Assistindo atualmente: DVD "A Russian Night: Rachmaninov, Tchaikovsky, Stravinsky", concerto gravado em 2008 no Festival de Lucerna (Suíça), com a regência de Claudio Abbado e participação de Hèléne Grimaud (solista).
O antigo Código de Processo Civil brasileiro, de 1973,
editado no tempo autoritário da ditadura militar, evidentemente não
se preocupava com os direitos fundamentais. Por isso, seu texto principiava
diretamente com as normas relativas à jurisdição e à ação. O projeto original do CPC-1973 não tecia
considerações sistemáticas sobre a relação entre Constituição e processo, ou entre direitos fundamentais e processo, até porque, sob o espectro de um Estado ditatorial de exceção, o Direito
Constitucional, como o Estado de Direito, vale muito pouco.
A mudar por completo essa perspectiva, o Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105/15) nasce como o primeiro
código brasileiro integralmente elaborado e aprovado sob a égide da Constituição de 1988, que elegeu o modelo de Estado
Democrático de Direito (art. 1º). Assim, o CPC-2015,
coerente com esse novo paradigma de Estado Constitucional, abre o texto codificado com um
corpo de dispositivos (arts. 1º a 12) que preveem normas de direitos fundamentais aplicadas ao
Processo Civil.
Boa parte dessas normas decorre ora da
reprodução quase literal de um comando constitucional (CPC, art. 3º), ora da
criação de regras voltadas à concretização de direitos
fundamentais constantes do catálogo do art. 5º da CF/88.
De modo sucinto, dedicar-me-ei a comentar as normas fundamentais do Processo Civil no novo Código, que são aquelas que vão do art. 1º ao art. 12, a relacioná-las às normas constitucionais de direitos fundamentais à luz da Constituição de 1988.
CPC, art. 1º O processo civil será ordenado,
disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais
estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se
as disposições deste Código.
► CPC-15,
art. 1º: o texto do artigo explicita claramente que todo o Direito Processual
Civil deve submeter-se a uma
indispensável filtragem constitucional. Essa filtragem da legislação subalterna
remete a uma das características mais importantes do pensamento jurídico
contemporâneo (neoconstitucionalismo), a saber, a valorização da força
normativa da Constituição, que não pode servir apenas como um conjunto de
promessas grandiloquentes, mas deve orientar não só a elaboração das leis como
toda a atividade interpretativa (ao intérprete não é dado decidir “conforme sua
consciência” ou com base no seu “livre convencimento motivado”; sob o império
da Constituição, o convencimento não é livre, mas sim condicionado
aprioristicamente pelas normas constitucionais).
CPC, art. 2º: O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.
► CPC-15, art. 2º: trata-se de norma fundamental do processo que está
a consagrar o chamado “princípio da demanda”. Esse princípio impõe às partes o
dever de provocar a atuação do Estado-juiz, em face da inércia que caracteriza
a jurisdição (o Poder Judiciário não tem poder de iniciativa, não pode começar
uma demanda, ainda que o direito seja indisponível). Somente quando provocado é
que o Estado-juiz intervirá para o fim de dizer o direito, aplicando-o ao caso
concreto. Pela mesma razão de inércia jurisdicional é que o julgador deve ficar
adstrito a julgar nos limites do pedido (elemento objetivo da demanda). Apesar
disso, a lei ressalva que, uma vez provocado, o Poder Judiciário está
autorizado a impulsionar o processo (impulso oficial), a praticar os atos
processuais necessários que contribuam para a resolução do mérito da demanda,
de maneira a garantir às partes o acesso a uma ordem jurídica efetiva, que é
aquela que não demora injustificadamente, mas que produz uma decisão judicial
em tempo razoável.
CF, art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
CF, art. 5º: LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação.
