expressão leva a crer,
mas sim regular a sua excepcionalidade. A prova cabal dessa afirmação é o que se encontra
inscrito no art. 1º da lei alteradora (grifos meus):
Art. 1º Esta Lei
dispõe sobre o aperfeiçoamento da sistemática prevista para garantia do direito
à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, na forma prevista
pela Lei no 8.069, de 13
de julho de 1990, Estatuto
da Criança e do Adolescente.
§ 1º A
intervenção estatal, em observância ao disposto no caput do art. 226 da
Constituição Federal, será
prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social da família
natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer, ressalvada
absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial fundamentada.
§ 2º Na
impossibilidade de permanência na família natural, a criança e o adolescente
serão colocados sob adoção, tutela ou guarda, observadas as regras e princípios
contidos na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e na Constituição Federal.
Com
efeito, a Lei 12.010/09 deve ser lida de maneira contextualizada. É preciso
lê-la em conjunto com as demais regras regentes do direito fundamental à
convivência familiar e que se encontram previstas no Estatuto. Nesse sentido,
dispõe o art. 19 do ECA:
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado
no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a
convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas
dependentes de substâncias entorpecentes.
A
redação desse dispositivo legal evidencia o que acima já se expôs: todas as crianças e
adolescentes têm direito a desenvolver-se junto à sua família de origem,
considerando-se absolutamente excepcional
toda e qualquer medida que vise à sua colocação em família substituta.
Por esse motivo, em sobrevindo a necessidade de retirar a
criança ou o adolescente do seu lar original, será preciso proceder com muita
cautela. Exemplo disso é a determinação nos termos da qual, se houver a inserção
de criança ou adolescente em programa de acolhimento familiar ou institucional,
caberá à autoridade judiciária competente reavaliar a situação a cada 6 meses,
de modo a permitir que o juiz decida quanto à possibilidade de reintegração
familiar (ECA, art. 19, § 1º). Apenas se não for possível a medida
reintegradora é que se abrirá a hipótese de colocação em família substituta,
pois “a manutenção ou reintegração de criança ou adolescente à sua família terá
preferência em relação a qualquer outra providência” (ECA, art. 19, § 3º, 1ª
parte).
Uma
vez fixada a premissa da excepcionalidade, fica fácil compreender que o
procedimento de colocação em família substituta deve cercar-se de garantias. A
primeira dessas garantias consiste na definição das modalidades mediante as
quais será possível deslocar criança ou adolescente de seu grupo familial de
origem. Sendo assim, dispõe o art. 28 do ECA:
Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda,
tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou
adolescente, nos termos desta Lei.
O
próprio Estatuto cuidou de conceituar essas modalidades.
Nos termos da lei, “guarda” deve ser compreendida como a
regularização da posse de fato, obrigando o detentor a prestar assistência
material, moral e educacional à criança ou adolescente, porquanto sejam
considerados dependentes, para todos os fins de direito, inclusive
previdenciários (ECA, art. 33, §§ 1º e 3º). Em regra, a guarda será deferida,
liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, salvo se se
tratar de adoção internacional (art. 51). Em caráter excepcional, ainda é
possível que haja o deferimento da guarda fora das hipóteses de tutela e
adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais
ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática
de atos determinados (art. 33, § 2º).
Esse direito de representação, que normalmente não
acompanha a guarda, é o característico principal do conceito de tutela. Na
verdade, tutor é conceito mais amplo que o de guardião, visto que a tutela,
além de oportunizar a regularização da posse de fato do pupilo, a acarretar
necessariamente o dever de guarda e seus consectários (assistência material,
moral e educacional), abrange também o direito de representação, aqui entendido
como a possibilidade de administrar os interesses, incluindo os bens, da
criança ou do adolescente. Daí porque o deferimento da tutela pressupõe a
prévia decretação da perda ou suspensão do poder
familiar (ECA, art. 36, parágrafo único).
