Já faz algum tempo, durante
entrevista concedida a um canal da televisão aberta, um conhecido estadista
(José Serra) cometeu um equívoco quanto à denominação do Estado brasileiro.
Segundo Serra (sic), “O Brasil chama Estados Unidos do Brasil; os Estados
Unidos chama Estados Unidos da América”. O jornalista a quem incumbia a
condução da conversa (Bóris Casoy) interveio incontinenti e corrigiu-o,
alegando que o Brasil, na verdade, chamar-se-ia “República Federativa do
Brasil”. Visivelmente embaraçado com a ignorância que motivou o aparte do seu
interlocutor, Serra reagiu sobressaltado: “Mudou?”. “República Federativa”,
confirmou o jornalista com um meneio de cabeça constrangedor. O entrevistado,
então, numa tentativa de esconder a falta de humildade que não lhe permitiu
reconhecer o próprio erro, disfarçou: “República Federativa, que é parecido.
Federação, tá certo?” Numa palavra: a emenda saiu pior do que o soneto.
Penso, contudo, que o constrangimento
experimentado pelo candidato em rede nacional não serve apenas para
escarnecimentos. Há, em verdade, uma oportunidade singular para refletir sobre
a história do federalismo no Brasil. Pois, se muitos se puseram (não sem razão,
ressalto) a lamentar a erronia do estadista, outros tantos teriam dificuldade
em explicar a passagem do estádio de “Estados Unidos” para o de “República Federativa”
- expressão constante da Constituição de 1988, ora vigente - do ente estatal brasileiro.
Ou mesmo o porquê de ele se chamar desta ou daquela maneira. É nesse ponto que
convém intervir, não deixando que o achincalhe obscureça aquilo que há de útil
nesse episódio: o tema da organização do Estado sob o modelo federal.
Assim é que, resgatando as lições dos
historiadores, chegamos ao século XVIII. Naqueles idos, as monarquias absolutas
principiavam as crises que culminariam com o fim do Antigo Regime, isto é, a
concentração dos poderes estatais na figura do monarca – a personificação do
Estado. Na América do Norte, havia as chamadas Treze Colônias, então submetidas
à exploração da metrópole inglesa. A relação que a Inglaterra desenvolveu com a
colônia, no entanto, era peculiar: inexistia homogeneidade nas atividades de
exploração colonial, de modo que a economia das colônias abrangia desde o
sistema de plantation exportador do
Sul, mormente alicerçado na escravatura de negros, ao comércio desenvolvido no
Norte.
Essa diversidade de atividades
econômicas, com relativa autonomia perante a metrópole, associada a outros
fatores de ordem ideológica, a exemplo do ideário liberal-iluminista de
oposição à dominação colonial (John Locke e Thomas Paine tiveram influência
sobeja nesse sentido), suscitou a aspiração, por parte dos colonos
norte-americanos, de independência da Coroa Britânica. Esse inconformismo
embrionário agravou-se sobremaneira com as crises desencadeadas pela Lei do
Açúcar (1764), pela Lei do Selo (1765) e pela Lei do Chá (1773). Esta última,
por sinal, engendrou a revolta que ficou conhecida como Boston Tea Party (1773), por meio da qual os colonos de Boston, cidade
da colônia de Massachusetts, expressaram sua insatisfação contra as imposições
da metrópole inglesa. Em resposta, o Parlamento britânico editou, em 1774, uma
série de leis, ditas Leis Intoleráveis (The
Intolerable Acts ou The Coercive Acts),
que traziam duras represálias aos colonos. Exemplo disso foi o Boston Port Act, que decretou o fechamento do Porto de Boston, e o The Administration of Justice Act, que autorizava a
transferência de foro de julgamento de processos contra funcionários britânicos
para outra colônia, ou mesmo para a Grã-Bretanha, subtraindo-os, assim, da
jurisdição da colônia de Massachusetts (foi esse ato que, dada sua repercussão
jurídica, George Washington denominou de Murder
Act, isto é, autorização para o assassinato de americanos).
Em 4 de julho de 1776, no segundo
Congresso da Filadélfia (Second Continental Congress), os delegados das Treze
Colônias subscreveram a Declaração de Independência, cuja redação fora
capitaneada por Thomas Jefferson. Esse documento reconhecia a soberania dos antigos territórios coloniais dos ingleses na América, firmando que não mais pertenciam ao
Império Britânico.
