quinta-feira, 20 de março de 2014

DA LEGITIMIDADE ATIVA "INTUITU PERSONAE" NAS AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE: ponderações sobre capacidade processual e capacidade postulatória no processo constitucional objetivo à luz do art. 103 da Constituição de 1988 e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Min. Rosa Weber, relatora da ADI 5084/DF no STF.
 

          Historicamente, o sistema estadunidense de controle difuso de constitucionalidade sempre predominou nas constituições brasileiras. O fato de o Procurador-Geral da República, nos textos das Constituições de 1946 e 1967, monopolizar a legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade era sintomático disso. Havendo apenas um agente apto a deflagrar o controle pela via direta, ficava claro o desprestígio conferido ao modelo austríaco, fundado no tribunal constitucional. Com a Constituição de 1969 não houve modificação no cenário. Manteve-se, com exclusividade, a condição de legitimado do Procurador-Geral da República.    

Por esse motivo, é comum a doutrina apontar que um dos elementos caracterizadores de uma mudança de paradigma no modelo de controle de constitucionalidade historicamente adotado no Brasil situa-se no art. 103 da Constituição de 1988. Nesse dispositivo, encontra-se o rol de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade.

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: 

I - o Presidente da República;

II - a Mesa do Senado Federal;

III - a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; 

V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; 

VI - o Procurador-Geral da República;

VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;

IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Se comparado com as cartas constitucionais anteriores, nota-se claramente uma ampliação no rol de legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade. O monopólio da ação direta, outrora outorgado com exclusividade ao Procurador-Geral da República, cede ante um novo paradigma de controle de constitucionalidade, nos marcos do qual a amplitude do rol de legitimados ao exercício do controle concentrado, com finalidade abstrata, sinaliza, a um só tempo, a priorização que a nova ordem constitucional confere ao modelo austríaco, em detrimento à prevalência do modelo estadunidense.

[...] a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial — ainda que não desejada — no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil.

A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), permitindo que muitas controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas.

Portanto, parece quase intuitivo que, por essa forma, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. (MENDES, 2009, p. 1151).

No entanto, em que pese a intenção manifesta do Poder Constituinte de 1988 em ampliar a utilização do modelo concentrado-abstrato de controle de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal, jurisprudencialmente, veio a edificar barreiras, de tal arte a restringir a faculdade de instauração do processo constitucional objetivo.

Nesse sentido, um primeiro discrímen levado a cabo pela jurisprudência do STF diz respeito à necessidade de demonstração de pertinência temática por parte daquele que propõe a ação. Por pertinência temática, entende a jurisprudência da Suprema Corte como sendo o nexo de afinidade entre os objetivos institucionais do órgão ou entidade e o conteúdo material do diploma legislativo processualmente impugnado.

Disso decorre a afirmação do caráter universal ou especial dos legitimados ativos. Assim, são legitimados ativos universais todos aqueles que estão autorizados a propor a ADI e a ADC sem necessidade de demonstração de pertinência temática. É o caso do Presidente da República (I), da Mesa do Senado Federal (II), da Mesa da Câmara dos Deputados (III), do Procurador-Geral da República (VI), do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (VII) e de partido político com representação no Congresso Nacional (VIII). Em contraposição, legitimados ativos especiais são aqueles que precisam demonstrar a pertinência temática, sob pena de restar descaracterizada a legitimidade ativa “ad causam”. Neste último grupo, incluem-se a Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal (IV); o Governador de Estado ou do Distrito Federal (V); e a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (IX).        

Exemplo de aplicação concreta da exigência de pertinência temática, como elemento caracterizador da legitimidade “ad causam” na ação direta de inconstitucionalidade, pode ser extraído do seguinte excerto da emenda de acórdão prolatado pelo STF:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL (ATRICON) - ENTIDADE DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL - LEGITIMIDADE ATIVA "AD CAUSAM" - AUTONOMIA DO ESTADO-MEMBRO - A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO- -MEMBRO COMO EXPRESSÃO DE UMA ORDEM NORMATIVA AUTÔNOMA - LIMITAÇÕES AO PODER CONSTITUINTE DECORRENTE - IMPOSIÇÃO, AOS CONSELHEIROS DO TRIBUNAL DE CONTAS, DE DIVERSAS CONDUTAS, SOB PENA DE CONFIGURAÇÃO DE CRIME DE RESPONSABILIDADE, SUJEITO A JULGAMENTO PELA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA - PRESCRIÇÃO NORMATIVA EMANADA DO LEGISLADOR CONSTITUINTE ESTADUAL - FALTA DE COMPETÊNCIA DO ESTADO-MEMBRO PARA LEGISLAR SOBRE CRIMES DE RESPONSABILIDADE - COMPETÊNCIA LEGISLATIVA QUE PERTENCE, EXCLUSIVAMENTE, À UNIÃO FEDERAL - PROMULGAÇÃO, PELA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, DA EC Nº 40/2009 - ALEGADA TRANSGRESSÃO AO ESTATUTO JURÍDICO-INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL E ÀS PRERROGATIVAS CONSTITUCIONAIS DOS CONSELHEIROS QUE O INTEGRAM - MEDIDA CAUTELAR REFERENDADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ATRICON - ENTIDADE DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL - PERTINÊNCIA TEMÁTICA - LEGITIMIDADE ATIVA "AD CAUSAM". - A ATRICON qualifica-se como entidade de classe de âmbito nacional investida de legitimidade ativa "ad causam" para a instauração, perante o Supremo Tribunal Federal, de processo de controle abstrato de constitucionalidade, desde que existente nexo de afinidade entre os seus objetivos institucionais e o conteúdo material dos textos normativos impugnados. Precedentes. [...] (STF, Tribunal Pleno, ADI 4190 MC-REF/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10/03/2010, p. DJe 11/06/2010).