A adoção, embora seja a mais popular das modalidades de colocação
em família substituta, é frequentemente mal compreendida. Em primeiro lugar,
não custa repisar que se cuida de medida de ultima
ratio, jamais podendo ser tratada à guisa de prioritária à luz da Lei
8.069/90. É o que dispõe o § 1º do seu art. 39, in verbis (grifo meu):
§ 1o A adoção é medida excepcional e
irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de
manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do
parágrafo único do art. 25 desta Lei.
Quanto ao caráter excepcional da adoção, Mário Luiz
Ramidoff (2012, p. 30) assim se pronuncia:
A
adoção, certamente, não se constitui na medida legal que por si só tem a
possibilidade técnica de resolver os sérios problemas sociais – abandono,
maus-tratos, abuso e violência sexual, dentre outros – relacionados à criança e
ao adolescente.
Por
isso, constitui-se numa medida excepcional, impondo-se, pois, esgotar todos
os meios necessários e adequados para que as famílias criem, eduquem e assistam
os seus filhos infantes e adolescentes.
Outro ponto que me parece seja de interesse mencionar
refere-se ao procedimento. A adoção, em comparação com a guarda e a tutela, é a
modalidade que mais apresenta restrições. A razão é que o legislador, atento às
consequências que dela advém (irrevogabilidade, por exemplo), buscou
disciplinar sua concessão em lindes determinados, bem específicos.
Por esse motivo, o Estatuto impõe que o adotando deve
contar com, no máximo, dezoito anos à data do pedido, salvo se já estiver sob a
guarda ou tutela dos adotantes (art. 40). Da mesma maneira, só podem adotar os
maiores de 18 anos de idade (art. 42, caput),
exigindo-se que o adotante seja, pelo menos, 16 anos mais velho do que o
adotado (art. 42, § 3º). A lei veda
também a adoção por parte de ascendentes ou irmãos do adotando (art. 42, § 1º).
Ainda no tocante ao regramento minudente da adoção, o art.
45 do ECA estipula que o seu deferimento pressupõe o consentimento dos pais ou
do representante legal do adotando. E, embora seja cabível a alegação de vício
no ato do genitor que consente com a colocação em família substituta, pode
suceder de a eiva ser convalidada pelo decurso de expressivo lapso temporal, a
denotar que o interesse superior da criança dar-se-ia com a permanência no
núcleo familiar formado após o deferimento da adoção.
O STJ, no REsp 1.199.465/DF, relatado pela Min. Nancy
Andrighi, julgado em 14.06.2011, já teve oportunidade de decidir nesse sentido,
senão vejamos:
CIVIL. ADOÇÃO. VÍCIO NO CONSENTIMENTO DA
GENITORA. BOA-FÉ DOS ADOTANTES. LONGO CONVÍVIO DA ADOTANDA COM OS ADOTANTES.
PREPONDERÂNCIA DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA.
1. A criança
adotanda é o objeto de proteção legal primário em um processo de adoção,
devendo a ela ser assegurada condições básicas para o seu bem-estar e desenvolvimento sociopsicológico.
2. A constatação de vício no consentimento
da genitora, com relação a entrega de sua filha para a adoção, não nulifica,
por si só, a adoção já realizada, na qual é possível se constatar a boa-fé dos
adotantes.
3. O alçar do direito materno, em relação à
sua prole, à condição de prevalência sobre tudo e todos, dando-se a coacta
manifestação da mãe-adolescente a capacidade de apagar anos de convivência familiar, estabelecida
sobre os auspícios do Estado, entre o casal adotante, seus filhos naturais e a
adotanda, no único lar que essa sempre teve, importa em ignorar o direito
primário da infante, vista mais como objeto litigioso e menos, ou quase nada,
como indivíduo, detentora, ela própria, de direitos, que, no particular, se
sobrepõe aos brandidos pelas partes.
4. Apontando as circunstâncias fáticas para
uma melhor qualidade de vida no lar adotivo e associando-se essas
circunstâncias à convivência da
adotanda, por lapso temporal significativo - 09 anos -, junto à família
adotante, deve-se manter íntegro esse núcleo familiar.
