quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

RT Comenta: DIREITO ADMINISTRATIVO


Prova: MP-RR 2012
Tipo: Discursiva
Banca:

 

1 - Questão

Considerando que a mutabilidade constitui uma característica do contrato administrativo, que pode decorrer não somente do poder de que dispõe a Administração Pública de alterar ou rescindir unilateralmente o contrato, como também das circunstâncias que dão margem à aplicação das teorias do fato do príncipe e da imprevisão, discorra, de forma fundamentada, sobre o conceito e a incidência do fato do príncipe e da imprevisão, esclarecendo se, configurados tais fatos, a administração tem o dever de promover o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

2 - Minha Resposta

No Direito Administrativo, tema de grande importância é o que diz respeito ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo. Esse equilíbrio, que alguns doutrinadores chamam de "equação econômico-financeira", mais mais é que a relação de justa proporção entre as obrigações do contratado e as da Administração Pública. Dessa maneira, o ajuste deve guardar adequação entre o objeto contratual (serviço, obra, fornecimento) e o preço devido pelo Poder Público, no que se consubstancia uma de suas características, que é a de ser o contrato administrativo uma avença comutativa, a reclamar a equivalência das obrigações pactuadas. 

A comutatividade, que caracteriza o contrato administrativo, e que pode ser entendida na linha da necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro existente quando da celebração do ajuste, conta inclusive com assento constitucional. Vejamos:


Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Naturalmente, nem sempre será possível manter-se o equlíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo. Com efeito, como o negócio se insere em uma sociedade em constante mudança, é plausível o surgimento das mais variadas circunstâncias, que podem induzir a quebra da integridade comutativa inicial entre os contraentes. E é nisso que reside a característica mutabilidade do contrato administrativo, na medida em que o ajuste firmado com a Administração Pública pode modificar-se validamente para salvaguardar o interesse público (primário, isto é, da sociedade).

Essa modificação poderá dar-se unilateralmente (pela Administração) ou bilateralmente (por acordo entre as partes). A alteração unilateral do contrato pela Administração, inclusive, consubstancia uma das prerrogativas do regime de direito público que norteia a avença administrativa. São as chamadas cláusulas exorbitantes, que denotam posições de vantagem da Administração Pública nas relações contratuais e que estão previstas no art. 58 da Lei 8.666/93 (LL - Lei de Licitações):


Art. 58.  O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:
I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado;

II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta Lei;
III - fiscalizar-lhes a execução;
IV - aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste;
V - nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, na hipótese da necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas contratuais pelo contratado, bem como na hipótese de rescisão do contrato administrativo.
§ 1ª  As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado.
§ 2ª  Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual.

No tema dos contratos celebrados com Administração, vale assinalar que subsiste o princípio geral do direito civil-contratual consistente no pacta sunt servanda, a impor às partes contraentes o dever de executar fielmente as obrigações pactuadas. Apenas em se tratando de contrato administrativo, haverá a incidência de um regime de direito público garantidor de especial posição de vantagem para a Administração (cláusulas exorbitantes), até pela superioridade de que goza esta última perante o particular contratado.
  
Mas, tal qual sucede com qualquer tipo de ajuste, é possível que as obrigações contantes do contrato administrativo não sejam cumpridas de maneira satisfatória, ou simplesmente não sejam cumpridas. Aí se estará diante da inexecução do contrato, assunto de relevo no campo doutrinário.  

De início, é preciso observar a causa ensejadora da inexecução contratual. Isso porque pode haver causa culposa ou não culposa, logo, é de rigor admitir-se a existência de inexecução com culpa ou inexecução sem culpa.

A inexecução com culpa (ou inexecução culposa) é aquela que ocorre quando um dos contraentes deixa de cumprir sua parte no pacto, faltando com o dever de executar fielmente a obrigação pactuada. É o que acontece, por exemplo, quando o particular contratado compromete-se a prestar serviço de segurança em escolas públicas, porém não o faz, deixando o estabelecimento de ensino à mercê da criminalidade (LL, art. 78, I). Ou quando a própria Administração, ao não liberar o local da obra no prazo contratual assinado, impede o cumprimento regular da obrigação pelo contratado (LL, art. 78, XVI), dando azo à rescisão do contrato (fato da Administração).

A inexecução sem culpa (ou inexecução não culposa), como o próprio nome indica, ocorre em casos nos quais a obrigação pactuada tenha sido descumprida não por motivo de falta de um dos contratantes, mas em virtude de circunstâncias posteriores à celebração da avença, sobre as quais ninguém tem responsabilidade. São situações excepcionais, que surgem supervenientemente ao contrato, dificultando ou impossibilitando a sua regular conclusão, a sua fiel execução pelas partes (obstaculizam o pacta sunt servanda).    

É no contexto do estudo da inexecução sem culpa dos contratos administrativos que surgem as teorias da imprevisão e do fato do princípe. Cuida-se de teorizações que visam a permitir o delineamento das consequências jurídicas aplicáveis aos casos que, pela sua excepcionalidade e gravidade, podem ensejar a quebra do equilíbrio econômico-financeiro que decorre do vínculo contratual. 

A primeira das teorias é a da imprevisão. Segundo essa teoria, pode suceder que determinados eventos alterem as circunstâncias que permeiam a execução do contrato. Referidos eventos excepcionais logicamente não puderam ser previstos ao tempo da celebração do contrato (eles são imprevisíveis), mas têm o efeito de modificar as condições originalmente pactuadas, inviabilizando o equilíbrio econômico-financeiro da avença. A imprevisão decorre precisamente dessa mudança súbita das condições originais, fatores externos que surgem e rompem o cenário da equivalência contratual das obrigações, tornando-as especialmente onerosas, posto que se não possa atribuir a qualquer dos contraentes a sua causação (não é culpa de ninguém). Logo, é correto afirmar  que a teoria da imprevisão encontra seu fundamento na cláusula rebus sic stantibus, segundo a qual as partes têm o dever cumprir a obrigação ajustada, contanto que mantidas as condições originais do ajuste. A contrario sensu, uma vez alteradas essas condições, muda-se o contexto e, com isso, fragiliza-se a força do elo obrigacional celebrado.     

A doutrina aponta ser a álea econômica o elemento característico da teoria, haja vista o risco excessivo que gera, a sobrepujar as condições normais do mercado. Guerras e crises econômicas são exemplos de álea econômica excepcional e imprevisível, assim como a desvalorização monetária.

No tocante à teoria da imprevisão, a jurisprudência do STJ delineou alguns elementos característicos do fato imprevisível, considerando-os necessários à aplicação da teoria em sede de contratos administrativos. Para o STJ, o fato:

1) deve ser imprevisível, seja quanto à sua ocorrência, seja quanto às suas consequências;
 
2) deve ser estranho à vontade das partes;
 
3) deve ser inevitável;
 
4) deve ser causa de grande desequlíbrio no contrato.         