Outro discrímen importante, identificável na jurisprudência do STF, tem elo com o pressuposto processual da capacidade postulatória. Com efeito, em se tratando de ação direta de inconstitucionalidade, nem todos os legitimados ativos elencados no art. 103 do texto constitucional estão aptos a veicular diretamente suas pretensões em juízo, sem o patrocínio de advogado habilitado. De ordinário, o magistério da Suprema Corte estabelece que todos os atores arrolados no art. 103 são dotados de capacidade processual e capacidade postulatória, portanto,. podem propor a ação direta de inconstitucionalidade incontinênti. A exceção fica por conta dos partidos políticos, das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional. É o que se depreende do seguinte julgado (grifo meu):

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO DE ORDEM. GOVERNADOR DE ESTADO. CAPACIDADE POSTULATÓRIA RECONHECIDA. MEDIDA CAUTELAR. DEFERIMENTO PARCIAL.

1. O governador do Estado e as demais autoridades e entidades referidas no art. 103, incisos I a VII, da Constituição Federal, além de ativamente legitimados à instauração do controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos, federais e estaduais, mediante ajuizamento da ação direta perante o Supremo Tribunal Federal, possuem capacidade processual plena e dispõem, ex vi da própria norma constitucional, de capacidade postulatória. Podem, em conseqüência, enquanto ostentarem aquela condição, praticar, no processo de ação direta de inconstitucionalidade, quaisquer atos ordinariamente privativos de advogado.

2. A suspensão liminar da eficácia e execução de leis e atos normativos, inclusive de preceitos consubstanciados em textos constitucionais estaduais, traduz medida cautelar cuja concretização deriva do grave exercício de um poder jurídico que a Constituição da República deferiu ao Supremo Tribunal Federal. A excepcionalidade dessa providência cautelar impõe, por isso mesmo, a constatação, hic et nunc, da cumulativa satisfação de determinados requisitos: a plausibilidade jurídica da tese exposta e a situação configuradora do periculum in mora. Precedente: ADIN nº. 96-9 - RO (Medida Liminar, DJ de 10/11/89). (STF, Tribunal Pleno, ADI 127 MC-QO/AL, Rel. Min. Celso de Mello, j. 20/11/1989, p. DJ 04/12/1992).

 A leitura da ementa supracitada deixa explícito que a consequência principal da capacidade postulatória atribuída aos legitimados do art. 103 da Constituição de 1988 é permitir-lhes acionar o sistema concentrado-abstrato independentemente da representação por advogado. O mesmo não se pode dizer dos partidos políticos, das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional, os quais deverão ser assistidos por um advogado habilitado junto à Ordem dos Advogados do Brasil, sob pena de a ação direta por eles ajuizada ser considerada incabível, a culminar com a negativa de seguimento. Daí se compreender a expressa ressalva inscrita no parágrafo único do art. 3º da Lei 9.868/99, ao aludir à imprescindibilidade do instrumento de procuração anexo à petição inicial naquelas hipóteses em que a houver a necessidade de patrocínio advocatício para a propositura da ação direta. Colaciono:

Art. 3º A petição indicará:

I - o dispositivo da lei ou do ato normativo impugnado e os fundamentos jurídicos do pedido em relação a cada uma das impugnações;

II - o pedido, com suas especificações.

Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de instrumento de procuração, quando subscrita por advogado, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias da lei ou do ato normativo impugnado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação.

Mas é preciso analisar com cuidado o teor dessa alegada plenitude de capacidade processual e capacidade postulatória. A possibilidade de postular diretamente em juízo, conferida à maioria dos legitimados pela Constituição no seu art. 103, tem o afã de incentivar a propositura da ação direta de inconstitucionalidade. Dessa maneira, o exercício do controle concentrado intensifica-se à medida que se amplia o rol de legitimados. É coerente assim pensar que a desnecessidade de assistência por advogado vai ao encontro desse ideal de priorização substancial do controle concentrado, característico do modelo prevalente de fiscalização da constitucionalidade que a Constituição de 1988 adotou. Ocorre que a dispensa do patrocínio por advogado não autoriza a prescindir do próprio legitimado, o qual deve figurar invariavelmente como autor da ação.         

Foi com base nessas premissas que a Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, negou seguimento à ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5084) ajuizada pelo Procurador-Geral do Estado de Rondônia. No caso concreto, a ação fora agitada com vistas a impugnar dispositivos de lei estadual rondoniense, que havia instituído o plano remuneratório das carreiras da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar estaduais. Para concluir pelo não cabimento da ação, a relatora procedeu a um outro discrímen no que se refere à jurisprudência assente na Suprema Corte. Segundo seu entendimento monocrático, a capacidade processual plena, ex vi do art. 103 da Constituição vigente, não autoriza a conclusão de que o texto constitucional contemplaria regra permissiva da propositura de ação direta de inconstitucionalidade pelos Estados-membros da Federação. Por outras palavras, as pessoas jurídicas de direito público interno, tal qual são as unidades federadas, não têm legitimidade para instaurar, na pessoa do seu Procurador-Geral, o processo constitucional objetivo de controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos. Para esse fim, é indispensável a subscrição da petição inicial pelo Governador de Estado ou do Distrito Federal.

Colaciono excerto da decisão monocrática em comento:

A jurisprudência iterativa desta Suprema Corte consagrou o entendimento de que, salvo os partidos políticos com representação no Congresso Nacional, as confederações sindicais e as entidades de classe de âmbito nacional (art. 103, VIII e IX, da Constituição da República), os demais legitimados à propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, I a VII, da CF) ostentam capacidade processual plena.

Lado outro, o art. 103 da Constituição da República não contempla regra que legitime os Estados Federados, na condição de pessoas jurídicas de direito público interno, a instaurarem, na pessoa do seu Procurador-Geral, o controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos.

