Professor, o Supremo Tribunal Federal pode declarar, de ofício, a inconstitucionalidade da norma estadual que tenha sido produzida em desconformidade com o enunciado de súmula?
Como o Brasil conferiu ao Poder Judiciário a
prioridade no exercício do controle de constitucionalidade, é pacífico na
doutrina que a Constituição de 1988 adotou um sistema jurisdicional. Tal sistema,
contudo, é exercido de forma mista, na medida em que comporta duplamente
tanto o controle difuso, de inspiração estadunidense, quando o controle
concentrado, de inspiração austríaca.
O controle difuso é aquele que poder ser
exercido por qualquer juiz ou tribunal no exercício da jurisdição (daí haver
doutrina que o denomina de controle aberto). Nessa hipótese, tem-se um
processo constitucional subjetivo, pois as partes estão a litigar em juízo pelo
reconhecimento de algum direito. Sua finalidade principal, portanto, é a
defesa de direitos, motivo pelo qual se formula um pedido (objeto da demanda).
Para avaliar a procedência ou improcedência do pedido, o
julgador pode aferir incidentalmente (incidenter tantum) a
constitucionalidade de determinado ato normativo. Ou seja, a verificação
da compatibilidade do ato do Poder Público com a Constituição far-se-á na
fundamentação da decisão de uma demanda cujo objeto principal é a resolução da
controvérsia concreta (e não a declaração de inconstitucionalidade).
Por isso, em face de o controle difuso
ter como uma de suas características a aferição meramente incidental da
constitucionalidade, a compor a fundamentação da decisão, prevalece no STF
que ele pode ser feito até mesmo de ofício, senão vejamos (grifos meus):
RECURSO EXTRAORDINÁRIO: INTERPOSIÇÃO DE DECISÃO DO STJ EM RECURSO ESPECIAL: INADMISSIBILIDADE, se a questão constitucional de que se ocupou o
acórdão recorrido ja fora suscitada e resolvida na decisão de segundo grau e,
ademais, constitui fundamento suficiente da decisão da causa.
1.
Do sistema constitucional vigente, que prevê o cabimento simultâneo de recurso
extraordinário e de recurso especial contra o mesmo acórdão dos tribunais de
segundo grau, decorre que da decisão do STJ, no recurso especial, só se
admitira recurso extraordinário se a questão constitucional objeto do último
for diversa da que já tiver sido resolvida pela instância ordinária.
2. Não
se contesta que, no sistema difuso de controle de
constitucionalidade, o STJ, a exemplo de todos os demais órgãos jurisdicionais
de qualquer instância, tenha o poder de declarar incidentemente a
inconstitucionalidade da lei, mesmo de oficio; o que não e dado aquela
Corte, em recurso especial, e rever a decisão da mesma questão constitucional
do tribunal inferior; se o faz, de duas uma: ou usurpa a competência do STF, se
interposto paralelamente o extraordinário ou, caso contrario, ressuscita
matéria preclusa.
3.
Ademais, na hipótese, que é a do caso - em que a solução da questão constitucional,
na instância ordinária, constitui fundamento bastante da decisão da causa e não
foi impugnada mediante recurso extraordinário, antes que a preclusão da
matéria, é a coisa julgada que inibe o conhecimento do recurso especial.
(STF,
Tribunal Pleno, AI 145.589/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 02/09/1993, p.
DJ 24/06/1994).
COMPETÊNCIA
– MANDADO DE SEGURANÇA – ATO DE TURMA RECURSAL. O julgamento do mandado de
segurança contra ato de turma recursal cabe à própria turma, não havendo campo
para atuação quer de tribunal de justiça, quer do Superior Tribunal de Justiça.
Precedente: Questão de Ordem no Mandado de Segurança nº 24.691/MG, Plenário, 4
de dezembro de 2003, redator do acórdão Ministro Sepúlveda
Pertence. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE – SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA. Todo e qualquer órgão investido do ofício judicante tem
competência para proceder ao controle difuso de constitucionalidade.
