SEÇÃO RESUMO RT: Controle
de Constitucionalidade - Parte I: Dos Conceitos Fundamentais
A
cada ano se vem notando uma revolução no direito constitucional do Brasil. São
aspetos desse processo a normatividade dos princípios, a busca da efetividade
das normas constitucionais, novas técnicas de interpretação constitucional. Há
também a vaga do neoconstitucionalismo - que vem sendo incensada da
processualística cível à dogmática constitucionalista contemporânea, variando as
nomenclaturas doutrinárias em pós-positivismo ou neopositivismo, conforme o
prisma adotado pelo doutrinador.
Nesse contexto de aumento da
relevância do papel da Constituição na centralidade do sistema é que o controle
de constitucionalidade ganha relevo. Assim ocorre, visto que a jurisdição
constitucional encontra no controle meio essencial para o desenrolar das ideias
que permeiam o constitucionalismo. O maior exemplo disso é a teoria dos
direitos fundamentais. Não há direito fundamental sem que seja assegurada a
supremacia do texto da Constituição. Da mesma maneira, é inviável pensar em concretude
da dignidade da pessoa humana ou princípio republicano/democrático de participação
popular no poder no cenário de um texto constitucional fragilizado.
A centralidade do sistema jurídico
é lugar ocupado pela Constituição de acordo com a unanimidade dos
constitucionalistas modernos, podendo ser tanto do ponto de vista formal (normas
de elaboração mais difícil) quanto material (axiológica). A Carta é um filtro
para leis infraconstitucionais, mas é também uma maneira de interpretar a vida,
haja vista determinar um conjunto de valores a serem seguidos por uma dada
sociedade.
A interpretação jurídica, nesse
sentido, é meio para o atingimento dos fins constitucionais. Daí se dizer em
doutrina que interpretar o direito é interpretar a Constituição. É que seu
texto deve ser sempre objeto de cogitação pelo intérprete, seja de maneira
direta (a pretensão, objeto da demanda, se funda em norma constitucional), seja
indireta (a pretensão se funda em ato normativo infraconstitucional). O
intérprete, assim, diante do caso concreto, deve:
1)
antes de aplicar a norma - verificar sua compatibilidade com o texto supremo,
sob pena de cassar sua incidência;
2)
no momento da aplicação - orientar sua exegese para o sentido e os fins
("telos") propugnados pelo projeto de constitucionalidade insculpido
no texto político supremo.
O
ordenamento jurídico como sistema e o controle de constitucionalidade
Temos
que considerar ainda que o ordenamento jurídico é um sistema que deve funcionar
de maneira harmoniosa. A desarmonia, consubstanciada na falta de unidade de
suas normas, exige correção. Esse mecanismo corretivo é dado, dentre outros, pela
técnica do controle de constitucionalidade. Com isso, o intérprete há de
verificar se há compatibilidade entre lei ou ato normativo infraconstitucional com
a Constituição. Se faltar a compatibilidade investigada, o intérprete há de
reconhecer a invalidade da norma contrastante, declarando-a, ato contínuo,
inconstitucional. É a declaração de inconstitucionalidade que subtrai a
dimensão de eficácia da norma, resguardando a unidade do sistema imposta pela
intangibilidade do texto (central) da Constituição.
A
partir disso, já percebemos que a concretização do direito envolve
necessariamente um juízo de constitucionalidade. É imperioso que o intérprete,
sempre que deparar com ato normativo não integrante do texto da Constituição, proceda
a esse ato mental de controle. Caso contrário, aplicar-se-ia uma norma incompatível
com a Constituição e, portanto, deixar-se-ia de aplicar a própria Constituição.
Isso, à evidência, não pode ocorrer, pois o ordenamento, diante do conflito
entre ato infraconstitucional e norma constitucional deve pender sempre em
favor da prevalência da segunda, a fim de assegurar sua supremacia formal.
Pressupostos
do controle de constitucionalidade
Segundo
a doutrina, o controle de constitucionalidade visa a assegurar que o texto da
Constituição seja supremo e rígido. Logo, são pressupostos que fundamentam a
técnica do controle a supremacia e a rigidez constitucionais. Ou, por outras
palavras, não pode haver controle de constitucionalidade que tenha como
parâmetro texto constitucional não supremo e não rígido (flexível).
Diz-se
supremo o texto da Constituição, em razão de este ocupar uma posição
hierarquicamente superior na estrutura escalonada do ordenamento jurídico. É,
com efeito, o referido texto o fundamento de validade de todas as demais normas
jurídicas. Daí por que todo e qualquer ato jurídico que esteja em
desconformidade com a Constituição é inválido e atrai a operação mental do
controle que visa a expurgá-lo do ordenamento jurídico. Só assim resta
assegurado o pressuposto da supremacia. O controle de constitucionalidade
existe, desse modo, para assegurar a supremacia formal da Constituição.
Diz-se
rígido o texto constitucional cujas normas que o integram tenham processo de
elaboração dificultado. Pela rigidez constitucional há um processo legislativo
qualificado de normogênese (criação da norma constitucional), o que autoriza a
que o texto da Constituição seja usado como parâmetro (paradigma de validade) para
o controle das demais normas cujo processo normogenético não seja tão complexo –
isto é, as normas infraconstitucionais. Se se admitisse, por exemplo, que uma
lei ordinária tivesse idêntico status
ao de uma norma constitucional, em havendo contraste entre uma e outra, a
resolução do conflito não demandaria controle de constitucionalidade (juízo de
verificação de compatibilidade hierárquica entre normas superiores e normas
inferiores); bastaria ao intérprete adotar o critério lex posterior derogat legi priori, isto é, a norma posterior
revogaria a norma anterior (o Decreto-Lei 4.657/42 adota esse critério no seu
art. 2º, § 1º, mas isso só serve para conflitos de normas de mesma hierarquia).
