► Questão de prova:
No Processo Penal brasileiro, ao réu é concedido o direito de mentir?
A Constituição Federal de 1988 contém um conjunto
de normas dirigentes do Processo Penal. Essas normas visam a assegurar que a persecução
penal em juízo não seja executada de qualquer jeito, mas sim de acordo com um
elenco de direitos e garantias fundamentais que são próprias de um Estado
Constitucional Democrático.
A partir desse conjunto de direitos
fundamentais, a doutrina enfatiza o direito ao silêncio (direito de permanecer
calado), entendido como consequência do brocardo latino nemo tenetur se detegere, que preconiza que ninguém pode ser obrigado
a produzir prova contra si mesmo. Esse mandamento também é conhecido doutrinariamente
como “princípio da não autoincriminação”.
A norma que veda a autoincriminação encontra-se
positivada, no âmbito do direito interno, pelo art. 5º, LXIII, da Constituição:
CF,
art. 5º...........
LXIII
- o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer
calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
No âmbito do direito internacional, a
garantia contra a autoincriminação encontra respaldo jurídico no Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia-Geral
das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966:
PIDCP,
art. 14.........
3.
Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo
menos, as seguintes garantias:
[...]
g)
De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
A Convenção Americana sobre Direitos, adotada
no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em
22 de novembro de 1969, também consagrou a garantia que veda a autoincriminação:
CADH,
Artigo 8º - Garantias judiciais
[...]
2.
Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência,
enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda
pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
[...]
g)
direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se
culpada;
Apesar disso, há notável divergência doutrinária
e jurisprudencial em torno da amplitude do direito ao silêncio. Discute-se, com
efeito, se o direito de o réu não produzir prova contra si próprio estaria (ou
não) a abranger o direito de mentir. Nesse sentido, no plano processual penal, questiona-se:
o acusado teria o direito de mentir? Por outras palavras: a mentira do réu estaria
resguardada pela ampla defesa no processo penal?
A questão resolve-se mediante a observação do
conteúdo do direito ao silêncio no âmbito do princípio do nemo tenetur se detegere. Com efeito, o princípio da não
autoincriminação visa a proteger a conduta meramente passiva do acusado, que,
assim, não pode ser penalizado ou forçado a auxiliar as autoridades, responsáveis
pelo exercício do ius puniendi
estatal, na formulação do acervo probatório apto a forjar um juízo de
culpabilidade que lhe seja desfavorável. Por outras palavras, o réu, uma vez
acusado em processo de natureza criminal, não pode ser sancionado pela sua
indisposição em colaborar com os órgãos do aparelho penal do Estado, que vão ao
encontro da sua condenação. No limite, o princípio do nemo tenetur se detegere ergue-se como uma barreira ao Estado
celerado, que, no passado, não hesitava em valer-se de todo e qualquer
expediente intimidativo, para forcejar por abrir o caminho rumo ao juízo
condenatório (eram os tempos tétricos da confissão como “rainha das provas” no
processo penal). É por esse motivo que são processualmente inadmissíveis quaisquer
medidas de violência física ou moral que sirvam para coagir o
investigado/acusado/réu a cooperar com o procedimento apurativo de infrações
penais. Pelas mesmas razões, o sistema jurídico não pode obrigar a testemunha
compromissada (aquela que prestou o compromisso de dizer a verdade em juízo) a
responder uma pergunta sobre fato que importe - ainda que remota ou
indiretamente - a autoincriminação, tampouco o magistrado pode valorar
negativamente o silêncio do acusado (CPP, art. 186, parágrafo único).
Todavia, é preciso frisar que o direito constitucional
ao silêncio não cria um “direito de mentir” para o réu. Ao proteger os acusados
em geral contra o dever de proceder à autoincriminação, o princípio do nemo tenetur se detegere não está a configurar
um salvo-conduto para que o investigado/acusado/réu possa assumir comportamento
incompatível com outros direitos igualmente constitucionais, com o mesmo status
jurídico de “fundamentais”.
A chave desse entendimento vem da constatação
de que, no Estado Democrático de Direito, não há direitos fundamentais absolutos,
porquanto há múltiplos bens jurídicos relevantes no ordenamento, todos
merecedores de proteção e com idêntica envergadura constitucional. Consequentemente,
os direitos fundamentais são passíveis de restrições.
