Min. Humberto Martins, relator do REsp 1.069.603/RO |
Ouvindo atualmente: "Sylvius Leopold Weiss - Le Manuscrit de Londres/
The London Manuscript" (1994), de Michel Cardin.
Weiss foi um dos maiores e mais prolíficos alaudistas de toda a era barroca.
Portanto, sua obra é de estudo e ouvida obrigatórios para todo estudante de música
desejoso de especializar-se em música erudita barroca.
Um aspecto bastante interessante da
interpretação da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa - LIA) foi
recentemente enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça. Trata-se do nível de
abrangência de uma sanção específica aplicável ao comitente de ato ímprobo: a perda da função pública.
De início, cumpre sublinhar que a pena de “perda
da função pública” foi prevista no próprio texto da Constituição de 1988, cujo
§ 4º do seu art. 37 estabelece expressamente que “Os atos de improbidade
administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função
pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”
Em obediência ao comando constitucional, o
legislador subalterno editou a Lei 8.429/92 com a previsão dessa penalidade.
Fê-la constar como sanção cominável aos agentes que incorram na prática de
improbidade em quaisquer de suas modalidades (atos que importam enriquecimento
ilícito, atos que causam prejuízo ao erário, atos que atentam contra os
princípios da Administração Pública, previstos, respectivamente, nos arts. 9º,
10 e 11).
É nessa perspectiva que devemos examinar o art. 12 da LIA (grifos meus):
É nessa perspectiva que devemos examinar o art. 12 da LIA (grifos meus):
Art. 12. Independentemente das sanções penais,
civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável
pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser
aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do
fato:
I - na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores
acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando
houver, perda da função pública,
suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil
de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com
o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios,
direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual
seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;
II - na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano,
perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer
esta circunstância, perda da função
pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento
de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o
Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios,
direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual
seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;
III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano,
se houver, perda da função pública,
suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil
de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de
contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou
creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa
jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Parágrafo único. Na fixação das penas previstas nesta lei o
juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito
patrimonial obtido pelo agente.
O art. 12 do diploma legal, portanto,
estabelece as penas que hão de ser aplicadas em caso de prática comprovada de
ato de improbidade. E determina que, na dosimetria de fixação das penalidades,
cabe ao magistrado considerar a extensão do dano causado, bem assim o proveito
patrimonial obtido pelo agente ímprobo.
Mas não fica claro a abrangência de cada uma
das penas. E nem poderia ser diferente. A lei, que tem caráter genérico,
dir-se-ia geral e abstrato, não se pode desincumbir de minúcias, tarefa que
compete precipuamente ao Poder Judiciário no exame dos casos concretos.
Foi o que sucedeu quando do julgamento, pelo
STJ, do REsp 1.069.603/RO. Nesse precedente, a Segunda Turma do Tribunal
deparou-se com demanda por meio da qual um médico, residente no estado de
Rondônia, fora condenado pela prática de ato de improbidade consistente na
acumulação ilegal de cargos públicos. Constou nos autos que o profissional da
saúde havia acumulado o exercício simultâneo de três cargos de médico com
horários incompatíveis. Assim agindo, a conduta do agente implicou vulnerou o teor
do art. 37, XVI, c, da CF/88:
Art.
37 omissis
XVI
- é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver
compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso
XI:
c)
a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com
profissões regulamentadas;
Além disso, o médico condenado também desrespeitou
o art. 118 da Lei 8.112/90, que estabelece o regime jurídico da acumulação
lícita de cargos no serviço público federal:
Art. 118. Ressalvados os casos previstos na
Constituição, é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos.
§ 1º A proibição de acumular estende-se a cargos, empregos e
funções em autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de
economia mista da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Territórios e
dos Municípios.
§ 2º A acumulação de cargos, ainda que lícita, fica
condicionada à comprovação da compatibilidade de horários.
§ 3º Considera-se acumulação proibida a
percepção de vencimento de cargo ou emprego público efetivo com proventos da
inatividade, salvo quando os cargos de que decorram essas remunerações forem
acumuláveis na atividade.
O problema é que o Tribunal Regional Federal
da 1ª Região, ao julgar a apelação do condenado, exarou acórdão por meio do
qual reformou a sentença condenatória, de tal arte a afastar a pena de perda do
cargo público que o médico ocupava no Ministério do Exército. Ou seja, para o
TRF1, a expressão “perda da função pública” não abrangeria a perda do “cargo
público”.
Postos esses elementos, fica fácil entender
que a vexata quaestio do recurso
especial apropriava-se da seguinte dúvida: a sanção de perda da função pública,
tal como prevista na Lei de Improbidade Administrativa, fica limitada à
proibição do exercício da função desempenhada ou implica a perda correlata do cargo
público exercido pelo agente ímprobo?