CPC, art. 3º: Não se excluirá da apreciação
jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 3º A
conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos
deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
► CPC-15,
art. 3º: o caput do dispositivo é quase
que uma reprodução literal do princípio constitucional da inafastabilidade de
jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), que, de acordo com uma leitura doutrinária
moderna, não se satisfaz apenas com a garantia formal de acesso ao Poder
Judiciário, mas incorpora uma dimensão material, no que resulta que a
inafastabilidade garante o acesso à ordem jurídica justa, considerando-se justa
a ordem jurídica que assegura ao jurisdicionado uma prestação jurisdicional
efetiva, adequada e, sobretudo, em tempo razoável (CF, art. 5º, LXXVIII).
CPC, art. 4º: As partes têm o direito de obter em
prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.
► CPC-15,
art. 4º: o dispositivo prevê o direito
fundamental à razoável duração do processo associado a outro princípio
processual, qual seja, o princípio da primazia da decisão de mérito (para uma
análise mais detalhada desse princípio, recomendo outro texto no blogue: http://gertconcursos.blogspot.com.br/2016/02/rt-comenta-processo-civil-principio-da.html).
CF, art. 5º, LIV - ninguém será privado da liberdade
ou de seus bens sem o devido processo legal;
CPC, art. 5º Aquele que de qualquer forma
participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
► CPC-15,
art. 5º: estabelece o princípio da boa-fé (cláusula geral da boa-fé processual),
aplicável a todos os sujeitos participantes do processo (Juiz, Ministério
Público, partes, representantes das partes, incluindo a Defensoria Pública,
terceiros intervenientes etc.). Significa dizer que todo e qualquer sujeito,
dentro do processo, deve comportar-se de maneira honesta, proba, ética.
Consequentemente, a conduta de má-fé no processo é objeto de censura, devendo,
à luz do princípio da boa-fé, ser considerada ilícita. O fundamento
constitucional da boa-fé objetiva na lei decorre do raciocínio seguinte: não
pode haver devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), quando as partes
litigantes agem no processo com abuso do seu direito, o que é o mesmo que não colaborar
com a prestação jurisdicional.
► CPC-15,
art. 6º: outro dispositivo que visa a dar um sentido ético ao processo. Posto
que não se possa exigir que partes litigantes venham a transigir quanto aos
seus direitos respectivos, a lei processual civil fixa o princípio da
cooperação processual, no sentido de que todos os sujeitos do processo devem
cooperar entre si, de boa-fé, para a formação da decisão de mérito que satisfaz
o acesso a uma ordem jurídica justa (CF, art. 5º, XXXV), em tempo razoável (CF,
art. 5º, LXXVIII), a consubstanciar o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV).
Na prática, o dever de cooperação materializa-se para o juiz (p. ex.: ao
determinar a emenda da petição inicial, o juiz esclarece ao demandante aquilo
que está a merecer reparo) como para as partes (um simples comparecimento
injustificado em juízo, para audiência previamente designada e da qual todos
tenham sido cientificados em tempo hábil, já está a revelar uma falta de
cooperação).
CF, art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
CPC, art. 7º: É assegurada às partes paridade de
tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos
meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais,
competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
► CPC-15,
art. 7º: é impossível pensar na garantia do devido processo legal (CF, art. 5º,
LV) sem que haja igualdade entre as partes no processo. A isonomia processual
pretendida operacionaliza-se mediante a garantia de paridade de armas, isto é, durante todo o curso do procedimento,
cabe ao juiz assegurar às partes um tratamento igualitário/paritário (mesmas
faculdades, mesmos poderes, mesmos prazos, mesmas oportunidades de falar nos
autos, mesmos deveres, mesmos ônus). Nesse sentido, pode-se corretamente afirmar
que a paridade de armas no processo decorre diretamente do princípio
constitucional da igualdade (CF, art. 5º, I).
CF, art. 1º A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
CF, art. 93, IX: todos os julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias
partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação
do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público
à informação;
LINDB, art. 5º Na aplicação da lei, o
juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum.