5. Recurso especial provido.
Do ponto de vista jurídico, o mais importante dos efeitos
da adoção é o desfazimento dos vínculos familiares pretéritos do adotado. Isso
dizer que, uma vez deferida a adoção, o adotado fica desligado de qualquer
vínculo com os pais ou parentes oriundos da família substituída, salvo os
impedimentos matrimoniais (art. 41, in
fine). Daí se pode depreender a gravidade da modalidade de colocação em
família substituta mediante adoção. Afinal, ela renova os laços familiares,
atribuindo a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres,
inclusive sucessórios. E o mais importante: a filiação adotiva dá-se em caráter
irrevogável. Ou seja, uma vez concluído o procedimento de adoção, o poder
familiar original desfeito em nenhuma hipótese será restabelecido.
As hipóteses legais restritivas da adoção conjunta no Estatuto da Criança e do Adolescente e a proposta de uma interpretação teleologicamente orientada ao interesse superior da criança
No que concerne aos efeitos sobre os vínculos familiares,
a doutrina aponta uma classificação dicotômica da adoção. De um lado, há a adoção singular, entendida como a realizada
a pedido de apenas uma pessoa, homem ou mulher, e que vem sendo chancelada
jurisprudencialmente, não obstante inexistir previsão textual no ECA. De outro,
a adoção conjunta, que conta com
previsão expressa nos parágrafos do art. 42 do Estatuto. Reproduzo-os:
§ 2o Para adoção conjunta, é indispensável que
os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a
estabilidade da família.
§ 4º Os
divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros podem adotar
conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas e
desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período
de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e
afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem a
excepcionalidade da concessão.
Diante do texto de lei, a questão que se coloca é a de
saber se essas hipóteses previstas no Estatuto foram fixadas em numerus clausus ou, ao revés,
poder-se-ia admitir a sua ampliação para o fim de autorizar a adoção conjunta
em situações não expressamente reguladas no texto legal.
Essa dúvida foi recentemente objeto de discussão no STJ.
No caso submetido ao exame daquele Tribunal Superior, a União interpôs recurso
especial com vistas a anular a adoção conjunta de uma criança feita por uma
mulher com seu irmão. A peculiaridade do caso reside, todavia, na circunstância
de o irmão da adotante ter falecido no decurso do procedimento judicial.
Aí se cuida de invocar o § 6º do art. 42 do Estatuto (com
a redação dada pela Lei 12.010/09). Colaciono:
§ 6º A adoção
poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade,
vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.
Nesse dispositivo, encontramos a autorização legal para a
figura que a doutrina convencionou denominar de adoção póstuma, post mortem ou nuncupativa. Sua leitura permite inferir tratar-se de modalidade especial de adoção, havida em
decorrência do falecimento de um dos adotantes no curso do procedimento. Como o
óbito deu-se antes da prolação da sentença que decide acerca da formação do
vínculo filial adotivo, o legislador cuidou de autorizar o deferimento da
medida de colocação em família substituta, contanto que comprovada a
manifestação de vontade inequivocamente direcionada a esse propósito pelo
adotante falecido. É, por isso mesmo, a única hipótese que admite que a
sentença - que reconhece ao adotado a filiação postulada - possa operar
retroativamente, projetando (ex tunc)
os efeitos da coisa julgada então formada para a data em que o adotante veio a
falecer.
No caso concreto, a União impugnou de ilegal a adoção
póstuma deferida, em razão de que teria havido desrespeito à regra do § 2º do
art. 42 do ECA, no sentido de que “Para adoção conjunta, é indispensável que os
adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a
estabilidade da família.” Ora, como os adotantes eram irmãos, desatendida
estaria a norma aludida, porquanto não teriam satisfeitos os requisitos de
casamento, tampouco de união estável. Sequer virtualmente seria possível pensar
em casamento entre os adotantes, dado haver impedimento civil a obstar que irmãos contraiam o enlace matrimonial (CC, art. 1.521, IV).