É o que se extrai da seguinte decisão (grifo meu):

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. PLANO REAL. CONVERSÃO EM URV. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE AO CASO.
1. Constata-se que o Tribunal de origem pronunciou-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos. Os órgãos julgadores não estão obrigados a examinar todas as teses levantadas pelo jurisdicionado durante um processo judicial, bastando que as decisões proferidas estejam devida e coerentemente fundamentadas, em obediência ao que determina o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal. Isso não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.
2. Esta Corte já se pronunciou que a instituição da Unidade Real de Valor – URV, se consubstanciou, em si mesma, cláusula de preservação da moeda. Sendo assim, in casu, não se aplica a teoria da imprevisão, uma vez que este Tribunal entende não estarem presentes quaisquer de seus pressupostos.
3. É requisito para a aplicação da teoria da imprevisão, com o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, que o fato seja imprevisível quanto à sua ocorrência ou quanto às suas consequências; estranho à vontade das partes; inevitável e causa de desequilíbrio muito grande no contrato. E conforme entendimento desta Corte, a conversão de Cruzeiros Reais em URVs, determinada em todo o território nacional, já pressupunha a atualização monetária (art. 4º da Lei n. 8.880/94), ausente, portanto, a gravidade do desequilíbrio causado no contrato.
4. Recurso especial não provido.
(STJ, REsp 1.129.738/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 05/10/2010, p. DJe 21/10/2010).   

A incidência da teoria da imprevisão nos contratos administrativos tem o condão de gerar pelo menos duas ordens de efeitos, cada qual relacionada com a viabilidade ou não de executar-se a obrigação pactuada. Se a execução do objeto contratado for possível, porém acarretar onerosidade excessiva ao contratante, caberá pedido de revisão do preço acordado, a fim de que seja preservado o equilíbrio contratual de cunho econômico-financeiro. Se, entretanto, diante dos fatos excepcionais e imprevisíveis, afiguar-se impossível o adimplemento da obrigação pela parte prejudicada, aí será o caso de admitir-se a rescisão do contrato, independentemente de culpa (nesse caso, a indenização do particular contratado será proporcional ao seu prejuízo).

A segunda teoria comumente apontada pela doutrina para justificar a inexecução não culposa dos contratos administrativos é a teoria do fato do príncipe. Em seus termos, a teorização abrange os casos nos quais o não cumprimento da avença dá-se em razão de ação do próprio Estado. A rigor, o mesmo Estado (príncipe) que contrata é o que prejudica a execução do objeto contratado ao instituir determinada medida ou ato que obstaculiza o ajuste firmado. Daí se dizer em doutrina que, enquanto a teoria da imprevisão caracteriza-se pela álea econômica, a teoria do fato do princípe funda-se na álea administrativa.  

Como a medida instituída pelo Estado (o fato do príncipe) caracteriza-se pela imprevisibilidade (ela é extraordinária, extracontratual e superveniente, logo, não poderia ser prevista pelos contratantes), seria absurdo atribuir culpa ao particular contratado pela inexecução. Por outro lado, tampouco é admissível ignorar o prejuízo experimentado pela parte com a modificação do cenário em que se deu o ajuste original.

Com efeito, parece de todo incoerente permitir que o particular contratado seja penalizado por um fato a que não deu causa, já que ele é oriundo da própria Administração (o fato é do príncipe). Desse modo, mesmo que a medida tenha sido preordenada para a generalidade das pessoas, só reflexamente afetando o contrato administrativo, a simples constatação de que o torna excessivamente oneroso, sem culpa do particular, já é motivo suficiente para reconhecer a quebra do equilíbrio econômico-financeiro da avença.

Um bom exemplo de fato do príncipe seria a edição de uma lei de plano econômico que viesse a suspender a cláusula de reajuste - acordada pelas partes - aplicável no curso da execução contratual. Nota-se que a medida ex vi legis constitui ação estatal geral e abstrata, não se dirigindo especificamente ao particular, mas o atinge de maneira reflexa, pois, ao vedar a utilização de determinado índice econômico-monetário, obstou a incidência da cláusula de reajuste, onerando o custo operacional da execução. Sendo assim, o preço originalmente acordado tornou-se inócuo, visto que insuficiente,  para o fim de garantir a equação econômico-financeira do contrato. 

O STJ enfrentou questão assemelhada ao exemplo acima, mas não reconheceu o fato do príncipe, que daria substância à alegação do recorrente quanto ao desequilíbrio do pactuado, em face de que, embora a lei tivesse afastado a cláusula de reajuste prevista no contrato, a instituição de unidade de valor consubstanciou, por si só, cláusula de preservação da moeda. Eis o acórdão:


RECURSO ESPECIAL. CONTRATO ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE ALIMENTAÇÃO. PLANO REAL. CONVERSÃO EM URV. SUSPENSÃO DA CLÁUSULA DE REAJUSTE POR UM ANO. POSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DO CONTRATO. FATO DO PRÍNCIPE. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE.

Ao contrato firmado entre a autora e a Petrobrás se aplicam as regras da Lei de Licitações, em que prepondera o interesse público sobre o interesse privado, razão pela qual não se pode deixar de admitir a sujeição do ajuste às normas econômicas que venham a ser editadas pelo Poder Público e a ausência de direito adquirido em relação ao critério de reajustamento, desde que preservado o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. É o equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, na verdade, a cláusula imutável, e não a que fixa os critérios de reajustamento, de maneira que, uma vez garantida a devida remuneração pelo serviço prestado, não há cogitar em necessidade de indenização referente a eventual diferença, ou, muito menos, em afastamento da norma econômica em favor da norma contratual. Ainda que, de fato, tenha a Lei n. 8.880/94, afastado a aplicação da cláusula de reajuste, a instituição da Unidade Real de Valor – URV, se consubstanciou, em si mesma, cláusula de preservação da moeda.
Recurso especial não conhecido.
(STJ, REsp 169.274/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Neto, j. 11/06/2002, p. DJ 23/06/2003).

Por isso, uma vez admitido a cabimento da aplicação da teoria do fato do príncipe, duas serão as possíveis consequências. Em primeiro lugar, se o ato estatal não impedir completamente a execução do objeto do contrato, embora o tenha onerado excessivamente, caberá pedido de revisão do preço, a fim de restaurar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Mas, se o fato do príncipe tornou impossível o adimplemento da obrigação pelo particular contratado, caberá a este o pedido de rescisão, fazendo jus à indenização compensatória do prejuízo experimentado, desta vez em caráter integral.   

Finalmente, cabe ponderar o dever cometido à Administração no sentido de promover o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, máxime quando haja substancial alteração do cenário pactuado, tal como sucede em se tratando de fatos supervenientes denotativos da álea econômica (teoria da imprevisão) ou da álea administrativa (fato do príncipe).

Teoricamente, o dever assecuratório do equilíbrio contratual tem seu fundamento precípuo em uma concepção de contrato administrativo que busca resguardar o caráter comutativo do ajuste, isto é, a equivalência das obrigações reciprocamente consideradas, não se permitindo o locupletamento ilícito de nenhum das partes contratantes. No direito positivo, esse mesmo dever de promoção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato tem assento tanto na Constituição (CF, art. 37, XXI) quanto na legislação infraconstitucional. É o caso dos arts. 57, § 1º, e 58, § 2º, todos da LL:


Art. 57 (omissis)

§ 1º  Os prazos de início de etapas de execução, de conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro, desde que ocorra algum dos seguintes motivos, devidamente autuados em processo:
 
Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:
§ 2ª Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual.

Essa leitura constitucionalizada do contrato administrativo, no bojo do qual o asseguramento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato é condição fundamental da validade do ajuste, encontra arrimo igualmente no repertório jurisprudencial do STJ. O acórdão infra é exemplar da tendência:


CONTRATO ADMINISTRATIVO. EQUAÇÃO ECONÔMICO-FINANCEIRA DO VÍNCULO. DESVALORIZAÇÃO DO REAL. JANEIRO DE 1999. ALTERAÇÃO DE CLÁUSULA REFERENTE AO PREÇO. APLICAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO E FATO DO PRÍNCIPE.