CPC, art. 8º: Ao aplicar o ordenamento jurídico,
o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e
promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a
razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
► CPC-15,
art. 8º: eis um dispositivo que consagra uma cláusula aberta de caráter
hermenêutico no processo civil, em muito influenciada pela Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro - LINDB (art. 5º). Mas essa cláusula vem
impregnada de importantes diretrizes constitucionais. A primeira resulta do
próprio modelo de Estado de Direito, que impede decisões baseadas no puro
arbítrio dos juízes, decisões que, portanto, não se harmonizem com a
proporcionalidade, com a razoabilidade, com a legalidade. A exigência de
publicidade é outra garantia do Estado de Direito contra condutas abusivas, na
medida em que permite o controle do fundamento das decisões judiciais (CF, art.
93, IX). Finalmente, temos o anteparo do princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana (CF, art. 1º, III), já que não é possível conceber o acesso à
ordem jurídica justa sem que haja o respeito aos direitos fundamentais no curso
do processo.
CF, art. 5º, LV - aos litigantes, em processo judicial
ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das
partes sem que ela seja previamente ouvida.
II - às
hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III;
III - à
decisão prevista no art. 701.
► CPC-15,
art. 9º: o dispositivo consagra uma regra que concretiza o princípio
constitucional do contraditório (CF, art. 5º, LV). Significa dizer que, no
curso do processo, é imperioso observar o direito de a parte ser ouvida, pois
só assim se estará a oportunizar a alguém a produção de sua ampla defesa. Em
outras palavras, os direitos das partes não podem ser atingidos sem que elas
tenham tido a oportunidade de se manifestar nos autos acerca deles. É como se o
legislador quisesse estampar nesse art. 9º, de maneira inequívoca, que a
participação das partes na formação do contraditório deve ser ativa em todo os
atos do processo, a afastar, desse modo, a ideia de um processo unilateral, no
qual a decisão seja produto da atuação de uma única parte. Tampouco se quer,
pela letra desse dispositivo, permitir que o contraditório configure um
princípio puramente formal, mas sim que decorra da oportunidade concreta de a
parte deduzir suas razões no curso do procedimento, a colaborar para a
construção do provimento final. Obviamente, como os direitos fundamentais não
são absolutos, os inc. I a III do parágrafo único do art. 9º estão a
excepcionar a garantia do contraditório prévio. Mas a exceção não anula o
princípio, visto que o contraditório fica postergado (em um momento posterior,
garantir-se-á à parte a oportunidade de se manifestar), razão pela qual a
garantia do devido processo legal fica preservada.
CPC, art. 10. O juiz não pode decidir, em grau
algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha
dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria
sobre a qual deva decidir de ofício.
CPC, art. 493. Se, depois da propositura da
ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no
julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a
requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.
Parágrafo
único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre
ele antes de decidir.
► CPC-15,
art. 10: outro dispositivo que denota a influência do princípio constitucional
do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV) na formação do devido
processo legal. Quase como uma extensão das razões norteadoras do art. 9º, o
art. 10 cuidou de proibir o “efeito surpresa” nas decisões judiciais. Com
efeito, o que o legislador deseja é impedir que qualquer das partes venha a ser
surpreendida com uma decisão que, ao tratar do seu respectivo direito, tenha se
fundamentado em ponto a respeito do qual não houve debate e, portanto, não
houve procedimento em contraditório e a produção da ampla defesa. Por exemplo:
se surgir um “fato novo” no curso da instrução, como o juiz deve proceder? À
luz do art. 10, a postura do magistrado deve, em respeito ao contraditório,
ouvir as partes sobre o fato novo, antes de tomar qualquer decisão a respeito
(CPC, art. 493, parágrafo único). Esse comando do art. 10 é tão forte que nem
mesmo a matéria cognoscível de ofício é capaz de excepcioná-lo; na mesma toada,
a proibição do “efeito-surpresa” (fundamento a respeito do qual não se tenha
dado às partes oportunidade de se manifestar) vale para todos os graus de
jurisdição.
