1 - Questão:
O assistente de acusação pode recorrer quando o Ministério Público não tiver interposto recurso ou tenha pedido a absolvição do réu?
No Processo Penal brasileiro, a Constituição
de 1988 cuidou de estabelecer algumas regras básicas. Entre elas, encontra-se
aquela que prevê que o Ministério Público tem, como função institucional,
promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei (CF, art. 129,
I).
Por força dessa norma constitucional é que se
afirma que, de ordinário, o Ministério Público é o titular da ação penal. Mas
essa não é uma regra de caráter absoluto. Prova disso é que a própria
Constituição tratou de excepcioná-la no art. 5º, LIX, que conta com a redação
seguinte:
Art.
5º omissis
LIX
- será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal;
A exceção prevista no inc. LIX do art. 5º da
Constituição demonstra a disposição do sistema jurídico pátrio em admitir,
excepcionalmente, ao lado do titular da ação penal, a atuação do particular
(ofendido) dentro do processo criminal.
Sendo assim, existem três hipóteses nas quais
o ofendido atuará diretamente dentro do Processo Penal brasileiro:
1)
Ação penal de iniciativa
privada (ou ação penal privada);
É a hipótese na qual o ofendido (vítima) atua
como titular da ação penal. A ação é pública, mas sua iniciativa, por escolha
legislativa, é atribuída ao particular em determinados casos. Por exemplo: nos
crimes contra a honra, em regra, a ação penal é de iniciativa privada (CP. art.
145).
A ação penal de iniciativa privada é
denominada de queixa-crime. Sua previsão
legal encontra-se nas normas seguintes:
CP
Art.
100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara
privativa do ofendido.
(...)
§
2º - A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de
quem tenha qualidade para representá-lo.
§
4º - No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente por decisão
judicial, o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação passa ao
cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.
CPP
Art.
30. Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá
intentar a ação privada.
Art. 31. No caso de
morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito
de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente,
descendente ou irmão.
2)
Ação penal de iniciativa
privada subsidiária da pública (ou ação penal privada subsidiária da pública);
É a hipótese na qual o sistema jurídico
permite o ajuizamento, pelo ofendido, de ação de iniciativa privada em crimes
de ação pública, caso o titular da ação penal venha a quedar-se inerte, isto é,
caso o Ministério Público não ajuíze a ação penal pública no prazo legal.
Essa possibilidade de atuação no processo
criminal é atribuída ao particular pelos seguintes dispositivos legais e
constitucionais:
CF
Art.
5º omissis
LIX
- será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for
intentada no prazo legal;
CP
Art.
100
§
3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública,
se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal.
CPP
Art. 29. Será
admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no
prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e
oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo,
fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de
negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
3)
Assistente de acusação (ou
assistente do Ministério Público).
É a hipótese na qual o ofendido intervêm no
processo criminal com o propósito de assistir o Ministério Público na ação
penal ajuizada pelo órgão.
A possibilidade de que o particular venha a
habilitar-se no processo como assistente de acusação encontra-se prevista no
art. 268 do CPP:
Art. 268. Em
todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério
Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das
pessoas mencionadas no Art. 31.
Ressalte-se que as hipóteses de admissão do assistente
de acusação (ofendido, representante legal ou, na falta, cônjuge, ascendente,
descendente ou irmão), previstas no art. 268 do CPP, correspondem a um rol
taxativo (numerus clausus), consoante
já decidiu o STJ (grifo meu):
PROCESSO
PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SEGURADORA RESPONSÁVEL PELO
PAGAMENTO DE DPVAT. INTERVENÇÃO COMO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ROL
TAXATIVO DO ART. 268 DO CPP. NÃO COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. A teor do art. 268 do CPP, a legitimidade para
figurar como assistente de acusação é restrita ao ofendido, ao seu
representante legal ou, na falta, ao seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.
2.