Como se percebe, o TRF1 optou por uma
interpretação mais contida do dispositivo, entendendo que a perda era tão só da
função, não abrangendo a perda do cargo. Felizmente, não foi o posicionamento
encampado no Tribunal Superior.
Julgando o recurso especial interposto pelo Ministério
Público Federal, a Segunda Turma do STJ acabou por rever o decidido na
instância a quo. Eis a ementa do acórdão:
PROCESSO
CIVIL. ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 12 DA LEI N.
8.429/1992. PENA DE PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DOS SEUS
EFEITOS.
1.
Não se discute nos autos a caracterização de ato de improbidade em razão da
acumulação ilegal de cargos públicos.
2.
Recurso especial no qual se discute se a sanção de perda da função pública se
limita à proibição do exercício da função até então desempenhada pelo agente ímprobo,
ou acarreta a perda do direito de ocupar o cargo público por meio do qual a
desempenhava.
3.
O art. 12 da Lei n. 8.429/1992, quanto à sanção de perda da função pública,
refere-se à extinção do vínculo jurídico entre o agente ímprobo e a
Administração Pública, de tal sorte que, se o caso de improbidade se referir a servidor
público, ele perderá o direito de ocupar o cargo público, o qual lhe
proporcionava desempenhar a função pública correlata, que não mais poderá exercer.
Recurso
especial provido para cassar o acórdão recorrido e restabelecer a sentença. (STJ,
Segunda Turma, REsp 1.069.603/RO, Rel. Min. Humberto Martins, j. 11/11/2014, p.
DJe 21/11/2014).
O aresto acima deixa claro que a pena de
perda da função pública, inscrita no art. 12 da LIA, não está limitada à uma
visão restritiva. Antes o contrário, deve ser entendida em sentido amplo, de
maneira que sua extensão punitiva abrange igualmente a perda do direito de
ocupar o cargo público.
Ora, esse é uma conclusão acertada. Não se
pode descurar que a menção no texto constitucional à punição de atos de
improbidade vai ao encontro do sentimento constitucional que defende a punição
de todos aqueles que malferem o interesse público (tomado na sua acepção de
interesse da coletividade). Seria, para dizer o mínimo, ineficaz a punição, se
prevalecesse o posicionamento conservador do TRF1. Tal geraria o absurdo de um agente comprovadamente
ímprobo ficar proibido de desempenhar sua função por um prazo estipulado, ao
final do qual poderia retornar ao exercício do cargo público do qual se utilizou
para violar a lei. Caso vingasse essa interpretação, no caso concreto, teríamos
de aceitar que o médico que enriqueceu ilicitamente às custas do erário pudesse
voltar ao seu cargo no Ministério do Exército.
Portanto, nos marcos do que ficou decidido pelo
STJ, a sanção de perda da função pública, prevista no art. 12 da Lei 8.429/92,
deve ser compreendida como uma ordem constitucional para a extinção do vínculo jurídico
porventura existente entre o agente ímprobo e a Administração Pública. Assim, a
expressão “perda da função pública”, na verdade, deve ser lida na LIA como “perda
do direito de ocupar o cargo público”, sempre que o servidor público condenado for
ocupante de cargo de provimento efetivo do qual se valeu para a prática do ato
de improbidade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T2 - Segunda
Turma. Recurso Especial nº 1.069.603, Rel. Min. Humberto Martins, j.
11/11/2014, p. 21/11/2014. Recorrente: Ministério Público Federal. Recorrido: René
Humberto Ferrel Camacho. Disponível em: www.stj.jus.br.
Acesso em: 31 de jan. 2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa
do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 31 de jan. 2015.
BRASIL. Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
Disponível em: www.planalto.gov.br.
Acesso em: 31 de jan. 2015.
BRASIL. Lei 8.429, de 2 de junho de 1992.
Disponível em: www.planalto.gov.br.
Acesso em: 31 de jan. 2015.
E se a Improbidade for cometida em cargo diferente do ocupado atualmente pelo réu ! Um Prefeito que tenha cometido um ato de improbidade em Prefeitura de uma cidade diferente da Municipalidade onde ele exerce a função de Professor por exemplo. A penalidade atribuída a irregularidades na primeira função publica abrangeria o outro cargo ?
ResponderExcluirEdson, a pergunta é pertinente e facilmente abre posicionamentos distintos quanto à extensão da pena de perda da função pública. No caso concreto, caberia ao magistrado valorar como parâmetro da sanção a extensão do dano e o proveito obtido pelo agente. No entanto, já há orientação dos tribunais (com a qual concordo, ressalto) de ordem mais rigorosa, no sentido de que a Lei de Improbidade quer extirpar da atividade pública o agente que revela desvio de caráter incompatível com a atividade desenvolvida. Logo, a sanção de perda da função pública abrangeria qualquer atividade que o agente estivesse a desenvolver ao tempo da condenação irrecorrível.
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