1 – Questão do leitor:
Se, após a contestação, o réu, percebendo que será
vencido no processo, decide vender a terceiro o veículo automotor cuja
titularidade discute com o autor, os efeitos da sentença que vier a ser
proferida alcançarão o terceiro adquirente?
Na sistemática do CPC/2015, o art. 336 do código
impõe ao réu o ônus processual de apresentar toda a matéria de defesa na
contestação, sob pena de operar-se a preclusão. Trata-se da chamada regra da eventualidade ou da concentração
da defesa. Vejamos o dispositivo:
Art.
336. Incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa,
expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e
especificando as provas que pretende produzir.
A regra da eventualidade decorre da
necessidade de estabilização da demanda. Diz-se “estável” a demanda que atinge
um estágio processual que não mais permite a inclusão de alegações novas. A
intenção desse mecanismo é clara: evitar a insegurança, a garantir um mínimo de
previsibilidade quanto aos elementos fundamentais da demanda suscetível de
apreciação pelo Poder Judiciário.
Apesar disso, o próprio CPC excepciona a regra
da concentração de toda a matéria defensiva na contestação, uma vez que
autoriza que determinadas defesas possam vir a ser alegadas após a contestação.
É o que se verifica da leitura do art. 342 do CPC:
Art.
342. Depois da contestação, só é lícito ao réu deduzir novas alegações
quando:
III
- por expressa autorização legal, puderem ser formuladas em qualquer tempo e
grau de jurisdição.
A flexibilização da regra da eventualidade,
cometida pelo próprio legislador no art. 342, presta-se a exemplificar que, não
obstante desejável, a estabilização da demanda não é um postulado normativo
absoluto. Com efeito, mesmo a eficácia preclusiva da regra da eventualidade comporta
alteração.
Esse mesmo raciocínio, que flexibiliza a
regra da eventualidade - e, consequentemente, a estabilização da demanda -,
vale para a alienação da coisa ou do direito litigioso. Isso porque o sistema da
estabilização da demanda não poderia bloquear o tráfico jurídico. Caso
contrário, todo bem ou direito que tivesse sua titularidade discutida em juízo
estaria, automaticamente, fora do comércio jurídico, o que engessaria interesses
econômicos legítimos (alienação de bens e/ou direitos) das partes ante a
simples litigiosidade deflagrada pela litispendência, a partir da propositura
da ação (para o autor) e da citação (para o réu), conforme prevê o art. 312 c/c
art. 240 do CPC/2015.
Assim, o sistema de estabilização da demanda
do Código de Processo Civil brasileiro não impede a possibilidade de a parte
alienar a coisa ou o direito litigioso, que é o bem da vida submetido à litispendência, isto é, à disputa nos
autos de um processo em curso.
A esse respeito, vejamos o art. 109 do CPC:
Art.
109. A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a
título particular, não altera a legitimidade das partes.
§
1º O adquirente ou cessionário não poderá ingressar em juízo, sucedendo o
alienante ou cedente, sem que o consinta a parte contrária.
§
2º O adquirente ou cessionário poderá intervir no processo como assistente
litisconsorcial do alienante ou cedente.
§
3º Estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias
ao adquirente ou cessionário.
O art. 109 do CPC pode ensejar muitas
consequências processuais relevantes. Cito algumas delas:
a) perpetuação da legitimidade ad
causam das partes, porém com mudança de tipo (como na hipótese de
substituição processual, caso em que o alienante/cedente passa a substituir,
como legitimado extraordinário, o adquirente/cessionário);
b) possibilidade de sucessão processual (caso em que o adquirente/cessionário entra
como parte no lugar do alienante/cedente);
c) formação de assistência litisconsorcial (quando o adquirente/cessionário
intervém no processo para auxiliar o alienante/cedente, após a recusa da parte
contrária em consentir com a sucessão processual no polo passivo da demanda);
d) formação de assistência simples (quando, após a parte contrária consentir com
a sucessão processual, o alienante/cedente decide permanecer no processo, para auxiliar
o adquirente/cessionário a vencer a demanda);
e)
extensão da eficácia da
coisa julgada a terceiros.
É precisamente essa última consequência da
alienação da coisa ou do direito litigioso que constitui a chave para a
resolução da questão.
Nesse sentido, cabe ponderar que, de
ordinário, a eficácia subjetiva da coisa julgada é limita, adstrita às partes
do processo, nos moldes do art. 506 do CPC:
Art.
506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não
prejudicando terceiros.
Porém, quando ocorre a alienação da coisa ou
do direito litigioso, o código permite – em caráter excepcional - que a coisa
julgada atinja o terceiro adquirente/cessionário (CPC, art. 109, § 3º).
A razão dessa norma encontra-se na
circunstância de o réu original da demanda (convertido em alienante/cedente)
permanecer no processo na condição de legitimado extraordinário (substituto
processual) do adquirente/cessionário. Logo, em demandas nas quais haja a
participação de substituto processual num dos polos, o sistema do código
autoriza a que a eficácia subjetiva da coisa julgada estenda-se excepcionalmente,
para atingir a esfera jurídica do terceiro substituído.
Portanto, havendo litispendência, é lícito ao
réu promover a alienação do direito ou da coisa litigiosa (um veículo
automotor, p. ex.). Contudo, ao fazê-lo, o terceiro adquirente desse veículo
ficará submetido aos efeitos da sentença (coisa julgada) proferida entre as
partes originárias, de conformidade com o teor do § 3º do art. 109 do CPC.
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