► Pergunta do leitor:
Professor, é possível a caracterização do crime de estupro sem a realização do exame de corpo de delito da vítima?
A interrogante do leitor está a encerrar um
tema que, no passado, foi polemista nos tribunais brasileiros. O exame de corpo
de delito, como é cediço, corresponde à investigação de peritos, especializados
em conhecimento de caráter técnico-científico, que analisam a existência de
vestígios materiais deixados pela prática delituosa. O conjunto desses
vestígios constitui o “corpo do delito” propriamente dito e sua importância, no
campo processual, está relacionada com a comprovação da autoria e da materialidade
da infração penal.
Na sistemática do Código de Processo Penal
brasileiro, o exame de corpo de delito está a funcionar como meio de prova que,
de ordinário, reputa-se indispensável. É o que prescreve o art. 158 do CPP:
Art. 158. Quando
a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito,
direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.
Nesse contexto, a controvérsia instalava-se pela
corrente doutrinária que advogava a tese da imprescindibilidade do exame de
corpo de delito da vítima nos crimes sexuais, a aplicar a regra do art. 158 do
CPP sem qualquer ressalva. Acorde com esse pensamento, a tipificação do crime
de estupro (CP, art. 213), por exemplo, não se completaria validamente sem a realização
do exame de corpo de delito na vítima, haja vista tratar-se de meio de prova
indispensável à comprovação da autoria e da materialidade delitivas. Em consequência
disso, caso não se tivesse, por qualquer motivo, realizado a análise dos
vestígios materiais deixados pelo estupro, a ausência de laudo pericial
conclusivo recomendaria de per si a absolvição do réu.
Atualmente, todavia, essa tese defensiva já
se encontra superada.
Com efeito, no repositório de jurisprudência
criminal do STF e do STJ, o entendimento prevalecente é no sentido de que, em
se tratando
de crimes contra a dignidade sexual, é preciso reconhecer que o seu modus
operandi típico é diferenciado pela sua clandestinidade, a acarretar especial
dificuldade na colheita de vestígios materiais (às vezes, sequer sobram
vestígios sensíveis do delito). Com isso, os tribunais devem atribuir à palavra
da vítima um valor probatório diferenciado, uma carga probante mais acentuada
no Processo Penal.
Exemplificativamente, no crime de estupro, o
julgador deve considerar que a clandestinidade com que se opera ordinariamente
a sua consumação acentua a dificuldade na verificação de testemunhas ou de
vestígios materiais, em tudo a contribuir para que o juízo de tipicidade
prescinda de laudo pericial. Desse modo, a regra do art. 158 do CPP deve ceder
diante das circunstâncias peculiarizadas que cercam a perpetração do estupro –
quase sempre praticado pelo agente criminoso de maneira furtiva, às escondidas.
A fim de demonstrar o posicionamento do STF e
do STJ nessa matéria, separei para o leitor os acórdãos a seguir (grifos meus):
ESTUPRO -
EXAME DE CORPO DE DELITO - PROVA - DEPOIMENTO DA VÍTIMA. Sendo a
vítima mulher que não era virgem, casada e mãe de filhos, dispensável e o exame do corpo de
delito. A existência de sêmen na vagina não e essencial a
configuração do delito, no que pressupõe o constrangimento de mulher
a conjunção carnal, mediante violência. A prova testemunhal e de difícil
desenvolvimento, por tratar-se de evento raramente presenciado.
Potencializa-se o depoimento da vítima, não cabendo perquirir, para efeito desimplificação,
a conduta cotidiana. O fato de tratar-se de meretriz nada
representa, mormente quando as pessoas ouvidas deixaram esclarecido que o
agente, ameacando-a com arma de fogo, obrigou-a a dirigir-se,
despida, a determinado comodo, enquanto os demais participes efetuavam o roubo.
(STF,
Segunda Turma, HC 68704/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 10/09/1991, p. DJ 04/10/1991).
HABEAS
CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ESTUPRO. ATOS
LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. SEXO ORAL. EXAME PERICIAL.