O art. 103, V, da Lei Maior, em particular, refere-se ao Governador de Estado ou do Distrito Federal, e não ao ente federado. Trata-se, pois, de legitimação conferida pela norma constitucional ao Chefe do Poder Executivo local em caráter intuitu personae, razão pela qual a eles se reconhece, inclusive, excepcional jus postulandi, como decorrência do exercício da função pública. É o que ficou assentado no julgamento da ADI 127 MC-QO/AL (Relator Ministro Celso de Mello, DJ 04.12.1992).

[...]

Assim, na hipótese de ação direta proposta por autoridade cuja legitimação ativa tem supedâneo no art. 103, V, da Carta Política, cabe ao próprio Governador de Estado ou do Distrito Federal subscrever a petição inicial, sendo-lhe facultado fazê-lo isoladamente ou em conjunto com o Procurador-Geral do Estado ou advogado habilitado.

No caso concreto, observa-se que a Ministra relatora, valendo-se do precedente firmado no julgamento da ADI 127 MC-QO/RJ, entendeu incabível a ação na espécie, haja vista a petição inicial ter sido subscrita tão somente pelo Procurador-Geral do Estado de Rondônia. Sem a assinatura do próprio Governador, a legitimidade que se poderia extrair do art. 103 da Constituição fica afastada.

Tal posicionamento, de certa maneira, amolda-se a uma tendência identificável no repositório jurisprudencial da Corte Suprema, no sentido de restringir a amplidão interpretativa da legitimidade “ad causam” no processo constitucional objetivo. Produto dessa inclinação é o aresto assentado no julgamento da ADI 2130, ocasião em que o STF definiu que os Estados-membros não possuem legitimidade para recorrer em sede de controle normativo abstrato, legitimidade esta só atribuível ao próprio Governador – e, ainda assim, em casos excepcionais.

Eis a ementa do julgado (grifo meu):

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE AJUIZADA POR GOVERNADOR DE ESTADO - DECISÃO QUE NÃO A ADMITE, POR INCABÍVEL - RECURSO DE AGRAVO INTERPOSTO PELO PRÓPRIO ESTADO-MEMBRO - ILEGITIMIDADE RECURSAL DESSA PESSOA POLÍTICA - INAPLICABILIDADE, AO PROCESSO DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO, DO ART. 188 DO CPC - RECURSO DE AGRAVO NÃO CONHECIDO. O ESTADO-MEMBRO NÃO POSSUI LEGITIMIDADE PARA RECORRER EM SEDE DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO. - O Estado-membro não dispõe de legitimidade para interpor recurso em sede de controle normativo abstrato, ainda que a ação direta de inconstitucionalidade tenha sido ajuizada pelo respectivo Governador, a quem assiste a prerrogativa legal de recorrer contra as decisões proferidas pelo Relator da causa (Lei nº 9.868/99, art. 4º, parágrafo único) ou, excepcionalmente, contra aquelas emanadas do próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal (Lei nº 9.868/99, art. 26). NÃO HÁ PRAZO RECURSAL EM DOBRO NO PROCESSO DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. - Não se aplica, ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade, a norma inscrita no art. 188 do CPC, cuja incidência restringe-se, unicamente, ao domínio dos processos subjetivos, que se caracterizam pelo fato de admitirem, em seu âmbito, a discussão de situações concretas e individuais. Precedente. Inexiste, desse modo, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de o prazo recursal ser computado em dobro, ainda que a parte recorrente disponha dessa prerrogativa especial nos processos de índole subjetiva. (STF, Tribunal Pleno, ADI 2130 AgR/SC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 03/10/2001, p. DJ 14/12/2001).

Penso que a inclinação restritiva da legitimidade “ad causam” nas ações diretas de inconstitucionalidade, tendência que procurei evidenciar por meio do exame da jurisprudência do STF, não compromete o propósito ampliativo do exercício do modelo concentrado de fiscalização da validade das leis e atos normativos. Nesse sentido, é razoável cogitar as consequências de se permitir o ajuizamento de ação direta de constitucionalidade sem o assentimento expresso do Governador. Seria possível supor que um Procurador-Geral de Estado, à revelia do Chefe do Poder Executivo, manejasse a ação, o que poderia, ao fim e ao cabo, afetar a própria governabilidade. Afinal, compete ao advogado público prestar assessoramento jurídico ao Poder Executivo, o que acarreta submissão à política pública determinada pelo Governo, contanto que observadas as balizas legais.

No caso da ADI 5084, o que houve foi precisamente isto: o Procurador-Geral do Estado ajuizou ação para impugnar dispositivos de lei estadual sem que o Governador tivesse subscrito a petição inicial. É óbvio que aqui se poderia invocar o princípio da cooperação e abrir prazo para a regularização processual. Mas tal medida revelou-se incabível no caso concreto, uma vez que o próprio Governador veio aos autos manifestar sua discordância quanto à possibilidade de ratificação da peça exordial.

Logo, forte na jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal nessa matéria, há de se concluir que, sempre que a ação direta de inconstitucionalidade tiver sido proposta em nome do Governador do Estado, a legitimidade “ad causam” só restará perfectível caso tenha havido o assentimento manifesto do Chefe do Poder Executivo, a subscrever a petição inicial, seja isoladamente (visto que detentor de capacidade postulatória especial), seja em conjunto com o Procurador-Geral do Estado ou outro advogado habilitado nos autos. E o motivo não é outro senão a constatação de que a legitimação prevista no inc. V do art. 103 da Constituição é conferida ao Governador do Estado ou do Distrito Federal em caráter intuitu personae, só assim se justificando a excepcional capacidade postulatória especial que lhes é imputada ex vi da norma constitucional.      

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 21 de mar. 2014. 