Por isso, cumpre ao Superior Tribunal de Justiça, ultrapassada a barreira de
conhecimento do especial, apreciar a causa e, surgindo articulação de
inconstitucionalidade de ato normativo envolvido na espécie, exercer, provocado
ou não, o controle difuso de constitucionalidade. Considerações. AGRAVO
REGIMENTAL – JULGAMENTO SUMÁRIO. A circunstância de o agravo regimental ser
examinado de forma sumária é conducente a assentar-se o provimento quando não
alcançada a unanimidade no Colegiado – salutar doutrina trazida do Superior
Tribunal de Justiça pelo saudoso Ministro Menezes Direito e adotada pelo
relator.
(STF,
Tribunal Pleno, AI 666.523 AgR/BA, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j.
26/10/2010, p. DJe 02/12/2010).
Porém, esse raciocínio não se aplica ao controle
concentrado com finalidade abstrata, que é aquele exercido com
exclusividade por um órgão jurisdicional (ou um grupo deles). No Brasil,
compete ao STF exercer precipuamente esse controle (CF, art. 102, I, a).
A peculiaridade dessa espécie de fiscalização é o seu modus operandi:
ele é exercido em tese, independentemente de quaisquer casos
concretos. Forma-se, assim, um processo constitucional objetivo, que
se volta à defesa da ordem jurídica objetiva, isto é, da supremacia
formal do texto constitucional (e não de direitos subjetivos pelos quais particulares estejam a litigar no caso concreto, tal como sucede em sede de controle difuso). Logo, no controle concentrado-abstrato, o objeto da ação é
a aferição da compatibilidade do objeto (ato normativo do Poder
Público) com o parâmetro (a Constituição).
Nesse prisma, o leitor deve notar que, quando se fala em controle
concentrado, está-se a pressupor que o Supremo Tribunal Federal não poderá agir de
ofício, para declarar a inconstitucionalidade de lei. Na hipótese da
fiscalização em tese, como objeto principal da ação, é preciso
que o órgão jurisdicional seja provocado por algum dos atores legitimados à
propositura da ADI, de acordo com o rol do art. 103 da CF/88 (reproduzido pelo legislador subalterno no art. 2º da Lei 9.868/99):
Art.
103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória
de constitucionalidade:
Esclarecidas essas premissas teóricas, é preciso assinalar ainda que a pergunta do leitor está a comportar um equívoco quanto ao parâmetro (a norma de referência a partir da qual é efetuado o controle). Sim, pois,
quando o STF atua no controle concentrado-abstrato, fá-lo para declarar a
inconstitucionalidade de lei ou outro ato normativo (objeto), tendo por parâmetro o texto da
Constituição - e não dos enunciados sumulados. Por mais que sejam
vinculantes, os enunciados não equivalem a normas constitucionais; são
apenas entendimentos jurisprudenciais que se consolidaram após aplicação reiterada pela
Corte. Por conseguinte, eles não servem de parâmetro para o controle de constitucionalidade.
Logo, na hipótese, a declaração de inconstitucionalidade em abstrato de norma estadual pelo STF é possível, desde que: (i) o tribunal tenha sido provocado pela via de ação (até porque a necessidade de provocação é um das características que distinguem a atividade jurisdicional da administrativa, já que esta última pode realizar-se de ofício) e (ii) com base em parâmetro constitucional - nunca jurisprudencial (enunciado de súmula). A defesa da jurisprudência consolidada é feita pela via da reclamação (CF/88, art. 102, I, l, c/c art. 988 e ss. do CPC-2015).
Logo, na hipótese, a declaração de inconstitucionalidade em abstrato de norma estadual pelo STF é possível, desde que: (i) o tribunal tenha sido provocado pela via de ação (até porque a necessidade de provocação é um das características que distinguem a atividade jurisdicional da administrativa, já que esta última pode realizar-se de ofício) e (ii) com base em parâmetro constitucional - nunca jurisprudencial (enunciado de súmula). A defesa da jurisprudência consolidada é feita pela via da reclamação (CF/88, art. 102, I, l, c/c art. 988 e ss. do CPC-2015).
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