Em destaque, no primeiro plano, Ministro Og Fernandes, relator do HC 204.778/SP no STJ. |
Introdução
O
inquérito policial representa, no plano do direito processual penal, o
procedimento de natureza administrativa que visa à colheita dos elementos de
prova que possam subsidiar a conclusão acerca da autoria e da materialidade das
infrações penais que estejam a ser apuradas. No curso do inquérito, portanto,
são realizadas as diligências investigatórias que contribuem para a formação da
opinio delicti do Parquet nos crimes de ação penal pública, isto é, a decisão
do órgão do Ministério Público quanto ao oferecimento (ou não) da denúncia. Se
se tratar de crimes de ação penal de iniciativa privada, o procedimento
inquisitorial é igualmente relevante, na medida em que as informações nele
colhidas permitem que o ofendido possa oferecer a sua queixa-crime.
No ordenamento
jurídico brasileiro, as diligências procedidas no curso de inquérito policial
não condicionam a propositura da competente ação penal. Vale dizer, trata-se de
um procedimento administrativo prescindível (dispensável), não se impondo qual
uma condição obrigatória a ser vencida na fase pré-processual. Isso porque,
dada sua natureza de peça meramente informativa, nada obsta a que o Ministério
Público (nas ações penais públicas) ou o ofendido (nas ações penais de
iniciativa privada) deflagrem a persecução penal em juízo, contanto que
disponham antcipadamente de um lastro probatório mínimo que seja idôneo a
subsidiar a justa causa da ação penal (CPP, art. 39, § 5º, c/c art. 46, § 1º).
A função da notitia criminis na iniciação do inquérito policial
Entretanto, posto que o inquérito não seja imprescindível ao oferecimento da
denúncia ou da queixa-crime, é fato que ele constitui o mecanismo de
investigação preliminar por excelência no processo penal brasileiro, tanto que
será realizado pela polícia judiciária, a ser exercida pelas autoridades
policiais no território de suas respectivas circunscrições, e terá por fim a
apuração das infrações penais e da sua autoria (CPP, art. 4º, caput).
No tocante às
formalidades que deflagram validamente as diligências em sede de inquérito
policial, ganham importância os atos que dão início ao procedimento. Assim, estabelece
o art. 5º do CPP:
Art. 5º Nos
crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:
I - de
ofício;
II - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério
Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para
representá-lo.
À luz do dispositivo acima, é possível afirmar, sumamente, que o inquérito policial pode iniciar-se a partir da atividade investigativa atribuída aos órgãos do aparelho estatal incumbido de salvaguardar a segurança pública. É o caso, por exemplo, da autoridade policial que toma conhecimento de notitia criminis dando conta de que teria havido uma prática delitiva na cincunscrição territorial de sua atuação, cabendo-lhe, ato contínuo, instaurar o inquérito policial ex officio, mediante a expedição da portaria, para apurar o crime de ação penal pública incondicionada. É preciso ressaltar ainda que esse dever de ofício existe independentemente de condicionantes de ordem formal. Ou seja, sempre que tomar conhecimento da prática da ação criminosa, a autoridade policial deverá expedir a portaria e proceder à abertura do inquérito, pouco importanto a origem do seu conhecimento quanto à ocorrência do fato delituoso (se soube do crime pela televisão ou por boletim de ocorrência lavrado na delegacia, é indiferente do ponto de vista processual).
Delatio criminis e notitia criminis inqualificada: pode a anonimidade da comunicação invalidar a instauração de inquérito policial?
Pode suceder, no entanto, de um cidadão qualquer tomar conhecimento da prática de uma infração penal. Que fazer nesse caso?
O Código de Processo Penal prevê, em tal hipótese, a chamada delatio criminis, que nada mais é quem uma das espécies de notitia criminis, com a peculiaridade de se tratar de uma faculdade consistente na comunicação à autoridade policial, feita por qualquer pessoa do povo, quanto à ocorrência da infração. É o que prevê o § 3º do art. 5º do CPP, senão vejamos:
§ 3º Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da
existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou
por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a
procedência das informações, mandará instaurar inquérito.