A fim de assegurar a independência recém-declarada,
ainda em 1776, os colonos revolucionários assinaram um tratado chamado “Artigos
de Confederação” (Articles of
Confederation and Perpetual Union), de modo a estabelecer legalmente que as
Treze Colônias, agora treze Estados independentes, unir-se-iam em prol da
organização de um exército, elaboração de estratégias, celebração de acordos –
medidas assecuratórias da soberania autoproclamada pelos territórios coloniais.
Fundaram, dessa maneira, uma confederação. E da união desses Estados,
juridicamente pactuada por meio de um tratado de direito internacional,
surgiram os Estados Unidos da América.
Nesse contexto histórico, a
confederação significou uma aliança pontual entre os treze Estados
independentes, cada qual detentor de sua própria soberania, aqui entendida qual
a capacidade de autodeterminar-se, elaborando as próprias leis, com jurisdição
própria, sem submissão a nenhum outro poder externo [1]. Por isso de diz em
doutrina que os “Artigos de Confederação” foram um tratado de direito
internacional, haja vista reunir Estados politicamente independentes, com
personalidades de direito externo autônomas. Também por isso, aos Estados
signatários do tratado, era garantido o desligamento da confederação, mediante
denúncia do tratado – o chamado direito de secessão.
Não demorou a que a experiência
confederativa revelasse-se tormentosa. Sua fragilidade tornou-se perceptível
ante os conflitos de interesses entre as ex-colônias, naturalmente acirrados pela
inexistência de uma instância única capaz de regulá-los par e par do interesse
geral. Sob o regime da confederação, era muito difícil ao Congresso dos Estados
Unidos, por exemplo, o estabelecimento de sanções pelo não cumprimento dos
acordos congressuais, visto inexistir um tribunal supremo com jurisdição comum
sobre todos os Estados. Além disso, a legislação elaborada pelo Congresso
somente podia dispor quanto a deveres estatais, jamais dos cidadãos, submetidos
que estavam ao poder de império de Estados livres e independentes. Logo, estava
claro que a aliança confederativa dos Estados Unidos, explicitada pela convergência
conjuntural de propósitos quanto à defesa da soberania dos antigos territórios coloniais,
não seria suficiente para garantir ações coletivas organizadas nem sobrepujar a
colisão constante de interesses políticos e econômicos entre os entes confederados.
Assim, reunidos em 1787 na Convenção
da Filadélfia (Grand Convention at Philadelphia), sob o pretexto de revisar os
“Artigos de Confederação”, os representantes dos Estados logo se dividiram em
dois grupos: de um lado, os anti-federalistas, que queriam tão somente a
reforma do tratado internacional que os aliançava; de outro, os federalistas,
que propunham a formação de um governo novo, alicerçado sob o pálio de uma
novel forma de organização do Estado – o Estado federal. Foi essa segunda
corrente que veio a prevalecer na Convenção. Com isso, deu-se a proclamação da
Constituição dos Estados Unidos da América de 1787.
A
importância histórica da Constituição dos Estados Unidos da América consiste em
ter simbolizado a transição da forma de estado confederativa para a federativa.
A fórmula do Estado Federal, pioneira no constitucionalismo estadunidense, teve
o condão de reunir os treze Estados independentes derredor de um poder central
comum – a União. A esse ente político novo (União) caberia a regência e a
regulamentação dos assuntos que transcendessem as questões locais e dissessem
respeito aos Estados como um todo. Os Estados, por sua vez, participariam da
formação da vontade federal, galvanizada pela União, mediante o envio de
representantes ao Senado.
É
claro que a aceitação do modelo de Estado Federal não foi fácil. Mesmo nos
Estados Unidos a resistência ainda era grande, pois, ao fim e ao cabo, estava a
se retirar poder dos Estados independentes. Daí por que os estadistas Alexander
Hamilton, James Madison e John Jay publicaram “O Federalista” em 1788, uma
série de ensaios que tinham por escopo persuadir os Estados a ratificarem a
Constituição recém-proclamada, explicitando críticas ao modelo confederativo e
celebrando a importância da Constituição para a governabilidade estadunidense.
Em seus
artigos, os autores de “O Federalista” explicitam a teoria política a
fundamentar o texto constitucional. A filosofia política da época, em especial
a exposta por Montesquieu, era avocada pelos adversários da ratificação para
fundamentar o questionamento que faziam do texto constitucional proposto. Montesquieu,
membro de uma tradição que se inicia em Maquiavel e culmina em Rousseau,
apontava para a incompatibilidade entre governos populares e os tempos
modernos. A necessidade de manter grandes exércitos e a predominância das
preocupações com o bem-estar material faziam das grandes monarquias a forma de
governo mais adequada ao espírito dos tempos.
