Min. Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.206.656/GO no STJ |
Este artigo é dedicado à acadêmica de Direito Tayssa Tavares Vasconcelos,
que me escreveu, a sugerir a abordagem de tema no blogue
relativo à inclusão de patronímico no Direito Civil.
que me escreveu, a sugerir a abordagem de tema no blogue
relativo à inclusão de patronímico no Direito Civil.
Quando duas pessoas decidem celebrar um casamento, tem-se a consolidação do propósito de constituição de uma entidade familiar de notória importância para a vida em sociedade. Tão grande é essa importância que o Poder Constituinte Originário fez questão de discipliná-lo no art. 226 da Constituição de 1988, a destacar, por exemplo, sua natureza civil e a gratuidade de sua celebração.
No entanto, é no Código Civil que se encontra
a regulamentação exaustiva desse negócio jurídico solene e complexo. Nesse
sentido é que o art. 1.511 do CC anuncia que “O casamento estabelece a comunhão
plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.
A ideia de comunhão de vida, referida no
texto legal, reforça que a união formal decorrente do casamento baseia-se em um
vínculo de afeto. É desse afeto que une o casal que advém o objetivo de
constituição de uma família. Por esse motivo, “é defeso a qualquer pessoa, de
direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela
família” (CC, art. 1.513).
Como o próprio texto constitucional indica,
dada a relevância do casamento para a vida civil, importa ao Estado não só o
reconhecer como também o regulamentar. Tal necessidade de regulamentação estatal
advém dos muitos efeitos que a convolação de núpcias acarreta na órbita
jurídico-civilística, sejam eles de ordem social
(constituição de uma entidade familiar, p. ex.), pessoal (comunhão de vida com base igualdade de direitos e deveres
entre os cônjuges) ou patrimonial
(regime de bens).
Entre os efeitos pessoais decorrentes do
casamento, destaca-se a possibilidade de acréscimo do sobrenome do cônjuge, tal
como previsto no art. 1.565, § 1º, do CC. In
verbis:
Art.
1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de
consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
§
1º Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do
outro.
omissis
O fundamento legal que orienta a norma acima
é a modificação que o casamento implica no estado civil de cada pessoa. Assim
sendo, o legislador autoriza a inclusão do sobrenome do cônjuge, de tal arte a
reforçar a perpetuidade do vínculo conjugal estabelecido. Nos termos da lei, esse elo civil é tão forte que é capaz até
mesmo de alterar o nome da pessoa, que é o direito da personalidade que permite
sua identificação em sociedade.
A proposta de comunhão plena de vida pelo
casamento também se revela na inexistência de baliza legal para a troca de
sobrenomes. Logo, em não havendo limitação expressa, nada impede que qualquer
dos cônjuges troque seu sobrenome pelo do outro, ou mesmo que um deles suprima
patronímico, acrescentando em seu lugar sobrenome do seu consorte.
O problema é que o regramento legal aplicável
à mudança de sobrenomes pelo casamento não se estende, em princípio, à união
estável. Ao menos é o que se extrai do teor do art. 57, § 2º, da Lei 6.015/73
(Lei de Registros Públicos - LRP):
§ 1º omissis
§ 2º A mulher solteira, desquitada ou viúva, que viva com homem solteiro,
desquitado ou viúvo, excepcionalmente e havendo motivo ponderável, poderá
requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o
patronímico de seu companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, de família,
desde que haja impedimento legal para o casamento, decorrente do estado civil
de qualquer das partes ou de ambas.
[...]
À luz do texto supracitado, fica evidente que
a inclusão do sobrenome do companheiro não se submete aos mesmos requisitos
inscritos no art. 1.565, § 1º, do CC. Pelo contrário. Nos termos do texto de
lei, somente se admite a possibilidade de alteração de patronímico naqueles
casos em que haja impedimento legal para a celebração do casamento. Por outras
palavras, se os companheiros puderem casar, não poderão requerer esse efeito
pessoal no regime de união estável.
Essa restrição não se justifica. O § 2º do
art. 57 da LRP, com redação dada pela Lei 6.216/75, foi notadamente concebido
sob inspiração de uma carta constitucional não democrática. É evidente assim
que não se harmoniza com a Constituição de 1988, que elevou a união estável à
condição de entidade familiar, equiparando-a, em muitos casos, ao próprio
casamento. Nesse prisma é que prescreve o art. 226, § 3º, do texto
constitucional vigente:
§ 3º -
Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem
e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento.
[...]
