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Ouvindo atualmente: "Rachmaninov Variations" (2015),
Daniil Trifonov, The Philadelphia Orchestra, Yannick Nézet-Séguin.
O pianista russo Trifonov interpreta as variações que o romântico Rachmaninov
compôs sobre temas originalmente escritos por Paganini, Chopin e Corelli.
A teoria dos capítulos da sentença está umbilicalmente ligada à estrutura de uma sentença – notadamente de um dos seus elementos, isto é, o dispositivo.
De início, é preciso recordar que a sentença
estrutura-se, no Processo Civil, a partir de três elementos essenciais: (1)
relatório; (2) fundamentação; e (3) dispositivo. Eles encontram previsão no
art. 489 do CPC/15:
Art. 489. São elementos essenciais da
sentença:
I - o relatório, que conterá
os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da
contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do
processo;
O art. 489 do CPC descreve, assim, as partes
componentes de uma sentença típica.
Desde um ponto de vista conceitual amplo, ao
lado das decisões interlocutórias e dos despachos, sentença é um dos pronunciamentos
do juiz no processo (CPC, art. 203, caput).
De outro giro, de um ponto de vista conceitual mais específico, sentença é o pronunciamento
por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase
cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução (CPC, art. 203, §
1º).
À vista do § 1º do art. 203 do CPC, tem-se a
conclusão de que a sentença é um ato jurídico-processual que pode extinguir o
processo sem resolver o mérito (art. 485) como pode extingui-lo com resolução
de mérito (art. 487).
Dependendo do tipo de provimento
jurisdicional dado à lide, a doutrina propõe uma classificação clássica da
sentença em dois tipos: terminativas e definitivas.
(a) sentenças terminativas: são os pronunciamentos do juiz que põem fim
ao processo, porém sem resolver o mérito, uma vez que existe algum fator processual
que impede a análise do objeto da ação (o conhecimento da tutela jurisdicional
é inadmissível nas condições em que a parte invocou-a).
As hipóteses de sentenças terminativas estão, em regra, previstas no
art. 485 do CPC:
Art. 485. O juiz não resolverá o mérito
quando:
III - por não promover os atos
e as diligências que lhe incumbir, o autor abandonar a causa por mais de 30
(trinta) dias;
IV - verificar a ausência de
pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;
VII - acolher a alegação de
existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua
competência;
§ 1º Nas hipóteses
descritas nos incisos II e III, a parte será intimada pessoalmente para suprir
a falta no prazo de 5 (cinco) dias.
§ 2º No caso do § 1o,
quanto ao inciso II, as partes pagarão proporcionalmente as custas, e, quanto
ao inciso III, o autor será condenado ao pagamento das despesas e dos
honorários de advogado.
§ 3º O juiz conhecerá de
ofício da matéria constante dos incisos IV, V, VI e IX, em qualquer tempo e
grau de jurisdição, enquanto não ocorrer o trânsito em julgado.
§ 6º Oferecida a
contestação, a extinção do processo por abandono da causa pelo autor depende de
requerimento do réu.
§ 7º Interposta a
apelação em qualquer dos casos de que tratam os incisos deste artigo, o juiz
terá 5 (cinco) dias para retratar-se.
(b) sentenças definitivas: são os pronunciamentos do juiz que decidem,
total ou parcialmente, o mérito da causa, assegurando à parte a tutela
jurisdicional (objeto da demanda) pretendida mediante o exercício do direito de
ação.
A sentença de resolução de mérito, que resolve o objeto do processo,
dar-se-á nas hipóteses do art. 487 do CPC:
Art. 487. Haverá resolução de mérito quando o
juiz:
Parágrafo único.
Ressalvada a hipótese do § 1o do art. 332, a prescrição e a
decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes
oportunidade de manifestar-se.
É assim que se pode afirmar que, de acordo
com o CPC/15, a classificação de um pronunciamento judicial de natureza
decisória como “sentença” independe do conteúdo
da decisão. Para fins classificatórios, na sistemática do código, importa –
isto sim – saber se o pronunciamento do juiz põe (ou não) fim ao processo – ao,
ao menos, a uma de suas fases.
Apesar disso, seja a sentença terminativa,
seja a sentença definitiva, os seus elementos componentes permanecem incólumes.
Haverá sempre a necessidade de relatório, fundamentação e dispositivo.