BRASIL. Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 21 de mar. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 127 MC-QO/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 20/11/1989, p. DJ 04/12/1992. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 21 de mar. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4190 MC-REF/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10/03/2010, p. DJe 11/06/2010. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 21 de mar. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2130 AgR/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 03/10/2001, p. DJ 14/12/2001. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 21 de mar. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5084/DF, Julgamento Monocrático, Rel. Min. Rosa Weber, j. 20/02/2014, p. DJe 25/02/2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 21 de mar. 2014.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Ginet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. 1486 p.

domingo, 9 de março de 2014

PRINCÍPIO PROTETOR DO DIREITO DO TRABALHO E O DANO MORAL DECORRENTE DE CONDIÇÕES PRECÁRIAS DE HIGIENE NO AMBIENTE LABORAL: análise da jurisprudência do TST

Min. Maurício Godinho Delgado, relator do RR 43-41.2011.5.02.0463/SP no TST.
Ouvindo atualmente: "Friday Night in San Francisco" (1980), 
de Al Di Meola, John McLaughlin e Paco de Lucía.
Um dos álbuns de jazz que mais aprecio. Puro virtuosismo violonístico!
 
A consulta à jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho tem revelado a inclinação da Corte em censurar a prática nefasta de certos empregadores brasileiros, os quais, em exercício manifestamente abusivo do poder de direção da atividade de labor, utilizam-se do expediente vil da restrição ao uso do banheiro. São casos nos quais os empregados são submetidos a um constrangimento absurdo, que lhes impõe punição, de todo vexatória e humilhante, pelo uso do aposento sanitário fora de intervalos predeterminados durante a jornada. Obviamente, tais condições caracterizam ato ilícito do empregador e ensejam indenização por dano moral.

Entretanto, o exercício abusivo do poder diretivo do empregador é experiência que conta os mais diversos subterfúgios, a lesar a dignidade da pessoa humana do trabalhador. É suficiente pensar na situação seguinte: um pintor industrial laborava em condições sub-humanas para a empresa Wenger Jateamentos Ltda. No banheiro, não havia papel higiênico, tanto que era obrigado a levá-lo de casa. Além disso, no local de labor não havia água potável, o que obrigava o pintor a beber água de poço, cheia de lodo e sujeiras. Tal descrição remete a caso concreto, que foi submetido ao crivo do Poder Judiciário trabalhista. Mas, independentemente da tutela jurisdicional, julgando-se a situação pelo bom senso (ou pelo simples senso de justiça), parece fora de dúvida que as circunstâncias denotam uma indisfarçável lesão extrapatrimonial. Ou seria razoável exigir que o empregado, não obstante a proteção constitucional ao valor social do trabalho (CF, art. 1º, IV, c/c art. 170, caput), pudesse ser submetido a condições de labor degradantes, logo, não fazendo jus à indenização por dano moral?    

Infelizmente, a 2º Turma do TRT2 (SP) entendeu que seria razoável a exigência ao arrepio das normas de direitos fundamentais. Por isso, ao apreciar o caso concreto do pintor industrial submetido a condições precárias de higiene no local de trabalho, entendeu que não assistia razão ao reclamante e prolatou acórdão, a afastar a indenização por danos morais requerida. Eis trecho do capítulo do acórdão a que me refiro (grifos meus):

b) Dos danos morais

Partindo da premissa de que o fundamento jurídico para se estabelecer indenização, nos moldes vindicados pelo demandante, no âmbito do Direito do Trabalho - do qual o direito comum é fonte subsidiária, na forma do parágrafo único do artigo 8º da CLT, a autorizar o equacionamento da aplicabilidade dos artigos 186 e 927 do Código Civil Brasileiro - é o mesmo da reparação do dano como princípio geral de direito, de conformidade com o inciso III do artigo 1º e incisos V, X, XXXIV e XXXV do artigo 5º, ambos da Constituição Federal, na percuciente análise dos contornos da lide, revela-se a viabilidade do acatamento das razões recursais.

Sem perder de vista que a lesão moral é a que afeta o ser humano de maneira especialmente intensa, vulnerando profundos conceitos de honorabilidade, atingindo o foro íntimo, abalando estruturas psíquicas, exigindo-se, por esses motivos, que o fato apontado como causador seja extremamente grave, no caso em discussão, porque as condições reputadas adversas à saúde (não fornecimento de produtos higiênicos e água potável) podiam, conforme o próprio relato exordial, ser elididos pelo próprio trabalhador, não remanesce subsídio para a caracterização de abalo psíquico justificador da reparação que, via de consequência, deve ser expungida da condenação.

(...)

ACORDAM. os Magistrados da 2ª Turma do Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região em NÃO CONHECER dos documentos ns. 02/10 e 12/262, do volume de apartados, e CONHECER e DAR PARCIAL PROVIMENTO ao recurso ordinário interposto pela reclamada, para excluir da condenação o pagamento de indenização por danos morais e determinar a observância da ordem Judicial emanada do MM. Juízo Cível no que pertine à retenção de montante devido a título de pensão alimentícia, mantendo, no mais, a r. sentença de origem, de conformidade com a fundamentação do voto da Relatora.”   

Ora, a decisão supra entendeu incabível o pagamento de danos morais ao reclamante. Justificou-se, então, escorada na tese segundo a qual o trabalhador poderia ter eliminado as condições adversas de trabalho às quais estava submetido. Em outras palavras, a 2º Turma do TRT2 entendeu que o empregado poderia perfeitamente levar o papel higiênico de casa, bem como sua água potável, sem que isso lhe causasse qualquer tipo de abalo indenizável. 

À evidência, essa é uma decisão que colide diretamente com o princípio protetor do Direito do Trabalho. Com efeito, o subsistema iustrabalhista está estruturado normativamente na circunstância de o empregado ser o polo vulnerável da relação de emprego. Sendo assim, a parte mais fraca da relação é merecedora de uma proteção especial. Disso decorre que o princípio protetor desdobra-se em três subprincípios: 1) in dubio pro operario; 2) aplicação da norma mais favorável; e 3) condição mais benéfica. Em todas as hipóteses, contudo, o que se quer mesmo é garantir que o polo mais fraco da relação de trabalho fique protegido, assegurando-lhe uma igualdade material (substancial), em detrimento a uma igualdade de cunho meramente formal.        