[...]
O desafio
teórico enfrentado por “O Federalista” era o de desmentir os dogmas arraigados
de uma longa tradição. Tratava-se de demonstrar que o espírito comercial da
época não impedia a constituição de governos populares [...] [WEFFORT (Org.), 2001, p. 247].
A
pretensão de convencer os Estados a ratificarem a Constituição fica muito
nítida na crítica de Hamilton (1818, p. 2), já no introito de “O Federalista”:
AFTER full experience of the insufficiency of the existing Federal
Government, you are invited to deliberate upon a new Constitution for the
United States of America.
The subject speaks its own importance; comprehending in its
consequences, nothing less than the existence of the UNION – the safety and
welfare of the parts of which it is composed – the fate of an empire, in many
respects the most interesting in the world. [2]
O
Estado Federal estadunidense surge, assim, com algumas características bem
peculiares. Segundo Dalmo Dallari (2007, p. 258-259), são características fundamentais as
seguintes:
- a união faz nascer um novo Estado e, concomitantemente, aqueles que aderiram à federação perdem a condição de Estados;
- a base jurídica do Estado Federal é uma Constituição, não um tratado;
- na federação não existe direito de secessão;
- só o Estado Federal tem soberania;
- no Estado Federal as atribuições da União e as das unidades federadas são fixadas na Constituição, por meio de uma distribuição de competências;
- a cada esfera de competências se atribui renda própria;
- o poder político é compartilhado pela União e pelas unidades federadas;
- os cidadãos do Estado que adere à federação adquirem a cidadania do Estado Federal e perdem a anterior.
O
leitor já pode notar, neste ponto, que o Estado Federal é substancialmente
inverso ao modelo de Estado Unitário, cuja estruturação organizacional do poder
se volta a um modelo competencial centralizador de atribuições administrativas,
políticas e judiciais na figura de um único ente representativo do centro de
poder. Sua principal característica é não permitir a coexistência do poder
central com unidades dotadas de autonomia política (competências próprias). No
Estado Unitário, a prestação de serviços e a execução das leis fica sob a
responsabilidade do poder central, bem como a produção normativa (não há pluralidade
de ordenamentos, por conseguinte). O máximo que se admite são mecanismos
internos de desconcentração e descentralização, sem que isso signifique,
entretanto, autonomia.
Podemos,
então, distinguir o Estado Unitário do Estado Federal, uma vez que naquele
ocorre uma descentralização administrativa, com dependência frente ao Estado
Unitário, enquanto no Estado Federal há independência. [...] Ainda, no Estado
Federal há dualidade de poderes políticos, sistemas jurídicos etc., ao passo
que no Estado Unitário, quando há, ocorre por meio de legislação inferior
(ordinária). (STRECK; MORAIS, 2006, p. 173-174).
O estudo dessas características,
malgrado se reportem, em princípio, à experiência constitucional dos Estados Unidos,
é relevante para a doutrina mundial, na medida em que as bases do federalismo estadunidense
influenciaram fortemente os demais países que o adotaram (México, Alemanha,
Suíça, Argentina, Rússia etc).
Mas é importante o leitor notar a
existência de singularidades no federalismo. Cada Estado adaptou-o à sua
maneira, transmudando-o com maior ou menor grau de inflexão. Não se pode falar,
dessa maneira, em um modelo de Estado Federal empedernido, imutável e
atemporal, válido para todos os tempos e em todos os lugares.
Julgando a ADI 2024/DF (BRASIL, 2007,
grifo nosso), o STF já teve oportunidade de decidir nesse sentido:
EMENTA:
I. Ação direta de inconstitucionalidade: seu cabimento - sedimentado na
jurisprudência do Tribunal - para questionar a compatibilidade de emenda
constitucional com os limites formais ou materiais impostos pela Constituição
ao poder constituinte derivado: precedentes. II. Previdência social (CF, art.
40, § 13, cf. EC 20/98): submissão dos ocupantes exclusivamente de cargos em
comissão, assim como os de outro cargo temporário ou de emprego público ao
regime geral da previdência social: argüição de inconstitucionalidade do
preceito por tendente a abolir a "forma federativa do Estado" (CF,
art. 60, § 4º, I): improcedência. 1. A
"forma federativa de Estado" - elevado a princípio intangível por
todas as Constituições da República - não pode ser conceituada a partir de um
modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte
originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material
imposto às futuras emendas à Constituição; de resto as limitações materiais
ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental
enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na
Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos
princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. [...]