Não tem legitimidade para figurar como assistente de acusação, em ação penal
pública deflagrada para apurar falsificação de documento particular e
apropriação indébita, seguradora responsável pelo pagamento de DPVAT, quando
não for sujeito passivo dos crimes narrados e não tiver comprovado, mediante
prova inequívoca, a ocorrência de prejuízo, ainda que de forma reflexa, aos
seus cofres.
3.
Não houve fraude para induzir a seguradora a pagar o DPVAT, o seguro era devido
em decorrência de sinistro e não há possibilidade de a ora recorrente ser
demandada para pagá-lo em duplicidade, pois depositou o numerário em juízo cível
e o alvará foi levantado por advogado legalmente constituído, com poderes para
receber e dar quitação em nome da segurada.
4.
Recurso ordinário em mandado de segurança não provido.
(STJ,
Sexta Turma, RMS 41.052/PA, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 23/06/2015, p.
DJe 03/08/2015).
Após a ouvida do Ministério Público (CPP,
art. 272), o juiz decidirá sobre a admissão do assistente, que poderá ser
admitido nos autos enquanto a sentença não transitar em julgado e receberá a
causa no estado em que se achar (CPP, art. 269).
Uma vez declarado habilitado, o ofendido,
devidamente representado por advogado, e já na condição de assistente, estará
autorizado a praticar os atos processuais discriminados no art. 270 do CPP:
Art. 271. Ao
assistente será permitido propor meios de prova, requerer perguntas às
testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e
arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, nos
casos dos arts. 584, § 1º, e 598.
§ 1º O
juiz, ouvido o Ministério Público, decidirá acerca da realização das provas
propostas pelo assistente.
§ 2º O
processo prosseguirá independentemente de nova intimação do assistente, quando
este, intimado, deixar de comparecer a qualquer dos atos da instrução ou do
julgamento, sem motivo de força maior devidamente comprovado.
Novamente, o STJ entende que o rol de poderes
processuais do art. 271 do CPP é taxativo, conforme o acórdão lavrado no
REsp 604.379/SP (grifo meu):
CRIMINAL.
RECURSO ESPECIAL. CORREIÇÃO PARCIAL. ASSISTENTE DA ACUSAÇÃO. ILEGITIMIDADE.
RECURSO PROVIDO.
I. O rol do art. 271 do CPP é taxativo, de forma que o
assistente da acusação exerce os poderes estritamente dentro dos limites conferidos
por este dispositivo legal.
II.
Os poderes para interpor e arrazoar os recursos restringem-se aos previstos nos
dispositivos legais referidos na Lei Adjetiva Penal, quais sejam, recurso em
sentido estrito e recurso de apelação, de maneira que a correição parcial
encontra-se fora de suas atribuições legais.
III.
Ilegitimidade do assistente da acusação para interposição de correição parcial.
IV.
Recurso provido, nos termos do voto do Relator.
(STJ,
Quinta Turma, REsp 604.379/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 02/02/2006, p. DJ 06/03/2006).
Interpretando os poderes processuais do
assistente de acusação dentro do Processo Penal brasileiro, sobretudo no que
diz respeito à recorribilidade das decisões, o STF, desde 1963, conta com o
enunciado nº 210 na sua súmula de jurisprudência não vinculante:
STF, súmula 210
O
assistente do ministério público pode recorrer, inclusive extraordinariamente,
na ação penal, nos casos dos arts. 584, § 1º, e 598 do código de processo
penal.
Pois foi justamente com base na tese jurídica
(ratio decidendi) desse enunciado que
o STF veio a reconhecer que, quando o titular da ação penal não recorre da
decisão que absolve o réu, ou mesmo quando o Ministério Público pede a
absolvição do acusado, a legitimidade do assistente de acusação não é anulada
ou prejudicada. Logo, ele está perfeitamente legitimado a recorrer da sentença
absolutória.
Eis o acórdão:
HABEAS
CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. ESTELIONATO. ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE
DA ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO PARA RECORRER DA SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA.
IMPROCEDÊNCIA. AUSÊNCIA DE RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IRRELEVÂNCIA DO
PARECER MINISTERIAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA PELO NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO. 1.