Dessa maneira, se o empregado é o polo mais fraco da relação jurídico-trabalhista, o empregador terá de arcar com alguns deveres. Entre eles, encontra-se, por exemplo, o de fornecer os equipamentos de proteção individual (EPI), bem como o de instruir os funcionários quanto às precauções necessárias para evitar acidentes de trabalho. É o que decorre do art. 157 da CLT:

Art. 157 - Cabe às empresas: 

I - cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;

II - instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais; 

III - adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente; 

IV - facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente. 

Esse mesmo raciocínio também vale para as condições de higiene do ambiente de trabalho. Se o empregador não assegura que o local de labor seja digno, põe-se a violar princípio constitucional regente da ordem econômica, que, nos termos do caput do art. 170 da Constituição, visa a “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Inadmissível, portanto, como decidiu o TRT2, inverter o ônus de garantia das condições necessárias à salubridade do ambiente laborativo, atribuindo-o ao empregado, polo vulnerável da relação.  

A questão foi submetida ao TST. Sua Terceira Turma então, felizmente, reformou o acórdão do Regional. Prevaleceu o entendimento de que a privação de condições dignas para higiene pessoal é fator que desencadeia o dano moral. O aresto ficou ementado da maneira seguinte:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONDIÇÕES PRECÁRIAS DE HIGIENE. Demonstrado no agravo de instrumento que o recurso de revista preenchia os requisitos do art. 896 da CLT, quanto à indenização por dano moral, dá-se provimento ao agravo de instrumento, para melhor análise da arguição de violação do art. 5º, X, da CF suscitada no recurso de revista. Agravo de instrumento provido.

RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONDIÇÕES PRECÁRIAS DE HIGIENE. O direito à indenização por danos morais encontra amparo no art. 186 do Código Civil, c/c art. 5º, X, da CF, bem como nos princípios basilares da nova ordem constitucional, mormente naqueles que dizem respeito à proteção da dignidade humana e da valorização do trabalho humano (art. 1º, III e IV, da CF/88). A conquista e afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, naturalmente, também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural - o que se faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego. Na hipótese dos autos, embora tenha sido consignada no acórdão a informação de que o ambiente de trabalho não dispunha de produtos higiênicos e água potável - do que se conclui que os trabalhadores eram privados de condições dignas para higiene pessoal -, o Tribunal Regional absolveu a Reclamada da condenação ao pagamento de indenização, por entender que tais circunstâncias não ensejam a ocorrência do dano. Contudo, as condições de trabalho a que se submeteu o Reclamante atentaram contra sua dignidade e integridade psíquica ou física, ensejando a reparação moral, conforme autorizam os artigos 186 e 927 do Código Civil, bem assim o inciso X do art. 5º da Constituição Federal. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido. (TST, 3º Turma, RR-43-41.2011.5.02.0463, Rel. Min. Maurício Godinho Delgado, j. 21/08/2013, p. 23/08/2013).   

Portanto, consoante entendeu a Terceira Turma do TST, é dever do empregador assegurar aos seus empregados condições dignas de higiene pessoal, sob pena de responder pelo dano moral decorrente do atentado à dignidade e integridade física e psíquica do trabalhador, tudo com arrimo nos arts. 186 e 927 do Código Civil, além do art. 5º, X, da Constituição de 1988. Trata-se de entendimento acertado, pois se harmoniza com a tutela de direitos fundamentais que lastreia todo o ordenamento jurídico pátrio e, notadamente, confere proteção jurídica ao trabalhador brasileiro.   

Finalmente, há um detalhe que constou nos autos desse caso concreto merecedor de atenção. Segundo relatado no juízo a quo, as condições sub-humanas de higiene não valiam para todos na empresa. Nos banheiros da secretaria e da diretoria havia tanto papel higiênico quanto água potável. Apenas os empregados subalternos, caso do pintor industrial, eram submetidos à degradação humilhante da falta de asseio laboral. A observação desse detalhe cumpre, assim, a função de potencializar a injustiça do caso concreto, ao passo que reforça a importância da Justiça do Trabalho na garantia da força normativa da Constituição – máxima do princípio da dignidade da pessoa humana do trabalhador - contra os abusos do capital privado.  
 
REFERÊNCIAS
 
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 09 de mar. 2014.
 
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 09 de mar. 2014.
 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Terceira Turma. Recurso de Revista 43-41.2011.5.02.0463, Rel. Min. Maurício Godinho Delgado, j. 21/08/2013, p. DEJT 23/08/2013. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 09 de mar. 2014.

segunda-feira, 3 de março de 2014

MANDATO "IN RE IPSA" NA ADVOCACIA E O SISTEMA DA DUPLA REPRESENTATIVIDADE DA FAZENDA PÚBLICA MUNICIPAL: ponderações sobre a prescindibilidade do instrumento procuratório e a possibilidade da contratação de advogados privados para o assessoramento jurídico dos Municípios à luz da jurisprudência do STJ e do TST

Min. Maurício Godinho Delgado, relator do RR 81100-43.2009.5.01.0281 no TST.
 
Ouvindo atualmente: "Entre dos Aguas" (1975) de Paco de Lucía.
Este artigo é dedicado ao mestre Paco de Lucía (1947-2014),
virtuose do violão, um dos maiores músicos do século XX.  
Sua morte não apagará a perenidade da obra do gênio
que universalizou o flamenco, legado de ouvida obrigatória a todo violonista.
 