Voltando-me
agora, de modo mais preciso, para a história da formação do Estado Federal
brasileiro, observo que, após a proclamação da independência do País, em 1822,
retirando-o do jugo da metrópole portuguesa, as elites que lideraram o processo
político, sobretudo ligadas ao recém-aclamado Imperador do Brasil, D. Pedro I,
foram fortemente influenciadas pelas ideias constitucionalistas. Sob color de
garantir a unidade da Nação, os constitucionalistas do Império notaram a
necessidade de instituir um poder central forte, capaz de debelar os poderes
regionais dominantes, sem se afastar do movimento constitucionalista da época,
intensamente incensado pela doutrina, em face do êxito da Revolução Francesa de
1789. Já em 1823 havia sido elaborada uma Constituição brasileira – que ficou
conhecida como Constituição da Mandioca [3]-, mas cujo teor liberal-iluminista
limitante dos poderes do Imperador desagradou a Pedro I, que determinou o
fechamento da Assembleia Constituinte.
Foi assim que, abandonando a
Constituição da Mandioca, editou-se a Constituição Imperial de 1824, que teve o
objetivo de fundir o constitucionalismo europeu, antiabsolutista por
excelência, com o absolutismo monárquico pretendido pelos estadistas sequazes
do Imperador Pedro I – num paradoxo genuinamente brasileiro. Para tanto,
abeberaram-se nas ideias de Benjamin Constant de La Rebecque (1767-1830),
teórico francês cujas ideias tinham grande difusão no período e que defendia
concepção peculiar de poderes constitucionais: poder real, poder executivo,
poder judiciário.
Os
poderes constitucionais são: o poder real, o poder executivo e o poder
judiciário.
[...]
Os
três poderes políticos, tais como os conhecemos até aqui – o poder executivo, o
legislativo e o judiciário -, são três instâncias que devem cooperar, cada qual
em sua parte, com o movimento geral. Mas quando essas engrenagens avariadas se
cruzam, se entrechocam e se bloqueiam, é necessária uma força para repô-la em
seu lugar. Essa força não pode estar numa dessas engrenagens mesmas, pois senão
ela lhe serviria para destruir as outras. Tem de estar fora, tem de ser de
certo modo neutra, para que sua ação se aplique onde quer que seja necessário
aplicá-la e para que ela seja preservadora e reparadora sem ser hostil.
(CONSTANT, 2005, p. 203-204).
Os juristas que elaboraram a
Constituição de 1824, influenciados por Constant, ao lado dos tradicionais
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, incluíram também o Poder Moderador
– este atribuído privativamente ao Imperador do Brasil, na condição de
“guardião” da harmonia dos demais Poderes. É o que se observa da leitura dos
dispositivos da Constituição Imperial de 1824:
Art.
10. Os Poderes Politicos reconhecidos pela Constituição do Imperio do Brazil
são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o
Poder Judicial.
[...]
Art.
98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado
privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro
Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da
Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. (BRASIL,
1824).
Essa centralização do Poder na pessoa
do Imperador, verdadeiro absolutismo monárquico brasileiro redivivo sob a
máscara do constitucionalismo, não se fez sem uma dura resistência por parte de
setores da sociedade inclinados às ideias liberais ou apenas insatisfeitos com
a miserabilidade a que estava submetida a quase totalidade da população
brasileira durante o período regencial. Vários foram os movimentos
insurrecionais nesse sentido: Cabanagem (1835-1840), no Pará; Revolução
Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande do Sul; Sabinada (1837-1838), na Bahia;
Balaiada (1838-1841), no Maranhão etc.
Esse
cenário histórico de inconformismo com o Imperador (na época, já era Pedro II e
o Brasil experimentava o Segundo Reinado), agravou-se até a culminância em
1889. Nesse ano, deu-se o levante político-militar que derrubou o absolutismo
monárquico-imperial brasileiro, instituindo, ato contínuo, a forma de governo
republicana e a de Estado federalista. [4] É nesse contexto histórico que se
promulga a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de
fevereiro de 1891.