Com o direito fundamental ao silêncio, no
âmbito do processo penal, não é diferente. Trata-se de um direito fundamental
de defesa, conexo ao princípio nemo
tenetur se detegere, que pode vir a ser restringido diante de outros valores
igualmente importantes em uma visão global do ordenamento jurídico. Assim, a
norma que protege o réu contra o dever de autoincriminação deve compatibilizar-se
com os valores éticos que são prestigiados pela Constituição de 1988, que
assenta os fundamentos da República Federativa do Brasil na soberania, na
cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa e no pluralismo político (art. 1º), mas não os assenta na
mentira, na falsidade, no ardil, na adulteração. O próprio texto constitucional,
ao disciplinar a comunicação social no País, cita expressamente a necessidade
de “respeito aos valores éticos e sociais” (CF, art. 221, IV). Desse modo, o princípio
do nemo tenetur se detegere não é o
único a reger o comportamento do acusado no processo-crime, que fica submetido,
nessa perspectiva, a uma vasta gama principiológica colidente com a admissibilidade
de um torpe e antiético “direito de mentir” no processo penal.
Escuda-se tal posição na premissa de que o
ordenamento jurídico contempla normas jurídicas (princípios e regras) que tutelam
os acusados contra a prática de arbitrariedades e abusos das agências penais do
Estado. Busca-se a punição justa, que é aquela que se alcança com o respeito às
“regras do jogo”, em homenagem ao sistema de direitos e garantias
constitucionais que está na raiz de toda a vida constitucional dos Estados de
Direito Democráticos – conclusão aplicável perfeitamente ao Brasil, em face do
caráter notadamente garantista com que se apresenta a Constituição de 1988.
Além disso, cumpre salientar que o ordenamento
jurídico pátrio abebera-se na Teoria Geral do Processo, a qual, há séculos,
está a admoestar os operadores do direito quanto à impossibilidade de
permitir-se que indivíduos venham a beneficiar-se da má-fé, da própria torpeza.
Isso porque o devido processo legal também deve orientar-se pela boa-fé, sob
pena de violar-se o brocardo jurídico clássico segundo o qual nemo turpitudinem suam allegare potest,
isto é, ninguém pode alegar a própria torpeza para se beneficiar.
No plano específico do subsistema jurídico
criminal, convém ainda recordar que a mentira é penalmente censurada em
diferentes tipos penais, a exemplo dos crimes de falso testemunho, denunciação
caluniosa, calúnia, autoacusação falsa, a exceção da verdade para afastar o animus diffamandi dos fatos relacionados
ao exercício da função pública etc. Todas essas observações estão a demonstrar que
o Direito censura condutas imorais e antiéticas, de que é exemplo cabal a
mentira. Sendo assim, é induvidoso que a admissão de um “direito de mentir” no
processo penal, em favor do réu, estaria a vulnerar o conteúdo moral do direito,
bem como os valores éticos que atravessam o ordenamento jurídico brasileiro
como um todo.
Forte nesses argumentos, a jurisprudência do
STF orienta-se no sentido de que o princípio constitucional da autodefesa (CF, art. 5º,
inciso LXIII) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante
autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo,
portanto, típica a conduta praticada pelo agente (CP, art. 307). Vejamos, pois,
o acórdão lavrado quando do julgamento do RE 640139/DF (com repercussão geral
reconhecida):
CONSTITUCIONAL.
PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL. ATRIBUIÇÃO
DE FALSA IDENTIDADE PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA.
ARTIGO 5º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL.
CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE NO SENTIDO DA IMPOSSIBILIDADE.
TIPICIDADE DA CONDUTA CONFIGURADA. O princípio constitucional da autodefesa
(art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa
identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus
antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307
do CP). O tema possui densidade constitucional e extrapola os limites
subjetivos das partes.
(STF,
Pleno, RE 640139 RG/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 22/09/2011, p. DJe 14/10/2011)
O mesmo raciocínio é esposado pelo STJ,
consoante se extrai do enunciado 522 da sua súmula de jurisprudência (Terceira
Seção, j. 25/03/2015, p. DJe 06/04/2015):
Conclui-se, então, que a Constituição de 1988,
ao prestigiar o direito ao silêncio como parte do direito à ampla defesa, não
instituiu um “direito de mentir” do réu. O princípio do nemo tenetur se detegere realiza-se tão somente na autodefesa
passiva, isto é, na ausência de um dever processual imposto aos acusados em
geral, no sentido de confessar a prática delitiva ou de colaborar ativamente com
as agências estatais na elucidação dos fatos incriminadores.
PS: A resposta acima foi escrita em coautoria
com a amiga e leitora do blogue Alice Cruz.
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