É preciso, portanto, que haja distinção formal (diferentes graus hierárquicos)
entre as espécies normativas. A norma que serve de parâmetro para o controle (a
norma constitucional) deve ser hierarquicamente superior à norma que serve de
objeto para o controle (em regra, norma infraconstitucional, embora seja possível alegar inconstitucionalidade de norma constitucional inserida no texto supremo pelo poder de emendabilidade). E essa posição diversa de
graus na hierarquia normativa decorre precisamente da rigidez constitucional
que impõe especial dificuldade procedimental ao processo legislativo de elaboração
das normas da Constituição.
Outros
pressupostos também cercam os fundamentos do controle de constitucionalidade. A
proteção contra maiorias parlamentares eventuais é um deles. Sua razão de ser é
impedir que conveniências políticas de momento possam vulnerar valores
pretendidos pela sociedade como um todo e, por conseguinte, inscritos no texto constitucional. É aí que surge o debate, ainda hoje deveras
polêmico na iusfilosofia, relativo à legitimidade democrática do controle de constitucionalidade.
Objeto
do controle e jurisdição constitucional
Em
regra, a técnica do controle de constitucionalidade é invocada para verificar a
compatibilidade de atos disciplinadores de condutas em caráter geral e abstrato,
isto é, atos materialmente normativos. Normalmente, esses atos (leis) são
produzidos pelo Poder Legislativo. Mas existem atos normativos que, embora não originados
no Parlamento, submetem-se igualmente ao controle de sua constitucionalidade.
Exemplo disso são as medidas provisórias e atos administrativos normativos (da
lavra do Poder Executivo) e os regimentos internos dos tribunais (da lavra do
Poder Judiciário). Poderíamos ainda cogitar de outros atos “controláveis”. Atos
materialmente administrativos (não normativos) e atos (decisões) judiciais também
estão sujeitos ao controle, haja vista que os primeiros podem ser declarados
inválidos pelos juízes e tribunais, enquanto os segundos podem ser impugnados
pela via do recurso, que traz, no rol das suas hipóteses de cabimento, a possibilidade
de alegar contrariedade da decisão às normas constitucionais. Disso se infere que o controle de constitucionalidade, ao fim e ao cabo, abrange ato de quaisquer dos três Poderes republicanos.
Vale
recordar que toda a operação mental consistente na técnica do controle de
constitucionalidade decorre do exercício da jurisdição constitucional. Mas a
jurisdição constitucional não se resume ao controle, não é sinônimo de
controle. Logo, é preciso diferençar, de um lado, o conceito de jurisdição constitucional e, de outro, o do controle de constitucionalidade.
A
jurisdição constitucional é o nome
dado à atividade de aplicação das normas da Constituição por juízes e
tribunais. Essa aplicação pode ser de duas ordens: (a) direta – caso em que o intérprete reconhece que a norma constitucional
disciplina diretamente o caso sub examine;
(b) indireta – caso em que a
Constituição serve ou de parâmetro de validade para o teste de constitucionalidade
de uma norma ou de referência hermenêutica, figurando como o “guia” do
intérprete na atividade de atribuir um sentido às normas infraconstitucionais.
Somente se pode falar em controle de
constitucionalidade quando estivermos diante da aplicação indireta da
Constituição, ou seja: quando a norma constitucional é paradigma de análise da
validade de normas hierarquicamente inferiores a ela.
É possível o controle de constitucionalidade das leis cujo sistema é flexível ou common law?
ResponderExcluirCaro Anônimo, devemos buscar a resposta a essa pergunta nos pressuspostos do controle. Além da supremacia da Constituição (texto supremo), a técnica do controle pressupõe a rigidez constitucional, isto é, o qualificativo que faz com que as constituições só se possam modificar mediante processo legislativo mais solene, mais complexo (exemplo da CF/88 é o quórum qualificada de aprovação e votação de ECs). Com isso, fica fácil entender que um sistema regido por uma Constituição flexível não poderia adotar a técnica do controle. Sim, pois, considerando que a flexibilidade de uma Constituição decorre da permissão a que suas normas sejam alteradas por processo idêntico ao das leis ordinárias, não haveria parâmetro de análise para que se pudesse controlar uma norma. Trocando em miúdos: as normas ordinárias que contravenham as normas da constituição flexível não se submetem a juízo de constitucionalidade (validade), pela simples razão de que já estariam automaticamente revogadas pela norma posterior com sentido conflitante (aplica-se a regra do "norma posterior revoga norma anterior com ela incompatível"). Em suma: não cabe controle de constitucionalidade de constituição flexível, pois o controle sempre pressupõe um "parâmetro", isto é, um ato normativo superior e de alterabilidade mais solene.
ExcluirPor fim, faço apenas um reparo. É preciso não confundir o sistema da "common law" com "constituição flexível". Pode haver "common law" sem constituição rígida (caso do Reino Unido, onde o Parlamento britânico é soberano, embora isso se tenha abrandado desde a aprovação do "Human Rights Act", quando essa declaração de Direitos Humanos passou a figurar como parâmetro de controle) como há "common law" com constituição rígida (caso da Constituição dos Estados Unidos de 1787).