O problema é que o Brasil nunca
tivera “Estados” independentes. As províncias nunca foram “Estados”, consoante
sugere o nome na tradição estadunidense, nunca tiveram soberania. As províncias
eram, isto sim, controladas pelo poder central (o governo do Império). Logo, o nome
“Estados Unidos” dado à Constituição republicana de 1891 foi um engodo. A
incorporação dessa expressão ao texto deveu-se apenas à influência ingente do
constitucionalismo liberal europeu e estadunidense sobre os juristas que a
redigiram, gerando o tom ficcional da “união de Estados” que embasou o nascimento
da República Velha.
O anseio dos republicanos
brasileiros, no sentido de ver reproduzidas as ideias constitucionalistas
alienígenas, era tão grande à época que, logo no princípio do governo
provisório presidido pelo Marechal Deodoro da Fonseca, já se baixou o Decreto
nº 1, de 15 de novembro de 1889. Colaciono seus três primeiros artigos:
Art.
1º. Fica proclamada provisoriamente e decretada como a fórma de governo da
nação brazileira - a República Federativa.
Art.
2º. As Províncias do Brazil, reunidas pelo laço da federação, ficam
constituindo os Estados Unidos do Brazil.
Art.
3º. Cada um desses Estados, no exercício
de sua legitima soberania, decretará opportunamente a sua constituição
definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locaes.
(BRASIL, 1889, grifo nosso).
Como
já notou o leitor, o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, pode ser
considerado uma autêntica “obra literária”. É, com efeito, das mais criativas
peças ficcionais já escritas em nosso País. Não guardava, já na época de sua
edição, como ainda hoje, nenhuma correspondência com a realidade circundante.
Mas,
se a República Velha se estendeu apenas até 1930, o mesmo não se pode dizer da
expressão “Estados Unidos do Brasil”. Esse ranço linguístico fictício
permaneceu a nomear as cartas constitucionais brasileiras seguintes: a de 1934
(“Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”), a de 1937
(“Constituição dos Estados Unidos do Brasil”), a Constituição de 1946
(“Constituição dos Estados Unidos do Brasil”). Só com a Carta de 1967 restou
consagrada a expressão “Constituição da República Federativa do Brasil”,
reproduzida na Constituição de 1969, e que pode ser vista encimando hoje a vigente
Constituição de 1988.
Toda a exposição histórica e doutrinária
a que me reportei ao longo desta investigação teve um propósito muito simples:
demonstrar ao leitor que a afirmação de que o Brasil se chama “Estados Unidos
do Brasil” denota um equívoco de duas ordens. Por primeiro, como salta aos
olhos de qualquer um que tenha em mãos o texto constitucional ora em vigor, é
errado atribuir essa nomenclatura ao Estado brasileiro, visto que não
reproduzida pelo povo constituinte de 1988 na carta que promulgou. Em segundo
lugar, também revela equívoco do ponto de vista histórico, visto que os
“Estados Unidos” só o foram verdadeiramente na experiência constitucional
estadunidense, em nada coincidindo com os movimentos elitistas e excludentes
que cuidaram de escrever a historiografia do republicanismo brasileiro “de cima
para baixo”, sem a participação de movimentos populares. O Decreto nº 1 de 1889,
anteriormente citado, consubstancia a prova maior de como as personagens da
história brasileira assumiram um tom ficcional ao tratar da ratificação da
Constituição republicana de 1891 após o fim do Segundo Reinado e o rompimento
com as balizas monárquicas absolutistas da Constituição Imperial de 1824.
Sobre o erro de José Serra, penso que
passaria despercebido não tivesse sido cometido por alguém com a expressão que o
referido candidato goza no cenário político nacional. Já seria surpreendente de
per si que um agente político qualquer incorresse num equívoco dessa ordem,
porquanto revelaria a falta de leitura da Constituição – defeito gravíssimo em
se tratando daquele que, em princípio, tem a incumbência de fazer e executar as
leis de conformidade com o texto constitucional. Ocorre que José Serra
definitivamente não é um estadista “qualquer”: ostenta um currículo político de
envergadura, ora como ex-Governador e ex-Prefeito da cidade de São Paulo – a
capital política e economicamente mais importante do País -, ora como candidato
à Presidência da República por duas vezes, liderando a coalizão da direita conservadora. Sendo assim, não causa espanto que a confusão mental de Serra tenha
ensejado tanta comoção: no contexto de sua biografia, chamar a República
Federativa do Brasil de “Estados Unidos” toma proporções grotescas.
