Min. Ricardo Lewandoski, relator do RE 627.709/DF no STF. |
Na tradicional distribuição de competências
operada pelo Código de Processo Civil, alguns critérios orientam a atividade do
legislador. Segundo os processualistas, tais critérios reportam-se ora a elementos objetivos da demanda deduzida
em juízo (em razão da matéria, em razão da pessoa ou do valor da causa em
algumas hipóteses, como nos Juizados Especiais), ora a elementos funcionais (graus de jurisdição, fases do procedimento,
objetivos do juízo etc), ora a elementos territoriais.
No caso da competência territorial, o critério determinante para a
distribuição do poder jurisdicional relaciona-se com aspectos eminentemente
geográficos. Importa, sobretudo, o lugar para a fixação do juízo onde se
desenvolverá a atividade judicante. Assim, é nesse lugar (nesse território) que
se admite o processamento da causa.
Apesar disso, a distribuição da atividade
jurisdicional em razão do lugar não é absoluta. Diferentemente de outros
critérios competenciais, como o funcional ou o firmado em razão da matéria, o
CPC previu que, de ordinário, a competência territorial admite modificação, nos
termos do estatuído no art. 102 do diploma codificado:
Art. 102. A competência, em razão do valor e do
território, poderá modificar-se pela conexão ou continência, observado o
disposto nos artigos seguintes.
Como a competência territorial pode ser
modificada, diz-se em doutrina que se trata de hipótese de competência relativa, a
autorizar sua derrogação pela vontade das partes. Isto é, a sua inobservância pela
parte autora gera tão somente nulidade
relativa, a acarretar a obrigação de o réu argui-la mediante o oferecimento
de exceção no prazo de 15 dias, contado do fato que ocasionou a incompetência
(CPC, art. 112 c/c arts. 304 e 305). Caso o réu não argua a incompetência
relativa no prazo da resposta, dar-se-á a preclusão do seu direito. Nessa
hipótese, prorroga-se (amplia-se) a competência do juízo que, não obstante não
fosse originariamente competente para o conhecimento da causa e consequente
julgamento da lide, agora passa a sê-lo pela modificação da regra competencial-territorial
não arguida pelo réu legitimado a fazê-lo.
Ainda nesse plano, é de rigor anotar que o
Código de Processo Civil cuidou de estipular algumas regras de determinação da
competência baseadas no lugar em que a causa deve ser processada. Elas estão elencadas,
em linhas gerais, nos arts. 94 e 95 do CPC, que adotam a regra geral,
respectivamente, do foro do domicílio do
réu nas demandas que envolvam direitos pessoais e direitos reais
mobiliários e do foro da situação da
coisa nas demandas reais imobiliárias. In
verbis:
Art. 94. A ação fundada em direito pessoal e a ação
fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do
domicílio do réu.
§ 1º Tendo mais de um domicílio, o réu será
demandado no foro de qualquer deles.
§ 2º Sendo incerto ou desconhecido o domicílio
do réu, ele será demandado onde for encontrado ou no foro do domicílio do
autor.
§ 3º Quando o réu não tiver domicílio nem
residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor. Se
este também residir fora do Brasil, a ação será proposta em qualquer foro.
§ 4º Havendo dois ou mais réus, com diferentes
domicílios, serão demandados no foro de qualquer deles, à escolha do autor.
Art. 95. Nas ações fundadas em direito real sobre
imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto,
optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre
direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de
terras e nunciação de obra nova.
É evidente que a previsão de regras gerais
determinantes da distribuição da competência territorial nos arts. 94 e 95 do
CPC não exclui a possibilidade de outros diplomas legais estabelecerem regramentos
próprios de fixação da atividade jurisdicional em razão do lugar. É o que
sucede, por exemplo, com o Código de Defesa do Consumidor, que no seu art. 101,
I, especifica o seguinte:
Art. 101. Na ação de
responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do
disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes
normas:
I - a
ação pode ser proposta no domicílio do autor;
A expressão “pode” quer demonstrar que, de
ordinário, a ação intentada com fundamento nas relações jurídico-processuais
consumeristas admite sua propositura no domicílio do autor. Contudo, não se
trata de regra de competência absoluta, senão de mera faculdade que visa a
beneficiar a parte mais fraca da relação de consumo, isto é, o consumidor
demandante. Logo, a regra geral inscrita no caput
do art. 94 do CPC, a sinalizar a competência territorial no domicílio do réu
(demandado), pode vir a ser validamente observada.
Mas não é só o legislador subalterno que se propõe
a discriminar a competência dos órgãos jurisdicionais com fundamento no território.
Essas regras algumas vezes também são estipuladas no próprio texto constitucional.
Nesse sentido é que devemos interpretar os parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 109
da Constituição. Vejamo-los:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e
julgar:
(omissis)
§ 1º - As causas em que a União for autora serão
aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte.
§ 2º - As causas intentadas
contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado
o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou
onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal.