1. A novel cultura acerca do contrato administrativo encarta, como nuclear no regime do vínculo, a proteção do equilíbrio
econômico-financeiro do negócio jurídico de direito público, assertiva que se infere do disposto na legislação infralegal específica (arts. 57, § 1º, 58, §§ 1º e 2º, 65, II, d, 88 § 5º e 6º, da Lei 8.666/93. Deveras, a Constituição Federal ao insculpir os princípios intransponíveis do art. 37 que iluminam a atividade da administração à luz da cláusula mater da moralidade, torna clara a necessidade de manter-se esse equilíbrio, ao realçar as "condições efetivas da proposta".
2. O episódio ocorrido em janeiro de 1999, consubstanciado na súbita desvalorização da moeda nacional (real) frente ao dólar norte-americano, configurou causa excepcional de mutabilidade dos contratos administrativos, com vistas à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das partes.
3. Rompimento abrupto da equação econômico-financeira do contrato. Impossibilidade de início da execução com a prevenção de danos maiores. (ad impossiblia memo tenetur).
4. Prevendo a lei a possibilidade de suspensão do cumprimento do contrato pela verificação da exceptio non adimplet contractus imputável à administração, a fortiori, implica admitir sustar-se o "início da execução", quando desde logo verificável a incidência da "imprevisão" ocorrente no interregno em que a administração postergou os trabalhos. Sanção injustamente aplicável ao contratado, removida pelo provimento do recurso.
5. Recurso Ordinário provido.
(STJ, RMS 15.154/PE, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 19/11/2002, p. DJ 02/12/2002).

Após tudo o que foi exposto, é forçoso reconhecer que a Administração tem o dever de promover o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato em casos nos quais haja substancial alteração do cenário em que se deu a pactuação do vínculo obrigacional recíproco entre o Poder Público e o particular contratado, tal como sucede em se tratando das áleas econômica e administrativa, a atrair, respectivamente, a incidência das teorias da imprevisão e do fato do príncipe.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

DO PRAZO PRESCRICIONAL DA PRETENSÃO INDENIZATÓRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA: a antinomia aparente entre os prazos de prescrição trienal e quinquenal e a jurisprudência do STJ consolidada na tese de recursos repetitivos firmada no julgamento do REsp 1.251.993/PR

 
Assistindo atualmente: DVD Marcin Dylla Live: Wawel Royal Castle at Dusk (2008). 
Vencedor do prestigiado Concurso Internacional de Guitarra Alhambra,
 o polonês Marcin Dylla mostra nesse concerto
o porquê de ter escrito seu nome entre os maiores violonistas do mundo.
Com um repertório que vai de
sonata de Manuel Maria Ponce a peças de Nicholas Maw e Joaquín Rodrigo,
o destaque fica mesmo com a belíssima interpretação de Rossiniana nº 1. Op. 119,
do compositor italiano Mauro Giuliani
- uma das mais lindas obras do violão erudito no século XIX.

1 - Introdução

Um dos temas mais disputados na doutrina e na jurisprudência recente do Brasil diz respeito ao prazo prescricional das pretensões indenizatórias dirigidas contra a Fazenda Pública. São pretensões de reparação civil nas quais a parte demanda contra o ente fazendário, com vistas a obter alguma espécie de ressarcimento por um dano eventualmente ocorrido. Nessa seara, portanto, o objeto da disputa consiste em saber qual o prazo de prescrição aplicável a ações que veiculem pretensões ressarcitórias.

A questão não é tão simples. Envolve uma mixórdia de leis no tempo, muitas das quais criadas para beneficiar a Fazenda Pública, subtraindo-a do regime geral de prescrição comumente veiculado pelo Código Civil.

É movido pelo desejo de esclarecer essa disputa que se apresenta este artigo. Dois são os seus objetivos fundamentais: saber qual a legislação especial aplicável à Fazenda Pública e como essa mesma legislação passou a ser interpretada com o advento do Código Civil de 2002. Ao final, darei atenção especial à jurisprudência do STJ sobre a matéria, que restou, no final do ano de 2012, consolidada por meio do julgamento, sob o rito dos recursos repetitivos, do REsp 1.251.993/PR.

2 - Histórico da legislação relativa ao prazo prescricional das pretensões contra a Fazenda Pública 

Historicamente, coube ao Código Civil o estabelecimento dos prazos de prescrição aplicáveis às pretensões no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, dispunha a Lei 3.071 (Código Civil de 1916), no seu art. 177, o seguinte:      
Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinàriamente, em vinte anos, as reais em dez, entre presentes e entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas.

A redação do art. 177 do CC-1916 havia sido dada pela Lei 2.437/55, que alterara a previsão original de 30 anos. Ou seja, já em 1955 o legislador brasileiro entendeu que o prazo prescricional da pretensão relativa a direitos pessoais necessitava ser reduzido. A opção então adotada foi a de diminuí-lo para 20 anos.    