É preciso observar ainda que, no plano de uma
interpretação histórica, a norma do § 2º do art. 57 da LRP reporta-se a um
momento da história do Direito Civil brasileiro no qual era reconhecida a
indissolubilidade do casamento. Como é sabido, a Lei do Divórcio (Lei 6.515) só
surgiria dois anos depois (ela data de 26 de dezembro de 1977). Portanto, o
impedimento legal aludido reportava-se sobremodo às relações concubinárias, que
não permitiam, a toda evidência, a convolação válida das núpcias. Para agravar
o quadro discriminatório, o texto legal da LRP facultava a inclusão do
patronímico tão somente à mulher, não se cogitando da possibilidade de o
companheiro proceder de maneira idêntica.
Valendo-se dessa exegese constitucionalizada
e histórica, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no
julgamento do REsp 1.206.656, reformou decisão que, com base no óbice legal
inscrito no art. 57, § 2º, da LRP, não permitira que companheiros procedessem à
alteração de certidão de nascimento, porquanto não houvessem comprovado a
ausência de impedimento legal.
No caso concreto, uma mulher mantinha união
estável há mais de 30 anos com um homem. Diante disso, ajuizou ação para a
mudança do seu registro civil, a solicitar ao juízo a inclusão do sobrenome do
seu companheiro. Todavia, o TJGO manteve a sentença do juízo de primeiro grau,
que havia entendido pela inadmissibilidade da alteração no regime de união
estável senão quando houve comprovado impedimento legal para a celebração do
casamento. Como o casal não tinha feito prova do impedimento, o juízo goiano
aplicara integralmente o texto vetusto da LRP.
Foi precisamente esse posicionamento do TJGO,
de indiscutível índole conservadora e positivista, que veio a ser reformado
pelo STJ. Eis o acórdão (grifos meus):
CIVIL.
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL. ALTERAÇÃO DO ASSENTO
REGISTRAL DE NASCIMENTO. INCLUSÃO DO
PATRONÍMICO DO COMPANHEIRO. POSSIBILIDADE.
I. Pedido
de alteração do registro de nascimento para a adoção, pela companheira, do
sobrenome de companheiro, com quem mantém união estável há mais de 30 anos.
II. A
redação do o art. 57, § 2º, da Lei 6.015/73 outorgava, nas situações de
concubinato, tão somente à mulher, a possibilidade de averbação do patronímico
do companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, desde que houvesse
impedimento legal para o casamento, situação explicada pela indissolubilidade
do casamento, então vigente.
III. A imprestabilidade desse dispositivo
legal para balizar os pedidos de adoção de sobrenome dentro de uma união
estável, situação completamente distinta daquela para qual foi destinada a
referida norma, reclama a aplicação analógica das disposições específicas do Código
Civil relativas à adoção de sobrenome dentro do casamento, porquanto se mostra
claro o elemento de identidade entre os institutos e a parelha ratio legis relativa à união estável,
com aquela que orientou o legislador na fixação, dentro do casamento, da possibilidade
de acréscimo do sobrenome de um dos cônjuges, pelo outro.
IV. Assim, possível o pleito de adoção do sobrenome
dentro de uma união estável, em aplicação analógica do art. 1.565, § 1º, do
CC-02, devendo-se, contudo, em atenção às peculiaridades dessa relação familiar,
ser feita sua prova documental, por instrumento público, com anuência do companheiro
cujo nome será adotado.
V.
Recurso especial provido.
(STJ,
T3 – Terceira Turma, REsp 1.206.656/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16/10/2012,
p. DJe 11/12/2012).
Pela leitura do acórdão, é possível perceber
que o STJ aplicou analogicamente o § 1º do art. 1.565 do CC. Afastou, assim, o
texto legal do art. 57, § 2º, que entendeu “imprestável” para balizar o pedido
manejado originalmente pela recorrente na ação de alteração de registro civil
de nascimento, a saber, a inclusão do sobrenome do companheiro.
Posteriormente, já em outubro de 2013, a
Terceira Turma do Tribunal tornou a reiterar o posicionamento favorável à
superação do óbice legal previsto na LRP. Colaciono (grifos meus):
ALTERAÇÃO
DE REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. INCLUSÃO. PATRONÍMICO.
COMPANHEIRO. IMPEDIMENTO PARA CASAMENTO. AUSENTE. CAUSA SUSPENSIVA. APLICAÇÃO
ANÁLOGICA DAS DISPOSIÇÕES RELATIVAS AO CASAMENTO. ANUÊNCIA EXPRESSA.
COMPROVAÇÃO POR DOCUMENTO PÚBLICO. AUSENTE. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGOS
ANALISADOS: ARTS. 57 DA LEI 6.015/73; 1.523, III; E PARÁGRAFO ÚNICO; E 1.565, §
1º, DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação de alteração de registro civil, ajuizada em
24.09.2008. Recurso especial concluso ao Gabinete em 12.03.2012. 2. Discussão relativa
à necessidade de prévia declaração judicial da existência de união estável para
que a mulher possa requerer o acréscimo do patronímico do seu companheiro. 3.
Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o tribunal de origem pronuncia-se de
forma clara e precisa sobre a questão posta nos autos. 4. Não há impedimento
matrimonial na hipótese, mas apenas causa suspensiva para o casamento, nos
temos do art. 1.523, III, do Código Civil. 5. Além de não configurar
impedimento para o casamento, a existência de pendência relativa à partilha de
bens de casamento anterior também não impede a caracterização da união estável,
nos termos do art. 1.723, § 2º, do Código Civil. 6. O art. 57, § 2º, da Lei 6.015/73 não se presta para balizar os
pedidos de adoção de sobrenome dentro de uma união estável, situação
completamente distinta daquela para qual foi destinada a referida norma. Devem
ter aplicação analógica as disposições específicas do Código Civil, relativas à
adoção de sobrenome dentro do casamento, porquanto se mostra claro o elemento
de identidade entre os institutos. 7. Em atenção às peculiaridades da união
estável, a única ressalva é que seja feita prova documental da relação, por
instrumento público, e nela haja anuência do companheiro que terá o nome
adotado, cautelas dispensáveis dentro do casamento, pelas formalidades legais
que envolvem esse tipo de relacionamento, mas que não inviabilizam a aplicação
analógica das disposições constantes no Código Civil, à espécie. 8. Primazia da
segurança jurídica que deve permear os registros públicos, exigindo-se um
mínimo de certeza da existência da união estável, por intermédio de uma
documentação de caráter público, que poderá ser judicial ou extrajudicial, além
da anuência do companheiro quanto à adoção do seu patronímico. 9. Recurso
especial desprovido.
(STJ,
T3 – Terceira Turma, REsp 1.306.196/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22/10/2013,
p. DJe 28/10/2013).
As únicas ressalvas feitas pelo Tribunal
Superior, no intuito de legitimar a alteração do sobrenome na união estável,
dizem respeito ao reconhecimento formal da relação: impõe-se que os
companheiros façam prova documental da entidade familiar, por instrumento
público, anotando-se ainda a anuência daquele cujo patronímico será
adotado no registro de nascimento. Nenhuma dessas ressalvas, como se nota,
refere-se à comprovação de existência de impedimento para o casamento, tal como
preconizado na Lei de Registros Públicos (art. 57, § 2º).
Esses acórdãos do STJ são exemplares, na
medida em que revelam a disposição do Tribunal em proceder a uma interpretação
constitucionalizada do Direito Civil brasileiro. Ao fazê-lo, evidencia-se a
injustiça da restrição prevista na LRP, que em nada coaduna com uma ordem
constitucional democrática, claramente voltada à proteção da união
estável, reconhecida qual entidade familiar tanto quanto o casamento.
Nessa medida, qualquer outra interpretação, que não aquela favorável à aplicação analógica do dispositivo do Código Civil que regula a possibilidade de acréscimo de sobrenome pelos cônjuges (art. 1.565, § 1º), em situação fática idêntica àquela ocorrente no regime da união estável, seria inaceitável (e inconstitucional) discriminação dos companheiros que experienciam a comunhão de vida e de afeto em relação familiar diversa do tradicional e solene vínculo casamentário.
Nessa medida, qualquer outra interpretação, que não aquela favorável à aplicação analógica do dispositivo do Código Civil que regula a possibilidade de acréscimo de sobrenome pelos cônjuges (art. 1.565, § 1º), em situação fática idêntica àquela ocorrente no regime da união estável, seria inaceitável (e inconstitucional) discriminação dos companheiros que experienciam a comunhão de vida e de afeto em relação familiar diversa do tradicional e solene vínculo casamentário.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro
de 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br.
Acesso em: 27 de set. 2014.
BRASIL. Constituição da República Federativa
do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 27 de set. 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira
Turma, REsp 1.206.656/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16/10/2012, p. DJe 11/12/2012.
Disponível em: www.stj.jus.br.
Acesso em: 27 de set. 2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 –
Terceira Turma, REsp 1.306.196/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22/10/2013, p.
DJe 28/10/2013. Disponível em: www.stj.jus.br.
Acesso em: 27 de set. 2014.
Houve apenas um equívoco em relação ao artigo da CF/88, que é o art. 226 e não o 206. No mais, parabenizo o autor.
ResponderExcluirObrigado pela observação atenciosa, Dionata. Já efetuei a correção do dispositivo no texto. Muito obrigado e sê sempre bem-vindo aqui ao blogue do GERT. Abraços!
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