1 – Introdução
Do ponto de vista jurídico-processual, o termo “capacidade” remete a conceito duplamente relevante. De um lado, reporta-se à capacidade do sujeito de adquirir direitos e contrair obrigações (aptidão para ser sujeito processual). De outro lado, refere-se à legitimidade de que necessariamente devem estar revestidas as partes para a prática de atos processuais (legitimatio ad processum).
Na primeira acepção, a capacidade constitui corolário da personalidade jurídica, cuja previsão no direito material encontra-se no art. 1º do Código Civil:

Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

Em seguida, o art. 2º do mesmo códex estabelece o nascimento com vida como sendo o marco distintivo do início da personalidade judiciária:

Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

A norma acima liga-se à pessoa natural, evidentemente. No entanto, a capacidade de ser parte, concebida a partir do reconhecimento da personalidade pelo direito material, é ampla. Dessa maneira, abrange também os entes despersonalizados – que são aqueles aos quais a lei confere capacidade de ser parte, não obstante não detenham personalidade jurídica - e as pessoas jurídicas. Para estas últimas, o Código Civil é expresso em fixar o momento em que se tem por juridicamente existente a personalidade:

Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Sobre o assunto, Didier Jr. (2012, p. 247) leciona:

A capacidade de ser parte é a personalidade judiciária: aptidão para, em tese, ser sujeito da relação jurídica processual (processo) ou assumir uma situação jurídica processual (tutor, réu, assistente, excipiente, excepto etc).
Dela são dotados todos aqueles que tenham personalidade material – ou seja, aqueles que podem ser sujeitos de uma relação jurídica material, como as pessoas naturais e as jurídicas -, como também o nascituro, o condomínio, o nondum conceptus, a sociedade de fato, sociedade não-personificada e a sociedade irregular – as três figuras estão reunidas sob a rubrica sociedade em comum, art. 986 do CC-2002 -, os entes formais (como o espólio, massa falida, herança jacente etc.), as comunidades indígenas ou grupos tribais e os órgãos públicos despersonalizados (Ministério Público, PROCON, Tribunal de Contas etc.).
Trata-se de noção absoluta: não se cogita de alguém que tenha meia capacidade de ser parte; ou se tem ou não se tem personalidade judiciária. 

Malgrado sua amplitude, a capacidade de ser parte é inconfundível com a capacidade de estar em juízo. Com efeito, o fato de determinado sujeito de direitos dispor de personalidade jurídica não o autoriza a praticar de per si atos jurídicos processuais. Sendo assim, exige-se que, além da capacidade de ser parte propriamente dita, ele detenha também a legitimatio ad processum, isto é, capacidade processual, a capacidade de estar em juízo. Daí advém a noção de representação (ou “presentação”, como quer parte da doutrina sob a influência de Pontes de Miranda), a acarretar a realização de atos processuais pelo representante.
No tocante às pessoas jurídicas e aos entes formais, o art. 12 do CPC compila as regras que disciplinam sua capacidade processual. In verbis:

Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:

I - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, por seus procuradores;

II - o Município, por seu Prefeito ou procurador;

III - a massa falida, pelo síndico;

IV - a herança jacente ou vacante, por seu curador;

V - o espólio, pelo inventariante;

VI - as pessoas jurídicas, por quem os respectivos estatutos designarem, ou, não os designando, por seus diretores;

VII - as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração dos seus bens;

VIII - a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil (art. 88, parágrafo único);

IX - o condomínio, pelo administrador ou pelo síndico.

§ 1º Quando o inventariante for dativo, todos os herdeiros e sucessores do falecido serão autores ou réus nas ações em que o espólio for parte.

§ 2º - As sociedades sem personalidade jurídica, quando demandadas, não poderão opor a irregularidade de sua constituição.

§ 3º O gerente da filial ou agência presume-se autorizado, pela pessoa jurídica estrangeira, a receber citação inicial para o processo de conhecimento, de execução, cautelar e especial.

Finalmente, há que se considerar ainda um terceiro elemento, a saber, a capacidade postulatória. Significa dizer que o representante da parte, a fim de praticar os atos processuais, deve estar autorizado a postular em juízo. De ordinário, tal capacidade é cometida ao advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, a teor do que preconiza o art. 1º, I, da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil – EAOAB):

   Art. 1º São atividades privativas de advocacia:

        I - a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais; (Vide ADIN 1.127-8)

Todavia, há hipóteses em que a assistência do advogado habilitado é dispensada pela lei. É o que se nota, por exemplo, no § 1º do dispositivo supracitado relativamente à legitimidade universal para a impetração do remédio heroico do habeas corpus:

    Art. 1º omissis

    § 1º Não se inclui na atividade privativa de advocacia a impetração de habeas corpus em qualquer instância ou tribunal.

Outra hipótese de dispensa da capacidade postulatória advocatícia dá-se nos Juizados Especiais Cíveis, nas causas até o teto de vinte salários mínimos, consoante prevê o art. 9º da Lei 9.099/95:

  Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória.

        § 1º Sendo facultativa a assistência, se uma das partes comparecer assistida por advogado, ou se o réu for pessoa jurídica ou firma individual, terá a outra parte, se quiser, assistência judiciária prestada por órgão instituído junto ao Juizado Especial, na forma da lei local.

        § 2º O Juiz alertará as partes da conveniência do patrocínio por advogado, quando a causa o recomendar.

        § 3º O mandato ao advogado poderá ser verbal, salvo quanto aos poderes especiais.

Entretanto, tais exceções só confirmam a regra segundo a qual as partes devem estar assistidas por advogado regularmente habilitado junto à Ordem dos Advogados do Brasil. Só assim se aperfeiçoa a capacidade postulatória.

2 – Teoria dos pressupostos processuais e representação da parte
A dupla faceta teórica do conceito de capacidade, abordada acima, com o acréscimo necessário da capacidade postulatória, importa considerações de ordem fundamental na teoria do processo. O motivo é que esses elementos assumem a preponderância no estudo dos pressupostos processuais.

Pode-se afirmar que são esses [agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei] os requisitos mínimos de validade de uma relação jurídica de direito material. No campo do processo, a relação jurídica processual também tem seus requisitos de validade e de existência, chamados de pressupostos processuais. Trata-se de matérias preliminares, essencialmente ligadas a formalidades processuais, que devem ser analisadas antes de o juiz enfrentar o pedido do autor. (NEVES, 2010, p. 54).

