1 - Questão:
A técnica da citação por hora certa, prevista no Código de Processo Civil, é aplicável ao Processo Penal? Como funciona essa modalidade de citação? Ela é constitucional diante dos princípios do contraditório e da ampla defesa?
A técnica processual civil conhece tanto a
citação real (CPC, art. 251) quanto a citação ficta (CPC, art. 252). Na citação
real, o réu é efetivamente citado pelo oficial de justiça. Basicamente, ela
ocorre quando o meirinho procura o citando e, onde o encontra, lê o teor do
mandado e entrega-lhe a contrafé (que pode ser aceita ou não), momento em que
se considera realizada a a citação real. Contudo, salta aos olhos na prática
forense que não é todo dia que o réu será devidamente localizado pelo oficial.
Quando isso acontece, a citação real torna-se inviável; mas, como o processo
necessita prosseguir, a lei prevê uma modalidade de citação ficta (presumida)
para tais hipóteses. Trata-se precisamente da citação por hora certa, que tem o
efeito de presumir que o réu foi cientificado dos termos da demanda.
E quando se aplica a citação por hora certa
no Processo Civil?
O CPC de 2015, no seu art. 252, está a exigir
o adimplemento de requisito duplo:
(1) o oficial de justiça deve ter procurado o
citando em seu domicílio ou residência sem o encontrar (requisito objetivo); e
(2) o oficial de justiça deve suspeitar de
ocultação do réu (requisito subjetivo), isto é, o réu ardilosamente evita o
servidor público como uma maneira proposital de frustrar a citação real, em
ordem a não tomar conhecimento da demanda proposta.
Uma vez presentes esses dois requisitos, a
lei autoriza o oficial de justiça a proceder à citação ficta por hora certa.
Para isso, o meirinho deve:
(i) intimar qualquer pessoa da família ou, em
sua falta, qualquer vizinho de que, no dia útil imediato, voltará a fim de
efetuar a citação, na hora que designar;
(ii) no dia e na hora designados, o oficial
de justiça, independentemente de novo despacho, comparecerá ao domicílio ou à
residência do citando a fim de realizar a diligência;
(iii) se o citando não estiver presente (a
ideia era que, com a hora previamente agendada, ele aguardasse a chegada do
oficial no horário marcado), o oficial de justiça procurará informar-se das
razões da ausência, dando por feita a citação, ainda que o citando se tenha
ocultado em outra comarca, seção ou subseção judiciárias;
(iv) a citação com hora certa será efetivada
mesmo que a pessoa da família ou o vizinho que houver sido intimado esteja
ausente, ou se, embora presente, a pessoa da família ou o vizinho se recusar a
receber o mandado;
(v) o oficial de justiça então elabora uma
certidão da ocorrência da citação por hora certa e deixa a contrafé com
qualquer pessoa da família ou vizinho, conforme o caso, declarando-lhe o nome;
(vi) na certidão da ocorrência, o oficial de
justiça fará constar do mandado a advertência de que será nomeado curador
especial se houver revelia.
Eis o funcionamento da citação fica (por hora
certa) no Processo Civil. A questão que surge agora é: ela pode ser aplicada
também no Processo Penal?
Do ponto de vista estritamente legal, a
resposta a essa pergunta foi dada pela Lei 11.719/2008, a qual, reformando o
procedimento comum do Código de Processo Penal, fez menção expressa à
admissibilidade da citação por hora certa, conforme o art. 362 do CPP:
Art.
362. Verificando que o réu se oculta para não ser citado, o oficial de justiça
certificará a ocorrência e procederá à citação com hora certa, na forma
estabelecida nos arts. 227 a 229 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 -
Código de Processo Civil.
Parágrafo
único. Completada a citação com hora certa, se o acusado não comparecer, ser-lhe-á
nomeado defensor dativo.
Evidentemente, a remissão a ser feita agora é
aos dispositivos do CPC de 2015, ora vigente.
Mas a questão não se esgotou aí, pois a constitucionalidade
da citação por hora certa no Processo Penal foi objeto de questionamento no RE
635145/RS.
Nesse recurso, que teve repercussão geral
reconhecida, contestou-se a aplicabilidade do artigo 362 do CPP frente aos princípios
constitucionais do contraditório e da ampla defesa, previstos em normas de
direito interno (Constituição Federal de 1988) e internacional (Convenção Americana de Direito Humanos). Vejamo-las:
CF,
art. 5º, LV: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios
e recursos a ela inerentes.
CADH,
artigo
8º - Garantias judiciais
(...)
2. Toda pessoa acusada de um
delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente
comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena
igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(...)
b) comunicação prévia e
pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
De acordo com a tese sustentada pelo
recorrente, a citação por hora certa estaria a acarretar o cerceamento do
direito de defesa no Processo Penal, já que o acusado teria, à luz das normas
supracitadas, o direito de ser informado pessoalmente da acusação imputada.
Entretanto, essa tese não prosperou no
Supremo Tribunal Federal.
O Plenário da Corte, ao apreciar o RE
635145/RS (j. 01/08/2016, acórdão pendente de publicação no DJe), considerou
plenamente constitucional o procedimento da citação por hora certa, previsto no
art. 362 do CPP. Para o STF, a citação ficta, quando aplicada ao Processo
Penal, não compromete o direito do acusado à ampla defesa.
No seu voto, o relator argumentou que a ampla
defesa constitui o resultado da combinação da defesa técnica (indeclinável,
inalienável, pela qual o réu sempre receberá assistência jurídica de um
defensor patrocinado pelo Estado, sob pena de nulidade total do processo) com a
autodefesa (garantia de o acusado fazer-se presente no julgamento). Neste
último caso, a autodefesa asseguraria não só a garantia de comparecimento, mas
também a garantia de não comparecimento. Logo, o réu, ao ocultar-se da citação,
estaria a exercer o seu direito de não comparecer. Essa sua ausência poderia
motivar-se pelo do réu de exercitar o seu privilégio contra a autoincriminação
(Nemo tenetur se detegere), nucleado
com a autodefesa. No entanto, ela não poderia servir para paralisar a marcha
processual, sob pena de premiar a atuação ilícita do réu que, de maneira
deliberada, oculta-se para não tomar conhecimento da acusação formulada contra ele.
De fato, penso que a tese recursal, caso
acolhida, terminaria por beneficiar o mau comportamento dos acusados no
processo, que agem com o propósito torpe de tumultuá-lo. Vale sublinhar, na
esteira da minha lição inicial sobre a aplicação do art. 252 do CPC-2015, que a
citação por hora certa é medida excepcional, cabível apenas quando frustradas
tentativas prévias de citação real, paralelamente à suspeita de que o réu esteja
a esconder-se, de conformidade com juízo subjetivo do oficial de justiça no
caso concreto. Desse modo, penso que o reconhecimento da constitucionalidade do
art. 362 do CPP, que está a prever o cabimento da citação por hora certa no
Processo Penal brasileiro, vai ao encontro de antigo brocardo latino, que
preconiza: Nemo auditur propriam
turpitudinem allegans (“A ninguém é dado alegar a sua própria torpeza”).
Sim, pois me parece induvidoso que age de maneira torpe o réu que, imbuído de
má-fé, esforça-se no sentido de tumultuar o andamento do processo, de que é
exemplo categórico a conduta de ocultação com o objetivo de frustrar as diligências
citatórias.
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