DESNECESSIDADE. CRIME QUE NÃO DEIXA VESTÍGIOS. PALAVRAS DAS VÍTIMAS.
VALIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
1.
O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, e a Terceira Seção deste
Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do
habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal
for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a
possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante
ilegalidade.
2. Nos termos do artigo 158 do Código de Processo Penal,
"quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo
de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do
acusado".
3. Consistindo o ato sexual na prática de sexo oral nas ofendidas e no mesmo contexto em relação ao paciente, e, constatado não ter a prática deixado vestígios materiais, desnecessária a determinação de exame pericial, diante de sua irrelevância para verificação da materialidade delitiva.
4. "A jurisprudência pátria é assente no sentido de que, nos delitos
de natureza sexual, por frequentemente não deixarem vestígios, a palavra da vítima tem valor probante diferenciado" (REsp. 1.571.008/PE, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, Dje 23/2/2016).
5. Habeas Corpus não conhecido.
3. Consistindo o ato sexual na prática de sexo oral nas ofendidas e no mesmo contexto em relação ao paciente, e, constatado não ter a prática deixado vestígios materiais, desnecessária a determinação de exame pericial, diante de sua irrelevância para verificação da materialidade delitiva.
4. "A jurisprudência pátria é assente no sentido de que, nos delitos
de natureza sexual, por frequentemente não deixarem vestígios, a palavra da vítima tem valor probante diferenciado" (REsp. 1.571.008/PE, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, Dje 23/2/2016).
5. Habeas Corpus não conhecido.
(STJ,
Quinta Turma, HC 301380/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 14/06/2016,
p. DJe 21/06/2016).
AGRAVO
REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. ESTUPRO. PALAVRA DA VÍTIMA.
VALOR PROBANTE. ACÓRDÃO A QUO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTE
TRIBUNAL. MATÉRIA FÁTICO PROBATÓRIA. SÚMULAS 7 E 83/STJ.
1.
A ausência de laudo pericial conclusivo não afasta a caracterização de estupro, porquanto a palavra da vítima tem validade probante, em particular nessa forma clandestina de
delito, por meio do qual não se verificam, com facilidade, testemunhas ou
vestígios.
2. O decisum exarado pelo Tribunal de origem bem assim os argumentos da insurgência em exame firmaram-se em matéria fático-probatória, logo, para se aferir a relevância do laudo referente ao corpo de delito ou contraditar o consistente depoimento da vítima, ter-se-ia de reexaminar o acervo de provas dos autos, o que é incabível em tema de recurso especial, a teor da Súmula 7/STJ.
2. O decisum exarado pelo Tribunal de origem bem assim os argumentos da insurgência em exame firmaram-se em matéria fático-probatória, logo, para se aferir a relevância do laudo referente ao corpo de delito ou contraditar o consistente depoimento da vítima, ter-se-ia de reexaminar o acervo de provas dos autos, o que é incabível em tema de recurso especial, a teor da Súmula 7/STJ.
3.
A tese esposada pelo Tribunal local consolidou-se em reiterados julgados da
Sexta Turma deste Tribunal - Súmula 83/STJ.
4.
Na via especial, o Superior Tribunal de Justiça não é sucedâneo de instâncias ordinárias, sobretudo quando envolvida, para a resolução da controvérsia (absolvição do agravante acerca da imputação de estupro, nos termos do art. 386 do CPP), a
apreciação do acervo de provas dos autos, o que é incabível em tema de recurso
especial, a teor da Súmula 7/STJ.
5. O agravo regimental não merece prosperar, porquanto as razões reunidas na insurgência são incapazes de infirmar o entendimento assentado na decisão agravada.
6. Agravo regimental improvido.
5. O agravo regimental não merece prosperar, porquanto as razões reunidas na insurgência são incapazes de infirmar o entendimento assentado na decisão agravada.
6. Agravo regimental improvido.
(STJ,
Quinta Turma, AgRg no AREsp 160961/PI, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26/06/2012,
p. DJe 06/08/2012).
Em suma, é perfeitamente possível a
caracterização do crime de estupro sem a realização do exame de corpo de delito
da vítima.
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