§ 3º - Serão processadas e
julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou
beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e
segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se
verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também
processadas e julgadas pela justiça estadual.
(...)
A leitura desses parágrafos revela que o
legislador constituinte criou regras de competência territorial da Justiça
Federal no bojo da própria Constituição. Dessa maneira, assumiu a incumbência
de delimitar a competência geográfica do órgão judicante, em detrimento às
regras inscritas nos diplomas hierarquicamente inferiores.
No caso da regra estabelecida no § 2º do art.
109, por exemplo, a intenção do legislador constituinte foi a mais nobre
possível: facilitar o acesso do jurisdicionado à Justiça Federal. Eis o motivo
pelo qual as causas intentadas contra a União poderão ser aforadas (1) na seção
judiciária em que for domiciliado o autor; (2) no foro onde houver ocorrido o
ato ou fato que deu origem à demanda; (3) no foro onde esteja situada a coisa;
ou (4) no Distrito Federal. Em qualquer desses lugares em que a demanda for proposta
contra a União o juízo federal será plenamente competente para o processamento
da causa. Não faz sentido, assim, objetar como matéria de defesa a
incompetência relativa do órgão jurisdicional.
Malgrado esse raciocínio, em 2010, o Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (CADE) interpôs o RE 627.709/DF, para alegar,
perante o STF, ofensa à Constituição Federal no acórdão lavrado pelo Tribunal
Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que havia reconhecido a competência da Subseção
Judiciária de Passo Fundo (RS) para processar e julgar demanda proposta por uma
empresa de vigilância contra a autarquia. Consoante argumentou o presentante
jurídico do CADE, a interpretação a ser dada ao § 2º do art. 109 da
Constituição deveria ser restringida, não se aplicando às autarquias e fundações
públicas de direito público (autarquias fundacionais). Para o recorrente, o parágrafo
em comento alude tão-só à União, não aludindo aos entes da Administração
Pública Indireta. Logo, a empresa de vigilância não poderia ajuizar ação contra
o CADE perante a Subseção Judiciária de Passo Fundo, mas sim perante o foro do
Distrito Federal, onde a autarquia tem sede, tal como proclama o Código de
Processo Civil (CPC, art. 100, IV, a).
Em março de 2011, o Plenário Virtual do STF
reconheceu a repercussão geral da matéria, a qual veio a ser julgada na sessão
plenária do dia 20 de agosto de 2014.
Ao analisar o recurso, a maioria dos
ministros concordou em seguir o voto do relator, Min. Ricardo Lewandowski, que
defendeu interpretação do dispositivo em sentido oposto ao defendido pelo CADE.
Segundo a tese prevalecente, as possibilidades de escolha de foro, previstas no art. 109, § 2º, da CF/88, têm o nítido propósito de
beneficiar o polo da demanda que litiga contra a União. Sendo assim, tal norma
aplica-se às autarquias e fundações.
Nota-se que a Corte Suprema brasileira, ao
julgar o RE 627.709/DF, deparou com tese recursal extraída de regras de
competência territorial estabelecidas no próprio texto da Constituição. A
intenção do recorrente era evitar que demandas pudessem ser ajuizadas fora da
sua sede, isto é, no Distrito Federal. Caso prevalecesse tal entendimento, na
prática, o jurisdicionado, sempre que pretendesse litigar contra entes da
Administração Pública Indireta da União (autarquias e fundações), ver-se-ia
tolhido das múltiplas possibilidades de escolha de foro e, portanto, teria
dificultado inapelavelmente o seu acesso à prestação jurisdicional federal.
É claro que essa interpretação de caráter
restritivo não foi a pretendida pelo Poder Constituinte Originário. Ao criar
regras de competência territorial no bojo da Constituição, fê-lo com o intuito
de afastar as regras processuais subalternas. Imbuído de indiscutível finalidade
democrática, o legislador constituinte quis simplificar o acesso ao Poder
Judiciário, e não o contrário. Além disso, o não cabimento da tese esposada
pelo CADE também se verifica pela interpretação literal da redação normatizada,
pois, se o legislador houvesse pretendido excluir as autarquias e fundações da
faculdade de escolha do foro federal inscrita no § 2º do art. 109, tê-lo-ia
feito expressamente.
São esses os motivos conducentes da tese que afinal
veio a negar provimento ao RE 627.709/DF. Abraçada pela maioria dos ministros, a
interpretação de que o § 2º do art. 109 da Constituição de 1988 aplica-se às
autarquias e fundações (autarquias
fundacionais) vai ao encontro do direito fundamental de pleno acesso à
jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), que conforma o caráter democrático do texto
constitucional vigente.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869,
de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: www.planalto.gov.br.
Acesso em: 26 de set. 2014.
BRASIL. Constituição da República Federativa
do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 de set. 2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira
Turma, RE 627.709/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandoski, j. 20/08/2014, p. (aguardando
publicação no DJe). Disponível em: www.stf.jus.br.
Acesso em: 26 de set. 2014.
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