Interpretando o dispositivo acima, Aury Lopes Jr. (2010, p. 274) conclui que
a regra é que qualquer pessoa pode (faculdade, e não um dever) comunicar a ocorrência de um delito de ação penal de iniciativa pública, cabendo à polícia verificar a procedência da delatio criminis e instaurar o inquérito policial, que, uma vez iniciado, não poderá ser arquivado (salvo quando assim o requerer o MP ao juiz competente).
Uma vez efetuada a notitia criminis pelo povo, é dever da autoridade policial instaurar o inquérito, a fim de apurar se as informações que noticiam ter havido um fato criminoso são efetivamente escorreitas. Caso não inicie as investigações, desprezando a delatio criminis, o delegado poderá ser responsabilizado disciplinarmente. Esclarecido esse contexto, surge naturalmente a seguinte dúvida: se a pessoa do povo que tiver dado ciência do crime à autoridade policial for desconhecida? Para usar um termo vulgar correntio, se se tratar de "denúncia anônima", cabe iniciar-se um inquérito policial com fulcro nos informes da fonte ignorada?
O tema é polêmico na doutrina, havendo autores que, invocando o preceito constitucional que veda o anonimato (CF, art. 5º, IV, in fine), entendem incabível a iniciação de investigação preliminar com base em denúncia anônima. O próprio STF já teve oportunidade de decidir nesse sentido:
ANONIMATO -
NOTÍCIA DE PRÁTICA CRIMINOSA - PERSECUÇÃO CRIMINAL - IMPROPRIEDADE. Não serve à
persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria,
consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver
parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a
implemente. (STF, HC 84.827/TO, 1ª Turma, Rel. Min. Marco
Aurélio, j. 07/08/2007, p. DJe 23/11/2007).
Em primeiro lugar, cumpre assinalar que, do ponto de vista técnico, a "denúncia anônima" recebe a denominação de notitia criminis inqualificada. Esse conceito doutrinário abrange todas as comunicações feitas à autoridade policial sob o signo da anonimidade. Assim, a notícia do crime anônima pode, por exemplo, dar-se mediante escritos sem assinatura de autor (notitia criminis inqualificada apócrifa). Pode ainda ser feita via sistemas de comunicação telefônica (notitia criminis inqualificada oral).
Nesse ponto, o importante é perceber que, ante a determinação constitucional que veda o anonimato, a jurisprudência, a fim de preservar a notitia criminis inqualificada qual relevante ferramenta de deflagração das investigações policiais, assentou as bases de entendimento segundo o qual a "denúncia anônima" é válida, contanto que a autoridade policial realize investigações previamente à instauração do inquérito policial.
Apesar de existirem algumas divergências e, não obstante o anonimato seja vedado até mesmo em nível constitucional (art. 5º, IV, da CF), a comunicação de um fato criminoso à autoridade policial não exige a identificação do denunciante como condição para a apuração do ilícito narrado. Evidentemente, nesses casos, a cautela recomenda que a autoridade policial, antes de proceder à instauração formal do inquérito mediante expedição de portaria, realize investigação preliminar com vistas a constatar a plausibilidade do relato. Encontrando, a partir desta apuração sumária, evidências no sentido de que não não se trata de de falsa notícia, deverá, então, proceder à instauração do inquérito visando à elucidação do fato. (AVENA, 2012, p. 157).
Esse mesmo ponto de vista é reforçado por Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 61):
Mas, no que respeita à fase investigatória, observa-se que, diante da gravidade do fato noticiado e da verossimilhança da informação, a autoridade policial deve encetar diligências informais, isto é, ainda no plano da apuração da existência do fato - e não da autoria - para comprovação da idoneidade da notícia. É dizer: o órgão percesutório deve promover diligências para apurar se foi ou não, ou se está ou não, sendo praticada a alegada infração penal. O que não se deve é determinar a imediata instauração de inquérito policial sem que se tenha demonstrada a infração penal nem mesmo qualquer indicativo idôneo de sua existência. Em duas palavras, (..) deve-se agir com prudência e discrição, sobretudo para evitar a devassa indevida do patrimônio moral de quem tenha sido, levianamente, apontado na delação anônima.