A assistente de acusação tem legitimidade para recorrer da decisão que absolve
o réu nos casos em que o Ministério Público não interpõe recurso. 2. Aplicação
da Súmula 210 do Supremo Tribunal Federal: "O assistente do Ministério
Público pode recorrer, inclusive extraordinariamente, na ação penal, nos casos
dos arts. 584, § 1º, e 598 do Código de Processo Penal". 3. A manifestação
do promotor de justiça, em alegações finais, pela absolvição da Paciente e, em
seu parecer, pelo não conhecimento do recurso não altera nem anula o direito da
assistente de acusação recorrer da sentença absolutória. 4. Ordem denegada.
(STF,
Tribunal Pleno, HC 102.085/RS, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 10/06/2010, p. DJe 26/08/2010).
Em julgado posterior, o STF repisou seu
entendimento que reconhece a legitimidade do assistente de acusação para
recorrer quando o Ministério Público não interpuser o recurso cabível (grifo
meu):
Recurso
ordinário em habeas corpus. Processual Penal. Crime de lesão corporal (art.
129, § 2º, incisos III e IV, do Código Penal). Condenação. Recurso de apelação
agitado pelo assistente de acusação. Legitimidade. Enunciado da Súmula nº 210
desta Corte. Precedentes. 1. O julgado
impugnado está em perfeita harmonia com a jurisprudência desta Suprema Corte,
que assentou a legitimidade do assistente de acusação para recorrer da sentença
caso o Ministério Público se quede inerte (HC nº 100.243/BA, Primeira
Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 25/10/10). 2. Recurso
não provido.
(STF,
Primeira Turma, HC 107.714/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 10/05/2011, p. DJe 29/07/2011).
A posição do STF, como não poderia deixar de
ser, influenciou a jurisprudência do STJ, que passou a admitir que o assistente
de acusação pode recorrer da decisão do júri popular mesmo que o Ministério
Público tenha se manifestado pela absolvição do réu.
Trago um acórdão recente para o leitor, que
confirma a minha afirmação (grifo meu):
RECURSO
ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. MINISTÉRIO
PÚBLICO. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO EM PLENÁRIO. CONFIRMAÇÃO PELO JÚRI. APELAÇÃO.
INTERPOSIÇÃO PELO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO. LEGITIMIDADE. DECISÃO DOS JURADOS
MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. SUBMISSÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO.
ADMISSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO. 1. O
assistente de acusação possui legitimidade para interpor recurso de apelação,
em caráter supletivo, nos termos do art. 598 do CPP, ainda que o Ministério
Público tenha requerido a absolvição do réu em plenário. 2. O Código de
Processo Penal, em seu art. 593, §3º, garante ao Tribunal de Apelação o exame,
por única vez, de conformidade mínima da decisão dos jurados com a prova dos
autos. Não configura desrespeito ou afronta à soberania dos veredictos o
acórdão que, apreciando recurso de apelação, concluiu pela completa dissociação
do resultado do julgamento pelo Júri com o conjunto probatório produzido
durante a instrução processual, de maneira fundamentada. Precedentes do STJ e
do STF. 3. Para a revisão do critério de valoração das provas adotado pelo
Tribunal a quo, necessária seria a incursão aprofundada no material cognitivo
produzido perante o juízo de primeira instância, o que se mostra incabível na
via recursal. 4. Recurso improvido
(STJ,
Quinta Turma, HC 157.630/SP, Rel. Min. Néfi Cordeiro, j. 28/04/2015, p. DJe 24/06/2015).
Em conclusão, temos que, segundo a
jurisprudência do STF e do STJ, a legitimidade para recorrer do assistente de
acusação é ampla, afigurando-se legítima a interposição de recurso de sua
autoria nas seguintes hipóteses:
1) Ministério Público não
interpôs recurso da sentença;
2) Ministério Público pediu
absolvição do réu no curso do rito ordinário;
3) Ministério Público pediu
absolvição do réu no rito do tribunal do júri.
Portanto, no Processo Penal brasileiro, o assistente de acusação está legitimado a recorrer
quando o Ministério Público não tiver interposto recurso ou tenha pedido a absolvição
do réu.
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