Para o estudo da teoria dos capítulos da
sentença, destaca-se o conceito de dispositivo. Dispositivo é a conclusão a que
chega o julgador após a exposição de ideias na fundamentação, que embasa e
informa as suas razões de decidir de tal ou qual maneira em meio a tantas
opções igualmente viáveis. Mas o dispositivo não é uma conclusão qualquer. É
uma conclusão de conteúdo decisório, que contém um comando, uma ordem judicial que
incidirá sobre o mundo dos fatos (realidade fática), podendo transformá-lo ou
não.
O dispositivo de uma sentença pode ser
decomposto. Trata-se de uma decomposição das ideias formuladas pelo magistrado,
cabível em determinadas circunstâncias, não obstante a sentença em si seja um
ato jurídico-formal único.
À possibilidade de decomposição ideológica do
conteúdo decisório (dispositivo) de uma decisão judicial, dá-se o nome em doutrina
de teoria dos capítulos da sentença.
Segundo essa teorização, o dispositivo de uma
sentença é passível de divisão em capítulos. Os capítulos, assim, são unidades
de um todo formalmente único, isto é, a sentença. Cada capítulo corresponde a
uma unidade autônoma de conteúdo decisório e que está contida no dispositivo da
decisão judicial.
Seguindo o mesmo raciocínio aplicado à
classificação tradicional de uma sentença, que a divide em sentença terminativa
ou definitiva, de conformidade com a maneira pela qual extingue o processo (com
ou sem resolução de mérito), a parte dispositiva de uma decisão judicial pode apresentar
capítulos de conteúdos distintos, a depender se analisa questões processuais de
admissibilidade do julgamento do mérito ou se julga o mérito propriamente dito.
Sendo assim, num mesmo dispositivo, pode
haver capítulos puramente processuais como pode haver capítulos de mérito. Se
uma sentença contém apenas capítulos de um tipo, ela será considerada uma sentença homogênea (p. ex.: sentença
contém apenas capítulos que resolvem o mérito, pois o réu não alegou em sua resposta
nenhuma das preliminares processuais constantes do art. 337 do CPC). Já na
hipótese de a sentença conter capítulos mistos, que ora decidem questões
puramente processuais, ora conferem resolução a questões de mérito, ter-se-á
uma sentença heterogênea.
Mas como pode ser identificada na prática
forense a aplicação da teoria dos capítulos da sentença?
A demonstração de alguns exemplos facilitará
o entendimento do leitor.
Nos processos em que há cumulação de pedidos,
caberá ao juiz proferir um pronunciamento para cada deles. Portanto, como o
dispositivo da sentença conterá a resolução de vários pedidos cumulados, a
decisão sobre cada um deles constituirá um capítulo. É o que ocorre em uma ação
de indenização na qual o autor pede indenização por danos morais e materiais.
Nessa hipótese, o juiz decidirá de tal forma a que, na parte dispositiva da
sentença, haja um capítulo para o dano material e outro para o dano moral.
Outra verificação prática da teoria dos
capítulos da sentença dá-se nas ações em que o autor pede um bem da vida que,
apesar de único, é decomponível. Pedido
decomponível é aquele suscetível de contagem, mensuração, medição, pesagem.
O caso mais comum de pedido decomponível é o pedido de dinheiro, pois se cuida
de grandeza passível de quantificação. Logo, em ação de cobrança na qual o
autor pede R$ 100.000,00 do réu, o juiz decidirá, no mérito, se acolhe ou não a
integralidade do pedido formulado na petição inicial. Caso o juiz se convença
de que a dívida do réu não é de R$ 100.000,00, mas tão só da metade, a sentença
conterá dispositivo com pelo menos dois capítulos: o primeiro deles julga
procedente o pedido quando ao pagamento do valor de R$ 50.000,00; o segundo
julga improcedente o pedido de pagamento na mesma extensão. Portanto, sempre
que um pedido for julgado parcialmente procedente, estar-se-á diante de, no
mínimo, dois capítulos da sentença.