Notas:
[1]
Segundo Miguel Reale (2000, p. 157), “a soberania significa o direito do Estado
como pessoa jurídica de direito público, e resolve-se, em última análise, no
poder originário e exclusivo que tem o Estado de declarar e assegurar por meios
próprios a positividade de seu Direito e de resolver, em última instância,
sobre a validade de todos os ordenamentos jurídicos internos.” A ideia clássica
de soberania, desse modo, comporta um elemento de incondicionalidade do
exercício do poder de império do Estado. As razões conducentes do surgimento
dessa concepção foram principalmente de ordem histórica. Com efeito, caminhou ombro a ombro com o surgimento do Estado moderno. Paulo
Bonavides (2000) anota, nesse sentido, que um poder novo se firmou no Estado
moderno, consistente no poder absoluto dos monarcas independentes cuja
justificativa era dada pelas teorizações relacionadas à ideia de soberania.
[2]
Traduzo: “Depois de toda a experiência com um Governo Federal ineficiente, você
está convidado a deliberar quanto à nova Constituição dos Estados Unidos da
América. A importância do tema fala por si só: compreender em suas
consequências nada menos que a existência da União – a segurança e o bem-estar
das partes que a compõem e o destino de um império que, em muitos aspectos, é o
que desperta maior interesse no mundo.”
[3]
O anteprojeto da primeira Constituição do Brasil imperial foi elaborado pela
comissão encabeçada pelo jurista Antônio Carlos de Andrada e Silva e levado ao
debate na Assembleia Constituinte de 1823. Seu texto estabelecia critério de
capacidade eleitoral ativa demasiado restritivo. Assim, nos seus termos,
somente poderiam votar aqueles que tivessem renda medida em alqueires de
mandioca – daí a alcunha zombeteira de “Constituição da Mandioca”. Com isso, o
anteprojeto do texto constitucional notadamente acentuava o poder político dos
grandes produtores rurais, reservando-lhes, na prática, a exclusividade da
representação nacional, ao passo que impedia, a um só tempo, que os pobres (sem
renda) e os comerciantes portugueses (com renda mensurável diretamente em
dinheiro) pudessem eleger seus representantes.
[4]
Há três conceitos inconfundíveis na Teoria do Estado: forma de Estado (unitário
ou federado); forma de governo (república ou monarquia); e sistema de governo
(presidencialismo ou parlamentarismo). Costuma haver uma associação entre
república e federalismo, fundando a “república federativa”, pois ambos, forma
de estado e de governo, convergem quanto ao desiderato de limitação do poder
estatal. Na república, o poder pertence ao povo, deve ser impessoal (por isso o
republicanismo rechaça o nepotismo, por exemplo), enfatizando a necessidade de
participação popular no governo, bem como se estabelece a periodicidade de
exercício do poder político pela técnica da fixação de mandatos do titular
(governante) eleito.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES,
Paulo. Ciência Política. 10º ed.
rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000.
BRASIL.
Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março
de 1824). Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 03 de abr. de 2012.
BRASIL.
Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889. Proclama provisoriamente e decreta
como fórma de governo da Nação Brazileira a Republica Federativa, e estabelece
as normas pelas quaes se devem reger os Estados Federaes. Disponível em: www2.camara.gov.br. Acesso em 03 de
abr. de 2012.
BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. ADI 2024/DF – Distrito Federal. Ação Direta de
Inconstitucionalidade para questionar a compatibilidade de emenda
constitucional com os limites formais ou materiais impostos pela Constituição
ao poder constituinte derivado. Requerente: Governador do Estado de Mato Grosso
do Sul. Requerido: Congresso Nacional. Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence.
Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Diário
da Justiça Eletrônico nº 42/2007 [da] República Federativa do Brasil, Poder
Judiciário, Brasília, DF, 22 de jun. 2007.
CONSTANT, Benjamin. Escritos de política. Tradução Eduardo
Brandão; edição, introdução e notas Célia N. Galvão Quirino. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado.
26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
HAMILTON,
Alexander; MADISON, James; JAY, John. The
Federalist: a new edition with the names and portraits of the several
writers. Philadelphia: Benjamin
Warner, no. 147, Market Street, 1818. Disponível
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em 03 de abr. de 2012.
MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4º ed.
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REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5ª ed. rev.
São Paulo: Saraiva, 2000.
STRECK,
Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do
Estado. 5ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
WEFFORT,
Francisco C. Os clássicos da política: Maquiavel,
Hobbes, Locke, Montesquieu, Rosseau, “O Federalista”, vol. 1. São Paulo: Ática, 2001.
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