É justamente esse prazo de prescrição de 20 anos que a doutrina convencionou denominar de prazo prescricional vintenário - não obstante esse adjetivo "vintenário" não possuísse, como ainda não possui, registro em boa parte dos dicionários brasileiros, os quais aludem apenas ao substantivo "vintena", para referir-se à vigésima parte de algo.
O fato é que, ao tempo do CC-1916, era indiscutível a importância do famigerado prazo de prescrição vintenária para o sistema jurídico. O motivo era que ele se reportava às ações pessoais, classificação dentro da qual estavam abrangidas as demandas que veiculassem pretensões de reparação civil. Na verdade, a polêmica era bem mais extensa, pois, mesmo quando a ação tinha natureza real, sucessivos entendimentos pretorianos digladiavam-se quanto à aplicabilidade do art. 177. Prova disso é que o STJ, em 1994, interveio para uniformizar a interpretação da lei federal quanto a uma dessas controvérsias, no que editou o seguinte enunciado sumular:
STJ Súmula nº 119 - 08/11/1994 - DJ 16.11.1994
Ação de Desapropriação Indireta - Prescrição
A ação de desapropriação indireta prescreve em vinte anos.
Essas considerações históricas servem ao propósito de ilustrar o cenário de permanente disputa quanto à aplicação dos prazos do art. 177 do CC-1916. Afinal, prazos de prescrição e de decadência, por importarem, respectivamente, a perda da pretensão ou do direito potestativo, adquirem relevância significativa no contexto de qualquer ordenamento jurídico que busque concretizar o ideal de segurança jurídica nas relações travadas em sociedade.   
3 - A prescrição das pretensões contra a Fazenda Pública no Código Civil de 1916: o afastamento do prazo vintenário pelo prazo quinquenal
O prazo de prescrição de 20 anos, como salta aos olhos de qualquer um, é realmente muito longo. Sob a sistemática do CC-1916, havia, por exemplo, de concluir-se que uma pretensão de indenização estava protegida durante duas décadas! Sem dúvida, um lapso temporal mui extenso.
A constatação acima não passou despercebida aos olhos do Estado, o qual não costuma simpatizar com prazos longos em se tratando da proteção dos interesses fazendários. É bem verdade que, desde a redação original do CC-1916, o legislador sempre beneficiou a Fazenda Pública, subtraindo-a do regime legal do prazo prescricional vintenário. Com efeito, as ações contra a Fazenda, sob a égide do inc. VI do § 10 do art. 178 do  CC-1916, prescreviam em 5 anos, senão vejamos:   
Art. 178. Prescreve:
§ 10. Em cinco anos:
VI. As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, e bem assim toda e qualquer ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal; devendo o prazo da prescrição correr da data do ato ou fato do qual se originar a mesma ação.
Significa dizer, portanto, que o interesse do Estado em ver reduzido o prazo prescricional das demandas, cujas pretensões objetivassem algum tipo de reparação contra a Fazenda Pública, nunca deixou de ser prestigiado pelo ordenamento jurídico nacional. Mesmo o CC-1916, um diploma primevo, promulgado como um dos marcos do cipoal legislativo da República Velha brasileira, já garantia proteção especial aos interesses fazendários.
4 - A prescrição das pretensões contra a Fazenda Pública no Decreto 20.910/32: a generalização do prazo prescricional quinquenal
Ainda assim, o legislador não se deu por satisfeito e quis ampliar a proteção conferida à Fazenda pelo regime de direito público. Com esse fim, editou-se então, em 1932, o Decreto 20.910. Sua ementa era cristalina: "Regula a prescrição quinquenal". Faltou acrescentar "nas ações contra a Fazenda Pública", porque era este o seu objetivo mor: dispor, à maneira de legislação específica, sobre os prazos de prescrição aplicáveis às ações movidas contra o Estado.
Nesse sentido, o art. 1º do Decreto 20.910/32 tratou de reprisar, em linhas gerais, a redação do inc. VI do § 10 do art. 178 do CC-1916. Colaciono:
Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.
A inclusão da expressão "seja qual for a sua natureza", que não constava da redação similar existente no CC-1916, teve o objetivo de aclarar definitivamente que o prazo prescricional quinquenal instituído pelo Decreto 20.910/32 era aplicável a toda e qualquer espécie de demanda contra a Fazenda Pública. Tivesse a demanda natureza de direito pessoal ou de direito real, pouco importava: a pretensão prescreveria em 5 anos.
O fundamental é perceber que o Decreto 20.910/32 foi promulgado com o propósito inequívoco de beneficiar a defesa dos interesses fazendários, os quais, como expus acima, nunca deixaram de merecer um regramento apartado daquele aplicável ao cidadão comum. Assim, por exemplo, se alguém cometesse um ato ilícito, gerador de dano passível de ser indenizado, a pretensão assecuratória desse direito, à luz do CC-1916, prescreveria em 20 anos. Todavia, se o causador do dano fosse um agente do Estado, a indenização correspondente deveria ser pleiteada no prazo de 5 anos, sob pena de a pretensão prescrever.
Com isso, fica evidente que, já nos idos do CC-1916, existia um abismo prazal, amplamente favorável ao Estado, nas pretensões ressarcitórias dirigidas contra a Fazenda Pública. Daí por que o Decreto 20.910/32 veio apenas corroborar uma tendência do ordenamento jurídico brasileiro em conferir especial proteção aos interesses fazendários.
5 - A prescrição das pretensões contra a Fazenda Pública no contexto do Código Civil de 2002: a antinomia aparente com o Decreto 20.910/32
A promulgação de um novo código sempre acarreta muitas modificações nos mais diversos subsistemas do direito. Não foi diferente com a Lei 10.406, que instituiu um novo Código Civil, ab-rogando o vetusto Código Civil de 1916.
Aparentemente, o advento do CC-2002 não haveria de repercutir de maneira intensa no cálculo do prazo prescricional das pretensões veiculadas contra a Fazenda Pública, pois, como estas se encontravam submetidas a uma legislação específica (no caso, o Decreto 20.910/32), era natural supor que o novel diploma tivesse sua aplicabilidade afastada, consoante a regra prevista no § 2º do art. 2º do Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB), nos termos da qual era possível concluir que a lei nova, que estabelecesse disposições gerais a par das já existentes, não revogava nem modificava a lei anterior.
De modo a aprofundar um pouco mais o assunto, convém recordar que o raciocínio supracitado envolve, como questão de fundo, tema da filosofia do direito, mais precisamente o relativo ao estudo das "antinomias". Antinomias ocorrem quando as normas de um dado ordenamento, embora igualmente emanadas da autoridade competente, podem vir a conflitar, total ou parcialmente, na medida em que estipulam comandos distintos para situações idênticas. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Junior (2003, p. 212), a antinomia jurídica pode ser classificada em antinomia real (seria aquela para a qual não há, no ordenamento, regra normativa de solução) e antinomia aparente (seria aquela para a qual existem critérios normativos). Neste último caso, a antinomia é solúvel, logo, é preciso averiguar quais são os critérios normativos determinantes da resolução. Um desses critérios é justamente o da especialidade, segundo o qual a lei especial afasta a incidência da lei geral (lex specialis derrogat lex generale).
Partindo dessas premissas filosóficas, ao menos em uma exegese inicial, os prazos prescricionais nas pretensões de reparação civil intentadas contra a Fazenda Pública continurariam a ser regidos pelo Decreto 20.910/32, haja vista este ser um diploma especial em relação ao CC-2002 (lei geral). Isto é, o critério da especialidade prevaleceria para afastar a situação aparentemente antinômica.
O problema é que o CC-2002 trouxe um novo regramento relativo ao tema da prescrição no ordenamento jurídico brasileiro. A tendência incorporada pelo legislador foi no sentido de diminuir, substancialmente, o elastério dos prazos existentes no código revogado. Exemplificativamente, se ao tempo do CC-1916 a regra geral era a de que as pretensões prescreveriam em 20 anos, o CC-2002 reduziu-a pela metade, para determinar que "a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor" (art. 205). Só por esse exemplo é possível notar que a política legislativa que inspirou o CC-2002 foi mesmo a de evitar que as relações jurídicas permanecessem por um longo lapso temporal submetidas à ameaça constante do ajuizamento de uma ação com pretensão válida, dotada de juridicidade.
Em se tratando da responsabilidade civil, especificamente nas pretensões indenizatórias, o CC-2002 foi ainda mais enfático em confirmar a tendência de redução prazal a que aludi acima. Vejamos o teor do inc. V do § 3º do art. 206:
Art. 206. Prescreve:
§ 3º Em três anos:
V - a pretensão de reparação civil;
Dessa forma, o prazo prescricional das pretensões reparatórias, que na vigência do CC-1916 era de 20 anos, passou a ser de apenas 3 anos com o CC-2002. Indiscutivelmente, uma redução muito grande e que não demoraria a acarretar consequências no plano doutrinal.  

6 - A tese doutrinária do prazo prescricional trienal e suas consequências na jurisprudência
Foi nessa toada que parte da doutrina passou a sustentar a tese de que, com o advento do CC-2002, o prazo prescricional aplicável às pretensões ressarcitórias formuladas contra a Fazenda Pública não mais seria de 5 anos, e sim o de 3 anos. Por outras palavras, o regramento estipulado no Decreto 20.910/32 cederia lugar àquele previsto no novo Código Civil.