Casuística dos tribunais superiores: denúncia anônima, instauração de inquérito policial e quebra de sigilo nas comunicações telefônicas (Lei 9.296/96)
Essa discussão doutrinária e jurisprudencial tem ganhado contornos bem interessantes quando submetida às exigências da Lei 9.296/96. Afinal, seria possível fundamentar medida judicial que autoriza a interceptação telefônica com fuclo em "denúncia" anônima?
Mais uma vez, também nessa seara, deve prevalecer o que já ponderei antes com arrimo doutrinário: antes de instaurar formalmente o inquérito, deve a autoridade policial proceder a investigações preliminares, de maneira a atestar a veracidade material dos fatos relatados. Assim agindo, preserva-se a importante participação popular no combate à criminalidade, noticiando a ocorrência de fatos criminosos, ainda que sob a égide da anonímia, ao passo que se evita o inconveniente indiciamento de pessoas quanto a fatos desapercebidos de um mínimo de lastro probatório. É como o STF vem decidindo (grifos meus):
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL.
POSSIBILIDADE DE DENÚNCIA ANÔNIMA, DESDE QUE ACOMPANHADA DE DEMAIS ELEMENTOS
COLHIDOS A PARTIR DELA. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO.
TRANCAMENTO DO INQUÉRITO. DENÚNCIA RECEBIDA. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO
ILEGAL. 1. O precedente referido pelo impetrante na inicial (HC nº 84.827/TO,
Relator o Ministro Marco Aurélio, DJ de 23/11/07), de fato, assentou o
entendimento de que é vedada a persecução penal iniciada com base,
exclusivamente, em denúncia anônima. Firmou-se a orientação de que a autoridade
policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências
preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa "denúncia" são
materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações. 2. No caso
concreto, ainda sem instaurar inquérito policial, policiais federais
diligenciaram no sentido de apurar as identidades dos investigados e a
veracidade das respectivas ocupações funcionais, tendo eles confirmado tratar-se
de oficiais de justiça lotados naquela comarca, cujos nomes eram os mesmos
fornecidos pelos "denunciantes". Portanto, os procedimentos tomados
pelos policiais federais estão em perfeita consonância com o entendimento
firmado no precedente supracitado, no que tange à realização de diligências
preliminares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e,
então, instaurar o procedimento investigatório propriamente dito. 3. Habeas
corpus denegado.
(STF, HC 95.244/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 23/03/2010, p. DJe 30/04/2010).
HABEAS CORPUS. “DENÚNCIA ANÔNIMA” SEGUIDA DE
INVESTIGAÇÕES EM INQUÉRITO POLICIAL. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS E AÇÕES PENAIS
NÃO DECORRENTES DE “DENÚNCIA ANÔNIMA”. LICITUDE DA PROVA COLHIDA E DAS AÇÕES
PENAIS INICIADAS. ORDEM DENEGADA. Segundo precedentes do Supremo Tribunal
Federal, nada impede a deflagração da persecução penal pela chamada “denúncia
anônima”, desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar
os fatos nela noticiados (86.082, rel. min. Ellen Gracie, DJe de 22.08.2008;
90.178, rel. min. Cezar Peluso, DJe de 26.03.2010; e HC 95.244, rel. min. Dias
Toffoli, DJe de 30.04.2010). No caso, tanto as interceptações telefônicas,
quanto as ações penais que se pretende trancar decorreram não da alegada
“notícia anônima”, mas de investigações levadas a efeito pela autoridade
policial. A alegação de que o deferimento da interceptação telefônica teria
violado o disposto no art. 2º, I e II, da Lei 9.296/1996 não se sustenta, uma
vez que a decisão da magistrada de primeiro grau refere-se à existência de
indícios razoáveis de autoria e à imprescindibilidade do monitoramento
telefônico. Ordem denegada. (STF, HC 99.490/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Joaquim
Barbosa, j. 23/11/2010, p. DJe 01/02/2011).
O STJ, como não poderia deixar de ser, tem seguido idêntico entendimento ao esposado pela Corte Suprema brasileira. Colaciono (grifo meu):
HABEAS CORPUS. E-MAIL ANÔNIMO IMPUTANDO A PRÁTICA DE CRIMES. ÓRGÃO MINISTERIAL QUE
REALIZA DILIGÊNCIAS PRÉVIAS PARA
A APURAÇÃO DA VERACIDADE DAS INFORMAÇÕES. COLHEITA
DE INDÍCIOS QUE PERMITEM
INSTAURAÇÃO DE PERSECUÇÃO PENAL.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.