CF, art. 93, IX: todos os julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias
partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação
do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse
público à informação;
Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade.
Parágrafo
único. Nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada a presença
somente das partes, de seus advogados, de defensores públicos ou do Ministério
Público.
► CPC-15,
art. 11: dispositivo que concretiza, no corpo do código, o princípio
constitucional da publicidade e o dever de fundamentação (motivação) das
decisões judiciais (CF, art. 93, IX). A lei processual civil, tal como a
Constituição, comina de nulidade a falta de publicidade e motivação, porquanto
esses elementos consubstanciam a garantia do devido processo legal (CF, art.
5º, LV), já que não se pode conceber a ampla defesa dissociada da exigência de
imparcialidade e independência do julgador. Pelos deveres correlatos de
publicidade e motivação das decisões judiciais, garante-se à sociedade a
confiança nos órgãos do Poder Judiciário, que assim submetem suas decisões ao
crivo dos jurisdicionados (no sentido mais comezinho de respeito à ordem
jurídica e à Constituição, afastada a ideia do juiz “livre” para decidir
“conforme a sua consciência”). A imposição aos juízes do dever de fundamentarem
suas decisões também vai ao encontro do princípio constitucional do
contraditório, uma vez que permite o controle desses fundamentos, que não podem
ser “fundamentos-surpresa”, mas devem ter sido extraídos da efetiva
contribuição das partes no curso do procedimento. Por essas mesmas razões, são
inválidas as decisões judiciais sem fundamentação ou com fundamentação deficiente.
Art. 12. Os juízes e os tribunais atenderão,
preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou
acórdão.
§ 1º A lista de processos aptos a julgamento
deverá estar permanentemente à disposição para consulta pública em cartório e
na rede mundial de computadores.
I - as
sentenças proferidas em audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência
liminar do pedido;
II - o
julgamento de processos em bloco para aplicação de tese jurídica firmada em
julgamento de casos repetitivos;
§ 3º Após
elaboração de lista própria, respeitar-se-á a ordem cronológica das conclusões
entre as preferências legais.
§ 4º Após
a inclusão do processo na lista de que trata o § 1º, o requerimento formulado
pela parte não altera a ordem cronológica para a decisão, exceto quando
implicar a reabertura da instrução ou a conversão do julgamento em diligência.
§ 5º Decidido
o requerimento previsto no § 4º, o processo retornará à mesma posição em que
anteriormente se encontrava na lista.
§ 6º Ocupará
o primeiro lugar na lista prevista no § 1º ou, conforme o caso, no § 3º, o
processo que:
I - tiver sua
sentença ou acórdão anulado, salvo quando houver necessidade de realização de
diligência ou de complementação da instrução;
II - se
enquadrar na hipótese do art. 1.040, inciso II.
► CPC-15,
art. 12: o caput do dispositivo já
carrega a alteração promovida pela Lei 13.256/16, que substituiu a ideia de
obrigatoriedade da redação original (“deverão obedecer”) pela ideia de sugestão
(“preferencialmente”) de obediência à ordem cronológica nos julgamentos. O art.
12 é outra das normas subalternas que visam a criar mecanismos processuais que
sejam aptos a preservar o direito fundamental à razoável duração do processo
(CF, art. 5º, LXXVIII). Nota-se nos parágrafos desse dispositivo uma
preocupação de caráter estritamente pragmático com a ordem de julgamento dos
processos pelos juízes e tribunais, preferindo-se o critério cronológico ante a
constatação óbvia de que os processos que estão há muito tempo a aguardar uma
resolução colocam em risco a garantia da inafastabilidade de jurisdição (CF,
art. 5º, XXXV), aqui concebido como o direito de acesso à ordem jurídica justa,
que é aquela capaz de prover a tutela jurisdicional efetiva e em tempo razoável.
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