Também haverá capítulos de sentença no
dispositivo da decisão que julga questões preliminares, mas, rejeitando-as, adentra
a resolução do mérito. É o caso, exemplarmente, de uma ação na qual o réu, em
sua contestação (CPC, art. 335), alega preliminarmente ao mérito a
incompetência absoluta ou relativa do juízo (CPC, art. 337, II) ou a ausência
de legitimidade ou de interesse processual (CPC, art. 337, XI). Em todos esses
casos, caso o juiz decida pela rejeição das questões puramente processuais,
lavrará um capítulo na parte dispositiva da sentença a esse respeito, para
atestar que o procedimento, nas circunstâncias em que a parte invoca-as, viabiliza
a resolução do mérito e, portanto, o acertamento do objeto da demanda.
Outro campo do Direito Processual Civil em
que a teoria dos capítulos da sentença adquire importância notável diz respeito
aos efeitos dos recursos. Nessa toada, a teoria dos recursos preconiza que,
quanto ao efeito devolutivo, a sua extensão medir-se-á pela matéria
efetivamente impugnada pela parte recorrente. É assim que se pode conceber a
ideia de um recurso total (impugna
todos os capítulos) ou recurso parcial
(impugna apenas alguns capítulos). É assim igualmente que se desenvolve a
estratégia processual da parte, que pode devolver ao tribunal o conhecimento de
toda a matéria impugnada ou limitar o efeito devolutivo do recurso, conferindo
à devolução um caráter mais restrito. Aplica-se aqui a tradição construída
desde os idos do Direito Romano, segundo a qual tantum devolutum quantum appellatum, brocardo incorporado pelo caput do art. 1.013 do CPC:
Art. 1.013. A apelação devolverá ao tribunal
o conhecimento da matéria impugnada.
§ 1º Serão, porém, objeto
de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e
discutidas no processo, ainda que não tenham sido solucionadas, desde que
relativas ao capítulo impugnado.
§ 2º Quando o pedido ou a
defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação
devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.
§ 3º Se o processo
estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo
o mérito quando:
II - decretar a nulidade da
sentença por não ser ela congruente com os limites do pedido ou da causa de
pedir;
§ 4º Quando reformar
sentença que reconheça a decadência ou a prescrição, o tribunal, se possível,
julgará o mérito, examinando as demais questões, sem determinar o retorno do
processo ao juízo de primeiro grau.
§ 5º O capítulo da
sentença que confirma, concede ou revoga a tutela provisória é impugnável na
apelação.
Note-se que a redação do §1º do art. 1.013 do
CPC alude explicitamente aos capítulos impugnados, o que é clara decorrência da
teoria dos capítulos da sentença, utilizados na sistemática recursal do código
como parâmetro limitador da extensão do efeito devolutivo do recurso de
apelação.
Finalmente, a teoria dos capítulos da
sentença aparece de modo implícito nas regras de liquidação de sentença,
prescritas no art. 509 do CPC, in verbis:
Art. 509. Quando a sentença condenar ao
pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á à sua liquidação, a requerimento
do credor ou do devedor:
I - por arbitramento, quando
determinado pela sentença, convencionado pelas partes ou exigido pela natureza
do objeto da liquidação;
§ 1º Quando na sentença
houver uma parte líquida e outra ilíquida, ao credor é lícito promover
simultaneamente a execução daquela e, em autos apartados, a liquidação desta.
§ 2º Quando a apuração do
valor depender apenas de cálculo aritmético, o credor poderá promover, desde
logo, o cumprimento da sentença.
§ 3º O Conselho Nacional
de Justiça desenvolverá e colocará à disposição dos interessados programa de
atualização financeira.
Observe o leitor que o § 1º do art. 509 do
CPC autoriza a execução da parte líquida da sentença concomitantemente à liquidação,
em autos apartados, da parte ilíquida. Essas “partes” a que se reporta o texto
legal devem, em verdade, ser lidas como as “partes dispositivas” do provimento
jurisdicional. Portanto, a norma do art. 509, § 1º, só é inteligível se se
admitir que o CPC/15 trabalha em sua sistemática de liquidação a partir da
teoria que permite capitular o dispositivo de uma decisão judicial.
Dessa maneira, à luz de todos esses exemplos
conjugados, seja na teoria da decisão judicial – sobretudo no que concerne aos
elementos da sentença -, seja na liquidação de sentença, seja na extensão do
efeito devolutivo dos recursos (tantum
devolutum quantum appellatum), conclui-se que a teoria dos capítulos da sentença encontra-se
amplamente incorporada à sistemática geral do Código de Processo Civil (Lei
13.105/15).
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