1. Esta Corte
Superior de Justiça, com supedâneo em entendimento adotado por maioria
pelo Plenário do
Pretório Excelso nos autos do Inquérito n. 1957/PR, tem entendido que a
notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é
idônea para a
instauração de inquérito
policial ou deflagração da ação
penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigatórios preliminares
em busca de indícios que corroborem as informações da
fonte anônima, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal.
2. Infere-se dos autos que o membro do Parquet que recebeu a denúncia anônima, tendo em
vista a gravidade dos fatos nela contidos,
teve a necessária
cautela de efetuar
diligências preliminares,
consistentes na averiguação
da veracidade das informações, oficiando
aos órgãos competentes
com a finalidade de confirmar os
dados fornecidos no e-mail enviado à
Ouvidoria, razão pela
qual não se
constata nenhuma ilegalidade
sanável pela via do habeas corpus.
INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA.
ALEGAÇÃO DE NÃO EXAURIMENTO DE
OUTROS MEIOS DE
PROVA DISPONÍVEIS. VIOLAÇÃO AO INCISO II DO ARTIGO 2º DA LEI 9.296/1996
NÃO CONFIGURADA. INTERCEPTAÇÃO AUTORIZADA APÓS
A REALIZAÇÃO DE
DIVERSAS DILIGÊNCIAS COM O OBJETIVO DE APURAR A EVENTUAL PRÁTICA DE
ILÍCITOS NOTICIADA. DENEGAÇÃO
DA ORDEM.
1. A interceptação
das comunicações telefônicas dos envolvidos não
decorreu da denúncia
anônima feita à Ouvidoria
Geral do Ministério
Público, sendo pleiteada
pelo Parquet e autorizada judicialmente
apenas depois do aprofundamento das
investigações iniciais, quando
foram constatados indícios suficientes da prática de ilícitos penais por
parte dos envolvidos,
tendo o magistrado
responsável pelo feito destacado
a indispensabilidade da medida, não havendo que
se falar, portanto,
em violação ao
princípio da proporcionalidade,
tampouco ao artigo
2º, inciso II,
da Lei 9.296/1996.
3. Ordem denegada. (STJ, HC 104.005/RJ, 5ª Turma, Rel.
Min. Jorge Mussi, j. 08/11/2011, p. DJe 05/12/2011.)
A mais recente decisão do STJ, nesse sentido, foi dada no deferimento da ordem de ofício no HC 204.778/SP (Rel. Min. Og Fernandes, j. 04/10/2012, acórdão ainda não publicado). Nesse precedente, a Sexta Turma daquele tribunal superior consignou que a denúncia anônima pode ser usada para desencadear procedimentos preliminares de investigação, mas não pode servir, por si só, como fundamento para autorização de interceptação telefônica. Para o STJ, consoante foi firmado no julgamento desse habeas corpus, há nulidade absoluta nas provas colhidas em decorrência de interceptações telefônicas oriundas exclusivamente de denúncia anônima, uma vez evidenciado que a autoridade policial não diligenciou no sentido de estabelecer providências anteriores menos invasivas que aquela consubstanciada na quebra do sigilo das comunicações telefônicas.
Conclusão
Em se tratando de denúncia anônima (rectius: notitia criminis inqualificada), tanto STJ quanto STF entendem-na válida tão somente para o fim de autorizar investigações preliminares que possam vir a corroborar a veracidade material das informações decorrentes da fonte protegida pela anonímia e, ao fim e ao cabo, dar início a um inquérito policial. A denúncia anônima não é, por si só, suficiente para embasar a instauração de procedimento inquisitorial de investigação, tampouco para efeito de autorizar interceptações telefônicas sem que haja qualquer dado empírico a atestar, à luz de um raciocínio lógico, a impossibilidade de providência alternativa à quebra do sigilo das comunicações telefônicas, ainda que em sede de investigação preliminar.
REFERÊNCIAS
AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012. 1317 f.
LOPES JR.,
Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. 5ª ed. rev. e atual. até janeiro de 2010. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010. 729 f.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processual penal. 13ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 949 f.
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