Desse modo, não obstante as fundas divergências doutrinárias que pesam sobre o assunto, é possível classificar os pressupostos processuais da maneira seguinte:

a)      Pressupostos processuais de existência: investidura ou órgão jurisdicional, capacidade de ser parte, demanda;

b)      Pressupostos processuais de validade: competência, imparcialidade, capacidade processual, capacidade postulatória, perempção, litispendência, coisa julgada, convenção de arbitragem, citação válida, petição inicial apta, pagamento de custas, transação, regularidade formal.   

Examinando-se esses pressupostos, fica claro que a capacidade postulatória é pressuposto processual de validade. Como, em princípio, à parte não é dado postular diretamente em juízo, passa a depender da assistência de um representante – o advogado.
A fim de que se possa aferir a regularidade da representação, idônea a confirmar a capacidade postulatória da parte que vai a juízo, exige-se, em regra, que seja apresentada o instrumento de procuração. Caso o advogado da parte não o faça, caracteriza-se irregularidade na representação da parte, passível de ser sanada com as sanções do art. 13 do CPC:

Art. 13. Verificando a incapacidade processual ou a irregularidade da representação das partes, o juiz, suspendendo o processo, marcará prazo razoável para ser sanado o defeito.

Não sendo cumprido o despacho dentro do prazo, se a providência couber:

I - ao autor, o juiz decretará a nulidade do processo;

II - ao réu, reputar-se-á revel;

III - ao terceiro, será excluído do processo.

Evidente que, se o autor não sanar o vício de representação, caberá ao juiz extinguir o processo sem resolução do mérito (CPC, art. 267, IV).  
 
3 – Sistema da dupla representatividade da Fazenda Pública municipal
No caso da Fazenda Pública, sua representação compete, de ordinário, aos procuradores judiciais. Estes se organizam em carreiras próprias, providas mediante concurso público, de conformidade com a estrutura estipulada pelo texto constitucional. Assim, no âmbito federal, tem-se a Advocacia-Geral da União (art. 131), ao passo que no âmbito estadual e distrital existem as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal (art. 132).
A Constituição de 1988, no entanto, não dispôs expressamente a respeito da estrutura de representação judicial dos Municípios. Por esse motivo, ao ente municipal, aplica-se o sistema de dupla representatividade estatuído no art. 12, II, do CPC:

Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:

I - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, por seus procuradores;

II - o Município, por seu Prefeito ou procurador.

Nota-se que, enquanto o inc. I é expresso em atribuir a representação aos procuradores a representação em juízo da Fazenda Pública federal, estadual e distrital, o inciso seguinte faculta a possibilidade de a Fazenda Pública municipal ser representada pelo prefeito ou pelo procurador.
Quando a lei processual permite a representação judicial do Município pelo prefeito, é preciso esclarecer que não se está a atribuir ex vi legis capacidade postulatória ao alcaide. A norma permite tão somente que o chefe do Executivo receba citações, ato contínuo constituindo advogado que possa atuar no feito validamente, em face de sua capacidade postulatória. Tal prescrição do Código de Processo é clara decorrência da inexistência de obrigatoriedade legal a impor que os Municípios criem a Procuradoria Municipal. Logo, abre-se espaço para a contratação de advogados particulares.
 
4 – Representação judicial da Fazenda Pública e obrigatoriedade de juntada do instrumento de mandato: o posicionamento do STJ
Nesse contexto, questão importante constitui em saber se, em se tratando de representação judicial da Fazenda Pública, há necessidade de fazer prova nos autos da juntada da procuração. Cunha (2012, p. 19, grifo do autor) entende que não e argumenta:

Em se tratando da Fazenda Pública, sua representação é feita, via de regra, por procuradores judiciais, que são titulares de cargos públicos privativos de advogados regularmente inscritos na OAB, detendo, portanto, capacidade postulatória. Como a representação decorre de lei, é prescindível a juntada de procuração, de forma que os procuradores representam a Fazenda Pública sem necessidade de haver procuração, eis que decorre do vínculo legal mantido entre a Administração Pública e o procurador.
Vale dizer que os membros da advocacia pública são advogados, a quem se confere a capacidade postulatória, ou seja, a possibilidade de postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário.  

A argumentação do autor é convincente e harmoniza-se com facilidade à estrutura de representação da Fazenda Pública em juízo nos planos federal e estadual/distrital, haja vista a existência de previsão na Constituição de que o assessoramento jurídico do Poder Executivo far-se-á com exclusividade pelos procuradores. Todavia, idêntica facilidade não assoma em ralação ao ente munícipe, dada a vigência do sistema de dupla representatividade a partir do art. 12, II, do CPC. De fato, como o ordenamento não cometeu invariavelmente aos procuradores a representação judicial dos Municípios, abre-se a possibilidade da contratação de advogados privados, impondo-se perquirir acerca da necessidade da juntada de procuração, a fim de atestar a regularidade formal da representação fazendária municipal.
A esse respeito, a jurisprudência do STJ inclina-se em considerar dispensável a juntada do referido mandato, senão vejamos (grifos meus):

PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – PETIÇÃO RECURSAL SUBSCRITA POR PROCURADOR DO MUNICÍPIO - PROCURAÇÃO – DESNECESSIDADE.
1. A representação processual de município independe de instrumento de mandato, desde que seus procuradores estejam investidos na condição de servidores municipais, por se presumir conhecido o mandato pelo seu título de nomeação ao cargo.
2. Na espécie, não há qualquer dado que indique irregularidade na representação processual.
3. Recurso Especial provido. (STJ, T2 – Segunda Turma, REsp 1135608/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 20/10/2009, p. DJe 05/11/2009).    