O argumento a embasar essa tese fundava-se em uma interpretação teleológica dos diplomas em comento: o prazo quinquenal do Decreto 20.910/32 veio à lume para beneficiar as pessoas jurídicas de direito público num contexto de prazo geral vintenário e dúvidas quanto à aplicabilidade do prazo quinquenal previsto no CC-1916 a ações que não tivessem natureza pessoal. Sendo assim, a considerar o telos do legislador, no sentido de dar tratamento privilegiado à Fazenda Pública, seria razoável concluir que o prazo prescricional trienal do CC-2002, por ser mais favorável à proteção dos interesseses fazendários, haveria de prevalecer, em detrimento do disposto no art. 1º do Decreto 20.910/32.
Esse pensamento ganhou rapidamente adeptos. Não foram poucos os doutrinadores que encamparam a tese favorável à aplicação do prazo prescricional de 3 anos às ações condenatórias propostas contra a Fazenda Pública, em casos nos quais se objetivasse a obtenção de indenização por força de responsabilidade do Estado em evento danoso. Leonardo Carneiro da Cunha (2012, p. 86-87, grifo do autor) foi um deles, argumentando que
Em princípio, a regra especial deveria prevalecer sobre a geral, de sorte que a pretensão da reparação civil contra a Fazenda Pública manter-se-ia subordinada ao regime especial da prescrição quinquenal. Cumpre, todavia, atentar-se para o disposto no art. 10 do Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, que assim dispõe: 
"Art. 10. O disposto nos artigos anteriores não altera as prescrições de menor prazo, constantes das leis e regulamentos, as quais ficam subordinadas às mesmas regras."
Significa que a prescrição das pretensões formuladas contra a Fazenda Pública é quinquenal, ressalvados os casos em que a lei estabeleça prazos menores. Na verdade, os prazos prescricionais inferiores a 5 (cinco) anos beneficiam a Fazenda Pública.
Diante disso , a pretensão de reparação civil contra a Fazenda Pública submete-se ao prazo prescricional de 3 (três) anos, e não à prescrição quinquenal.
(...)
O que se percebe, em verdade, é um nítido objetivo de beneficiar a Fazenda Pública. A legislação especial conferiu-lhe um prazo diferenciado de prescrição em seu favor. Enquanto a legislação geral (Código Civil de 1916) estabelecia um prazo de prescrição de 20 (vinte) anos, a legislação específica (Decreto nº 20.910/32) previa um prazo de prescrição próprio de 5 (cinco) anos para as pretensões contra a Fazenda Pública. Nesse intuito de beneficiá-la, o próprio Decreto nº 20.910/32, em seu art. 10, dispõe que os prazos menores devem favorecê-la.
A legislação geral atual (Código Civil de 2002) passou a prever um prazo de prescrição de 3 (três) anos para as pretensões de reparação civil. Ora, se a finalidade das normas contidas no ordenamento jurídico é conferir um prazo menor à Fazenda Pública, não há razão para o prazo geral - aplicável a todos indistintamente - ser inferior àquele outorgado às pessoas jurídicas de direito público. A estas deve ser aplicado, ao menos, o mesmo prazo, e não um superior, até mesmo em observância ao disposto no art. 10 do Decreto nº 20.910/32.
Apesar de, data maxima venia, Carneiro da Cunha estar equivocado quando afirma que o prazo quinquenal favorável à Fazenda surgiu com o Decreto 20.910/32 - anotei antes que o próprio CC-1916, no seu art. 178, § 10, VI,  já dispunha que as demandas fundadas em direito pessoal submeter-se-iam ao prazo de prescrição de 5 anos, afastando a regra geral então vigente, que era no sentido da prescrição vintenária -, sua argumentação é exemplar e ilustra muito bem a corrente doutrinária que se foi avolumando no Brasil pós-CC-2002.  
Entre os administrativistas, também houve autores que se posicionaram favoravelmente à aplicação do prazo trienal. José dos Santos Carvalho Filho (2012, p. 573-574, grifos do autor) foi um deles, desenvolvendo seu raciocínio da maneira seguinte:
Se a pessoa responsável se enquadra como entidade federativa ou autárquica (incluídas, pois, as fundações de direito público), consumava-se a prescrição no prazo de cinco anos contados a partir do fato danoso. Tal prazo extintivo situava-se no âmbito da clássica prescrição quinquenal das ações pessoais contra o Estado (Decreto nº 20.910/32). Esse tipo de prescrição, como é sabido, abrangia, entre outras, a pretensão do lesado à indenização, tornando indispensável quer o pedido administrativo, quer a ação judicial.
(...)
O vigente Código Civil, no entanto, introduziu várias alterações na disciplina da prescrição, algumas de inegável importância. Uma delas diz respeito ao prazo genérico de prescrição (art. 205). Outra é a que fixa o prazo de três anos para a prescrição da pretensão de reparação civil. Vale dizer: se alguém sofre dano por ato ilícito de terceiro, deve exercer a pretensão reparatória (ou indenizatória) no prazo de três anos, pena de ficar prescrita e não poder mais ser deflagrada.
Como o texto se refere à reparação civil de forma genérica, será forçoso reconhecer que a redução do prazo beneficiará tanto as pessoas públicas como as de direito privado prestadoras de serviços públicos. Desse modo, ficarão derrogados os diplomas acima no que concerne à reparação civil. Contudo, as demais pretensões pessoais contra a Fazenda continuam sujeitas à prescrição quinquenal prevista no Decreto nº 20.910/1932.
Cumpre nessa matéria recorrer à interpretação normativo-sistemática. Se a ordem jurídica privilegiou a Fazenda Pública, estabelecendo prazo menor de prescrição da pretensão de terceiros contra ela, prazo esse fixado em cinco anos pelo Decreto nº 20.910/32, raia ao absurdo admitir a manutenção desse mesmo prazo quando a lei civil, que outrora apontava prazo bem superior àquele, reduz significativamente o período prescricional, no caso para três anos (pretensão à reparação civil). Desse modo, se é verdade, de um lado, que não se pode admitir prazo inferior a três anos para a prescrição da pretensão à reparação civil contra a Fazenda, em virtude de inexistência de lei especial em tal direção, não é menos verdadeiro, de outro, que tal prazo não pode ser superior, pena de total inversão do sistema lógico-normativo; no mínimo, é de aplicar-se o novo prazo fixado agora pelo Código Civil. interpretação lógica não admite a aplicação, na hipótese, das regras de direito intertemporal sobre lei especial e lei geral, em que aquela prevalece a despeito do advento desta. A prescrição da citada pretensão de terceiros contra as pessoas jurídicas públicas e as de direito privado prestadoras de serviços públicos passou de quinquenal para trienal.
Mesmo entre os civilistas, a corrente favorável a que se aplicasse o prazo trienal do CC-2002 em detrimento do quinquenal do decreto ganhou força. Aderindo a esse pensamento, Farias e Rosenvald (2012, p. 747) explicitam que
(...) a ação promovida pelo particular contra a Administração Pública deverá ser ajuizada dentro do prazo previsto na norma jurídica. A matéria está regulada pelo Decreto nº 20.910/32, que fixou um prazo quinquenal menor para a propositura das ações contra as Fazendas federal, estadual e municipal. Em seguida, o Decreto-lei nº 4.597/42 elasteceu a regra para alcançar, também, as autarquias. Não alcançava, contudo, as pessoas jurídicas de direito privado componentes da Administração Pública indireta.
A regra da prescrição quinquenal da pretensão contrária ao Estado foi esquadrinhada quando se encontrava em vigor o Código Civil de 1916, que, por sua vez, estabelecia o prazo de vinte anos para a ação reparatória de danos no direito privado. Com o advento da Lei Civil de 2002, porém, o prazo da pretensão reparatória de danos foi diminuído para três anos, aplicando-se, por igual, às pretensões dirigidas à Fazenda Pública. É que não há justificativa para um tratamento diverso para regulamentar as pretensões reparatórias contra o Estado, devendo se submeter ao prazo trienal - que foi estabelecido em razão da especificidade da pretensão de direito material subjacente. Considere-se, inclusive, que na vigência do Código Civil de 1916 o Estado mereceu prazo diferenciado, não podendo se submeter a um prazo tão elástico (que era de vinte anos). Ora, se, hodiernamente, nem mesmo os particulares podem se submeter a prazos tão alongados, merecendo diminuição para três anos, esta redução haverá de atingir, também, as pretensões ressarcitórias dirigidas à Fazenda Pública.   
Dessa forma, torna-se patente que existia, no Brasil, forte inclinação doutrinária a se considerar como prevalente o prazo de prescrição de 3 anos, previsto no CC-2002, para a pretensão à reparação civil, mesmo em relação às pessoas jurídicas de direito público.