Submetido o recurso especial a julgamento, a Terceira
Turma do STJ entendeu que as hipóteses de adoção conjunta, previstas no artigo
42 do Estatuto da Criança e do Adolescente, não são as únicas que atendem
ao objetivo essencial da lei, que é a inserção do adotado em família estável. Seguindo
o voto da relatora, Min. Nancy Andrighy, a Turma entendeu que o pedido de
adoção, no caso concreto, confundir-se-ia com o reconhecimento de filiação socioafetiva
preexistente. Sim, pois o adotante falecido já de há muito construíra vínculo
de afeto com o adotado, aliás, desde que esse possuía 4 anos de idade. Com
isso, o entendimento turmário inclinou-se no sentido de perquirir a inequívoca
intenção de adotar pelo falecido. Uma vez caracterizada essa intenção, a Turma
entendeu que as restrições legais do § 2º do art. 42 do ECA não se poderiam
sobrepor ao melhor interesse do adotando – que, no caso sub examinen, dava-se exatamente com o reconhecimento judicial da
adoção. Eis as palavras da relatora do caso em apreço:
A exigência legal restritiva, quando em manifesto descompasso com o fim
perseguido pelo próprio texto de lei, é teleologicamente órfã, fato que ofende
o senso comum e reclama atuação do intérprete para flexibilizá-la e adequá-la
às transformações sociais que dão vulto ao anacronismo do texto de lei.
O mais interessante é notar que, com essa decisão, o STJ
superou a discussão em derredor da adoção conjunta, consistente na sua
limitação legal às hipóteses expressamente consignadas nos parágrafos do art.
42 do ECA. Isso porque, se o julgador reconhecer em concreto que a inserção do
adotando em família substituta atende o interesse superior da criança e do
adolescente (doutrina da proteção integral), a exemplo da formação pretérita de
núcleo familiar estável lastreado em relação comprovadamente sólida de afeto,
seria de todo desarrazoado ater-se a um legalismo estrito, para impedir o deferimento
da adoção. Semelhante entendimento, que pugna por uma exegese legalista empedernida, iria de encontro ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual determina, de maneira expressa, que na interpretação dessa lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (art. 6º).
Conclusão
A decisão da Terceira Turma do STJ constitui-se em
precedente dos mais importantes quanto ao estudo do instituto da adoção no
Direito da Criança e do Adolescente brasileiro. Nos seus termos, percebemos a
tendência da Corte em superar exegeses estritamente legalistas, em homenagem à
principiologia que encerra o Estatuto, voltada à realização dos direitos
fundamentais de cunho infantojuvenis.
Mais do que isso, a decisão do STJ demonstra que o
Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser interpretado à luz da doutrina da
proteção integral e prioritária. Impende, assim, analisar a aplicação das
regras da Lei 8.069/90 teleologicamente orientadas a assegurar a eficácia dos
direitos fundamentais conferidos às crianças e aos adolescentes. Diante desse
orientação teleológica, descabe argumentar-se que requisitos legais estariam a
ser violados, quando se puder observar que circunstâncias aparentemente não previstas
em lei atendem ao interesse superior do infante.
A conclusão, portanto, é a de que o Estatuto da Criança e
do Adolescente reclama uma interpretação aberta, assecuratória dos direitos
fundamentais infantojuvenis em ordem a dar-lhes máxima expressão eficacial. Só
uma interpretação teleológica dessa natureza tem o condão de concretizar as
normas que integram a arquitetura internacional de direitos humanos protetiva
da infância e da juventude, nos termos das quais é imperioso reconhecer também às
crianças e aos adolescentes a condição de credores da dignidade da pessoa humana, isto é,
de autênticos sujeitos de direito.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial com número não divulgado por força de sigilo judicial. Decisão da Terceira Turma. Notícia divulgada em 25/09/2011. Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=107097. Acesso em: 01 out. 2012.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial com número não divulgado por força de sigilo judicial. Decisão da Terceira Turma. Notícia divulgada em 25/09/2011. Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=107097. Acesso em: 01 out. 2012.
RAMIDOFF, Mário Luiz. Direitos difusos e coletivos IV: Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Saraiva, 2012. 165 p. (Coleção Saberes do Direito, v. 37).
ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: Lei 8.069/1990, artigo por artigo. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. 636 p.
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