Mas a força dessa tese não se restringiu à doutrina. O próprio STJ, em alguns precedentes turmários, começava a aceitá-la. Colaciono (grifo meu):

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. PRAZO PRESCRICIONAL. INCIDÊNCIA, NA ESPÉCIE, DO ART. 206, § 3º, INC. V, DO NOVO CÓDIGO, EM DETRIMENTO DO DECRETO N. 20.910/32.

1. No âmbito desta Corte Superior, pacificou-se o entendimento no sentido de que aplica-se o prazo prescricional de três anos previsto no art. 206, § 3º, inc. V, do Código Civil de 2002, em detrimento ao de cinco anos do art. 1º do Decreto n. 20.910/32, em relação às pretensões de reparação civil contra os entes públicos sempre que assim determinarem a regra de transição e/ou a data da ocorrência do fato danoso. Precedentes.

2. Na hipótese dos autos, o Tribunal de origem consignou que a data do evento danos ocorreu em 9.8.2003. Assim sendo, ocorreu o transcurso do prazo trienal, pois a presente demanda foi proposta em 30.7.2008, o que caracteriza a consumação da prescrição.
3. Recurso especial não provido.
(STJ, REsp 1.238.260/PB, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 26/04/2011, p. DJe 05/05/2011).

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRESCRIÇÃO. DECRETO 20.910/1932. ADVENTO DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. REDUÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA TRÊS ANOS.
1. O legislador estatuiu a prescrição qüinqüenal em benefício do Fisco e, com manifesto objetivo de favorecer ainda mais os entes públicos, estipulou que, no caso de eventual existência de prazo prescricional menor a incidir em situações específicas, o de cinco anos seria afastado nesse particular. Inteligência do art. 10 do Decreto 20.910/1932.
2. O prazo prescricional de três anos relativo à pretensão de reparação civil - art. 206, § 3º, V, do Código Civil de 2002 - prevalece sobre o qüinqüênio previsto no art. 1º do Decreto 20.910/32. Precedentes do STJ.
3. Recurso Especial provido. (STJ, REsp 1.217.933/RS, Segunda Turma, Min. Herman Benjamin, j. 22/03/2011, p. DJe 25/04/2011).  

Entretanto, em outros julgados, o próprio STJ manifestava-se em sentido contrário, ora fazendo prevalecer o prazo quinquenal. Colaciono (grifos meus):

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. INDENIZAÇÃO POR DESVIO DE FUNÇÃO. PRESCRIÇÃO. PRAZO QUINQUENAL. DECRETO N. 20.910/1932. ART. 206, § 3º, DO CÓDIGO CIVIL. INAPLICABILIDADE.
1. Caso em que se discute se o prazo prescricional para o pagamento da indenização por desvio de função seria o trienal previsto no art. 206, § 3º, incisos IV e V, do Código Civil, ou o quinquenal estabelecido no Decreto 20.910/1932.
2. A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça firmou-se no sentido de que é quinquenal o prazo prescricional para propositura da ação de qualquer natureza contra a Fazenda Pública, a teor do art. 1° do Decreto n. 20.910/32, afastada a aplicação do Código Civil. Precedentes: AgRg no REsp n. 969.681/AC, Ministro Arnaldo
Esteves Lima, Quinta Turma, DJe 17/11/2008; AgRg no REsp n. 1.073.796/RJ, Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 1/7/2009; AgRg no Ag 1.230.668/RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 24/5/2010.
3. Agravo regimental não provido.
(STJ, AgRg no AREsp 69.696/SE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, j. 14/08/2012, p. 21/08/2012).
 
ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRESCRIÇÃO. PRAZO. ARTIGO 206, § 3º, V, DO CÓDIGO CIVIL. INAPLICABILIDADE. ARTIGO 1º DO DECRETO Nº 20.910/32. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL.
1. O prazo prescricional da pretensão reparatória contra o Estado, seja federal, estadual ou municipal é de cinco anos, nos termos do artigo 1º do Decreto nº  20.910/32. Precedentes, entre eles: EREsp 1081885/RR, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Primeira Seção, julgado em 13/12/2010, DJe 01/02/2011.
2. Recurso especial provido.
(STJ, REsp 1.236.599/RR, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, j. 08/05/2012, p. DJe 21/05/2012).  

 
Disso resultava que, em relação às demandas de caráter ressarcitório ajuizadas contra a Fazenda Pública, a jurisprudência era vacilante, ora prevalendo o prazo prescricional de 5 anos, estatuído do Decreto 20.910/32, ora prevalencedo o prazo de 3 anos, insculpido no art. 206, § 3º, V, do CC-2002. 
7 - A resolução da antinomia aparente pela interpretação consolidada na jurisprudência do STJ: análise do acórdão paradigma no REsp 1.251.933/PR 
Logicamente, a discussão sempre esteve longe ser pacífica. Por esse motivo, e também por envolver interpretação da lei federal, a merecer uniformidade em apreço à segurança jurídica do sistema, a aparente antinomia existente entre a regra do Código Civil (art. 206, § 3º, V) e a do Decreto 20.910/32 (art. 1º), relativamente ao prazo prescricional das ações indenizatórias propostas contra a Fazenda Pública, foi submetida ao exame do STJ.   
O caso foi julgado pela Primeira Seção da Corte no final do ano de 2012, sob o rito dos recursos repetitivos (CPC, art. 543-C), em controvérsia constante do REsp 1.251.993/PR. O recurso especial fora interposto pelo Município de Londrina em ação de responsabilidade civil agitada por particular, que pleiteava reparação civil junto ao Estado pelos danos ocasionados ao seu veículo  com a queda de uma árvore em via pública. Inconformada com o acórdão lavrado pelo Tribunal de Justiça do Paraná, que afastou a tese fazendária da prescrição da pretensão do particular ao afirmar a prevalência do prazo quinquenal do Decreto 20.910/32 (art. 1º), em detrimento do prazo trienal constante do CC-2002 (art. 206, § 3º, V), a Fazenda Pública munícipe interpôs o recurso especial que acabou por constituir-se no precedente paradigmático sobre a matéria perante o STJ. 

Nesse sentido, é interessante observar os argumentos de que se valeu o TJPR para decidir contrariamente ao pleito da Fazenda Pública municipal. Eis a ementa do acórdão:
  
Ação de responsabilidade civil - Queda  de  árvore situada  em  via  pública sobre automóvel  estacionado  -  Prescrição  -  Prazo  trienal  previsto  no  artigo  206, parágrafo  3º,  inciso  V,  do  novo  Código  Civil  -  Inaplicabilidade  -  prescrição quinquenal - Aplicação do artigo 1º do Decreto nº 20.910/1932, lei especial, que prepondera,  quando  em  confronto  com  a  geral  (Código Civil) -  Precedentes  do Superior Tribunal de Justiça e desta Corte. Recurso provido.
Prescreve em cinco anos todo e qualquer direito ou ação em face da Fazenda Pública (Federal, Estadual ou Municipal), inclusive ação indenizatória, nos termos do disposto no artigo 1º do Decreto nº 20.910/1932, que por ser lei especial, não foi revogado com o advento do Código Civil de 2002.

Nota-se que o tribunal a quo valeu-se do critério da especialidade, largamente estudado na filosofia do direito, para dirimir a antinomia aparente entre os prazos trienal e quinquenal, respectivamente, do Código Civil e do Decreto 20.910/32. Para o TJPR, como o art. 1º do Decreto 20.910/32 é lei especial, deve prevalecer diante da lei geral, isto é, o Código Civil. Curiosamente, foi esse mesmo argumento que veio a capitanear a decisão da Primeira Seção do STJ sobre o assunto. Colaciono a ementa do acórdão paradigma (grifos meus):

ADMINISTRATIVO.  RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO  DE CONTROVÉRSIA (ARTIGO 543-C DO CPC).  RESPONSABILIDADE CIVIL  DO ESTADO.  AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESCRIÇÃO. PRAZO QUINQUENAL (ART. 1º DO DECRETO 20.910/32) X PRAZO TRIENAL (ART. 206, § 3º, V,  DO  CC).  PREVALÊNCIA DA LEI ESPECIAL. ORIENTAÇÃO PACIFICADA NO ÂMBITO DO STJ.  RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
1.  A controvérsia do presente recurso especial, submetido à sistemática  do  art. 543-C do CPC e da Res. STJ n 8/2008, está limitada ao prazo prescricional em ação indenizatória  ajuizada  contra  a  Fazenda  Pública,  em  face  da  aparente antinomia  do prazo  trienal  (art.  206,  §  3º,  V,  do  Código  Civil)  e  o  prazo quinquenal (art. 1º do Decreto 20.910/32).
2.  O  tema  analisado  no  presente  caso  não  estava  pacificado,  visto  que  o  prazo prescricional nas ações indenizatórias contra a Fazenda Pública era defendido de maneira  antagônica  nos  âmbitos  doutrinário  e jurisprudencial.  Efetivamente, as Turmas de Direito Público  desta  Corte  Superior  divergiam sobre  o  tema,  pois existem julgados de ambos os órgãos julgadores no sentido da aplicação do prazo prescricional  trienal  previsto  no Código Civil  de  2002  nas  ações  indenizatórias ajuizadas contra a Fazenda Pública. Nesse sentido, o seguintes precedentes: REsp 1.238.260/PB, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 5.5.2011; REsp 1.217.933/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 25.4.2011; REsp 1.182.973/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 10.2.2011; REsp 1.066.063/RS, 1ª  Turma,  Rel.  Min.  Francisco  Falcão,  DJe  de  17.11.2008; EREspsim  1.066.063/RS,    Seção,  Rel.  Min.  Herman  Benjamin,  DJe  de 22/10/2009). A tese do prazo prescricional trienal também é defendida no âmbito doutrinário,  dentre  outros  renomados  doutrinadores:  José dos  Santos  Carvalho Filho ("Manual  de  Direito  Administrativo",  24ª  Ed.,  Rio  de  Janeiro:  Editora Lumen  Júris,  2011,  págs.  529/530)  e  Leonardo  José  Carneiro  da  Cunha  ("A Fazenda Pública em Juízo", 8ª ed, São Paulo: Dialética, 2010, págs. 88/90).
3.  Entretanto, não obstante os  judiciosos  entendimentos  apontados,  o  atual  e consolidado entendimento deste Tribunal Superior sobre o tema é no sentido da aplicação  do  prazo  prescricional  quinquenal  -  previsto  do  Decreto  20.910/32  - nas  ações  indenizatórias  ajuizadas  contra  a  Fazenda  Pública,  em  detrimento  do prazo trienal contido do Código Civil de 2002.
4. O principal fundamento que autoriza tal afirmação decorre da natureza especial do Decreto 20.910/32, que regula a prescrição, seja qual for a sua natureza, das pretensões formuladas  contra  a  Fazenda  Pública,  ao  contrário  da  disposição prevista no Código Civil, norma geral que regula o tema de maneira genérica, a qual  não  altera  o  caráter  especial  da  legislação,  muito  menos  é  capaz  de determinar  a  sua  revogação.  Sobre o  tema:  Rui  Stoco  ("Tratado  de Responsabilidade Civil". Editora Revista dos Tribunais, 7ª Ed. – São Paulo, 2007; págs.  207/208)  e  Lucas  Rocha  Furtado  ("Curso  de  Direito  Administrativo". Editora Fórum, 2ª Ed. – Belo Horizonte, 2010; pág. 1042).
5. A previsão contida no art. 10 do Decreto 20.910/32, por si só, não autoriza a afirmação de que o prazo prescricional nas ações indenizatórias contra a Fazenda Pública foi reduzido pelo Código Civil de 2002, a qual deve ser interpretada pelos critérios  histórico e hermenêutico. Nesse sentido: Marçal Justen Filho ("Curso de Direito  Administrativo".  Editora  Saraiva,    Ed.    São  Paulo,  2010;  págs. 1.296/1.299).
6.  Sobre o  tema,  os  recentes  julgados  desta  Corte  Superior:  AgRg  no  AREsp 69.696/SE,    Turma, Rel. Min. Benedito  Gonçalves,  DJe  de  21.8.2012;  AgRg nos  EREsp  1.200.764/AC,    Seção,  Rel.  Min.  Arnaldo  Esteves  Lima,  DJe  de 6.6.2012;  AgRg  no  REsp  1.195.013/AP,    Turma,  Rel.  Min.  Teori  Albino Zavascki,  DJe  de  23.5.2012;  REsp  1.236.599/RR,    Turma,  Rel.  Min.  Castro Meira,  DJe  de  21.5.2012;  AgRg  no  AREsp  131.894/GO,    Turma,  Rel.  Min. Humberto  Martins,  DJe  de  26.4.2012;  AgRg  no  AREsp  34.053/RS,    Turma, Rel.  Min.  Napoleão  Nunes  Maia  Filho,  DJe  de  21.5.2012;  AgRg  no  AREsp
36.517/RJ,    Turma,  Rel.  Min.  Herman  Benjamin,  DJe  de  23.2.2012;  EREsp 1.081.885/RR, 1ª Seção, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe de 1º.2.2011.
7.  No caso concreto, a  Corte  a  quo,  ao  julgar  recurso  contra  sentença  que reconheceu prazo trienal em ação indenizatória ajuizada por particular em face do Município, corretamente reformou a sentença para aplicar a prescrição quinquenal prevista no Decreto 20.910/32, em manifesta sintonia com o entendimento desta Corte Superior sobre o tema.
8. Recurso especial não provido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.
(STJ, REsp 1.251.993/PR, Primeira Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 12/12/2012, p. DJe 19/12/2012).
O acórdão do STJ, do modo como se encontra ementado, deixa ver que o tribunal superior rejeitou a tese fazendária que pugnava pela aplicação do prazo trienal do CC-2002 nas ações de indenização ajuizadas contra a Fazenda Pública. Com efeito, a Corte afastou o prazo prescricional de 3 anos do art. 206, § 3º, V, do CC, em virtude de considerá-lo "norma geral que regula o tema de maneira genérica", inidônea, portanto, a prevalecer quanto confrontada com a regra especial do Decreto 20.910/32, que regula a prescrição nas ações de qualquer natureza intentadas contra a Fazenda Pública. Logo, por força do critério da especialidade, a lei geral não tem o condão de influir sobre a legislação de caráter especial, seja para alterá-la, seja para revogá-la. 

Além disso, no voto do relator, Min. Mauro Campbell Marques, também ficou consignado que o Código Civil aplica-se na regência de relações eminentemente de direito privado, não tendo havido, em nenhum momento, qualquer referência expressa a que o art. 206, § 3º, V, do diploma codificado fosse aplicável à Fazenda Pública. Tampouco se poderia alegar omissão legislativa, uma vez que o legislador não repetiu a norma encartada no art. 178, § 10, VI, do CC-1916, que dispunha exatamente sobre o prazo prescricional nas ações ajuizadas contra o Poder Público.     

Na verdade, o STJ apenas confirmou, agora sob a sistemática dos recursos repetitivos, uma tese que paulatinamente já estava a predominar nas decisões das Turmas de direito público da Corte desde o início de 2012. Colaciono (grifos meus):

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANO MORAL. PRESCRIÇÃO. DANOS MORAIS. REVISÃO.  SÚMULA 7/STJ.

1. Cuidam os autos de ação de indenização decorrente de acidente automobilístico.

2. A jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que a prescrição contra a Fazenda Pública, mesmo em ações indenizatórias, rege-se pelo Decreto 20.910/1932.
3. O Tribunal a quo determinou a redução do quantum indenizatório, de acordo com a situação fática. Portanto, é inviável analisar a tese defendida no Recurso Especial, a qual busca afastar as premissas fáticas estabelecidas pelo acórdão recorrido. Aplicação da Súmula 7/STJ.
4. Agravo Regimental não provido.
(STJ, AgRg no AREsp 36.517/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 22/11/2011, p. DJe 23/02/2012).  

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NECESSIDADE DE RATIFICAÇÃO DO RECURSO DE APELAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL. ART. 1º DO DECRETO N. 20.910/1932.
1. A Primeira Seção, no julgamento dos EREsp 1.081.885/RR, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 13.12.2010, Dje 1º.2.2011, consolidou o entendimento segundo qual nas ações contra a Fazenda Pública aplica-se o prazo prescricional quinquenal, nos termos do art. 1º do Decreto n. 20.910/32, pois o Código Civil é um "diploma legislativo destinado a regular as relações entre particulares, não tendo invocação nas relações do Estado com o particular".
2. O recurso de apelação interposto em data anterior ao julgamento dos embargos de declaração depende de sua necessária ratificação, sob pena de ser tomado por intempestivo. (Precedente: REsp 1.291.489/PE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 6.12.2011, DJe 13.12.2011.)
Agravos regimentais improvidos.
(STJ, AgRg no AREsp 131.894/GO, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 19/04/2012, p. DJe 26/04/2012).  

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. PRAZO PRESCRICIONAL. DECRETO 20.910/32. QUINQUENAL. ACÓRDÃO EMBARGADO EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DA PRIMEIRA SEÇÃO. DIVERGÊNCIA SUPERADA. SÚMULA 168/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO
1. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o EREsp 1.081.885/RR, consolidou o entendimento no sentido de que o prazo prescricional aplicável às ações de indenização contra a Fazenda Pública é de cinco anos, previsto no Decreto  20.910/32, e não de três anos, por se tratar de norma especial que prevalece sobre a geral.
2. "Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado" (Súmula 168/STJ).
3. Agravo regimental não provido.
(STJ, AgRg no EREsp 1.200.764/AC, Primeira Seção, Rel. Min. Arnaldo Esteves, j. 23/05/2012, p. 06/06/2012).  

Dessa maneira, a inclinação jurisprudencial turmária, até então paulatina na Corte, em favor da prevalência do prazo quinquenal do Decreto 20.910/32 nas ações indenizatórias movidas contra a Fazenda Pública, consolidou-se definitivamente com o julgamento, sob a sistemática dos recursos repetitivos, do REsp 1.251.933/PR pela Primeira Seção do STJ.   
8 - Conclusão
No decorrer deste artigo, busquei explicar o contexto histórico em que se situa a discussão relativa ao prazo prescricional das pretensões indenizatórias movidas contra a Fazenda Pública. Com efeito, é preciso perceber que o debate se iniciou ao tempo do CC-1916, cujo regime de prescrição tinha por regra geral o prazo vintenário.

Essa circunstância levou muitos doutrinadores a se confundirem, acreditando que na redação original do CC-1916 a Fazenda Pública não gozaria de privilégio prazal, o que é manifestamente um equívoco, pois, à luz do art. 178, § 10, VI, do Código Civil revogado, já se notava que as pessoas jurídicas de direito público não estavam submetidas ao regime geral de prescrição vintenária, mas sim a um prazo mais favorável, estipulado pelo legislador em 5 anos.

Essa foi a tendência reproduzida com o Decreto 20.910/32, que praticamente repetiu, no seu art. 1º, a redação do art. 178, § 10, VI, do CC-1916, inovando apenas na extensão do prazo privilegiado, na medida em que aclarou que a prescrição de 5 anos aplicar-se-ia não apenas às pretensões constantes de demandas de natureza pessoal, mas também àquelas de natureza real como a quaisquer outras pretensões formuladas contra a Fazenda Pública.  

Com o advento do CC-2002 - e a consequente redução do prazo de prescrição aplicável à pretensão de reparação civil prevista no art. 206, § 3º, V, daquele diploma -, parte da doutrina inclinou-se em considerar que o prazo trienal do código civilista aplicar-se-ia aos entes fazendários. O argumento era que o elemento finalístico do Decreto 20.910/32, que foi o de dar tratamento favorecido à Fazenda Pública, autorizaria a aplicação do prazo de 3 anos estipulado pelo novo código, até porque o próprio art. 10 do Decreto 20.910/32 ressalvava a aplicabilidade, nas pretensões dirigidas à Fazenda Pública, de prazos de prescrição menores, eventualmente previstos na legislação esparsa. Com isso, restaria prejudicado o prazo quinquenal do decreto.

O STJ, no entanto, rejeitou essa argumentação doutrinária. Tendo em consideração a existência de uma antinomia aparente entre os prazos de prescrição trienal, do CC-2202, e o quinquenal, previsto no Decreto 20.910/32, considerou a controvérsia dirimível pelo critério da especialidade. Assim, ao julgar o REsp 1.251.933/PR, sob o rito dos recursos repetitivos (CPC, art. 543-C), aquele tribunal superior lavrou acórdão, onde ficou consignado que o prazo prescricional aplicável às pretensões indenizatórias movidas contra a Fazenda Pública é o de 5 anos, previsto no Decreto 20.910/32, que prevalece em face do prazo de 3 anos do CC-2002 (art. 206, § 3º, V), dada sua especialidade normativa.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. rev. ampl. e atual. até a Lei 12.587, de 3-1-2012. São Paulo: Atlas, 2012. 1250 p.

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 10ª ed. São Paulo: Dialética, 2012. 830 p.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, vol. 1. 10ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 856 p.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominaçã. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2003. 370 p.