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. PETIÇÃO RECURSAL SUBSCRITA POR PROCURADOR DO MUNICÍPIO. PROCURAÇÃO. DESNECESSIDADE.
1. É dispensável a exibição pelos procuradores de município do necessário instrumento de mandato judicial, desde que investidos na condição de servidores municipais, por se presumir conhecido o mandato pelo seu título de nomeação. Precedentes.
2. Ademais, o endereço indicado pelo Procurador Municipal para citação é o da Prefeitura de Nova Iguaçu, o que ratifica a capacidade postulatória.
3. Agravo Regimental não provido. (STJ, T2 – Segunda Turma, AgRg no Ag 1385162/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 28/06/2011, p. DJe 01/09/2011).    

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ART. 535 DO CPC. OMISSÃO. CONFIGURADA. PETIÇÃO RECURSAL SUBSCRITA POR PROCURADOR DO MUNICÍPIO. PROCURAÇÃO. DESNECESSIDADE. REDISCUSSÃO DA CONTROVÉRSIA. IMPOSSIBILIDADE.
1. No julgamento do Agravo Regimental, a Turma não apreciou o argumento relativo ao erro material da decisão monocrática - Embargos parcialmente acolhidos para sanar a omissão. É necessário corrigir o vício e, como conseqüência, reconhecer a ausência de prequestionamento do art. 730 do CPC. Incidência da Súmula 282/STF.
2. É dispensável a exibição pelos procuradores de município do necessário instrumento de mandato judicial, desde que investidos na condição de servidores municipais, por se presumir conhecido o mandato pelo seu título de nomeação. Precedentes do STJ
3. Os Embargos Declaratórios não constituem instrumento adequado para a rediscussão da matéria de mérito.
4. Embargos de Declaração parcialmente acolhidos, com efeito modificativo, para sanar o vício apontado. (STJ, T2 – Segunda Turma, EDcl no AgRg no Ag 1385162/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 20/10/2011, p. DJe 24/10/2011).    

Como se observa, a jurisprudência do STJ estabeleceu um discrime, a fim de determinar a imprescindibilidade ou não da exibição do instrumento de mandato pelos procuradores de Município. Nesse sentido, entende o tribunal que essa necessidade só ocorrerá caso o representante da Fazenda Pública municipal não ostente a qualidade de servidor do Município, mediante prévia nomeação.    
 
5 – Representação judicial da Fazenda Pública municipal e a possibilidade de instituição de mandato para advogado privado: a posição do TST
É interessante notar como a premissa que guiou a fixação dos precedentes do STJ na matéria, sobretudo embasada no art. 12, II, do CPC, vai ao encontro do pensamento esposado em outro tribunal superior brasileiro: o TST.
A questão aludida veio à lume por ocasião do julgamento do RR 81100-43.2009.5.01.0281. Nesse precedente, a Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho deparou-se com a situação seguinte: em fevereiro de 2009, um pintor de automóveis da cidade fluminense de Campos de Goytacazes ajuizou reclamação contra a tomadora e contra a Prefeitura, a objetivar o recebimento de parcelas trabalhistas. Em razão disso, em junho de 2010, o Procurador-Geral do Município substabeleceu poderes a uma advogada, ocupante do cargo de assistente jurídico do ente munícipe. O substabelecimento em favor da advogada foi contestado pelo reclamante, motivo pelo qual o Tribunal Regional do Trabalho de 1ª Região (TRT1) recusou a subscrição para a advogada. Segundo entendeu o Regional, o Município não comprovou que a advogada era efetivamente procuradora municipal, além disso, interpretando o inc. II do art. 12 do CPC, lavrou o entendimento de que era inadmissível o patrocínio privado do ente público.
Atenta ao ponto, a Terceira Turma do TST reformou a decisão do Regional. Na oportunidade, fixou-se a tese de que não há qualquer irregularidade no fato de um município ser representado judicialmente por advogada integrante do seu quadro funcional, e não apenas por uma procuradora municipal. Vejamos como ficou ementado o dispositivo do acórdão:  

Decisão: por unanimidade, conhecer do recurso de revista por violação do art. 37, caput, do CPC; e no mérito, dar-lhe provimento para determinar o retorno dos autos ao eg. TRT para que, afastada a irregularidade de representação, proceda à análise e julgamento do recurso do Município, como entender de direito. (TST, Terceira Turma, RR 81100-43.2009.5.01.0281/RJ, Rel. Min. Maurício Godinho Delgado, j. 26/02/2014, acórdão pendente de publicação).    

Ao proferir seu voto, o relator, Min. Maurício Godinho Delgado, fez questão de notar que a tese esposada pelo Regional estava divorciada do entendimento cristalizado nos incisos do enunciado nº 436 da súmula de jurisprudência do TST. Colaciono:

Súmula nº 436 do TST

REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. PROCURADOR DA UNIÃO, ESTADOS, MUNICÍPIOS E DISTRITO FEDERAL, SUAS AUTARQUIAS E FUNDAÇÕES PÚBLICAS. JUNTADA DE INSTRUMENTO DE MANDATO (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 52 da SBDI-I e inserção do item II à redação) - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 

I - A União, Estados, Municípios e Distrito Federal, suas autarquias e fundações públicas, quando representadas em juízo, ativa e passivamente, por seus procuradores, estão dispensadas da juntada de instrumento de mandato e de comprovação do ato de nomeação. 

II - Para os efeitos do item anterior, é essencial que o signatário ao menos declare-se exercente do cargo de procurador, não bastando a indicação do número de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil.

Para o relator, em decisão acompanhada unanimemente pela Turma, a restrição imposta na decisão do TRT1, no sentido de que o ente público somente pode atuar em processos judiciais trabalhistas por meio de procurador nomeado e empossado em cargo público específico, vedada a constituição de advogado por mandato expresso, não encontra respaldo em lei e constitui manifesta afronta ao devido processo legal.  
Ora, a decisão da Terceira Turma do TST é irrepreensível. De fato, diferentemente do que sucede na representação judicial das Fazendas Públicas federal e estadual, cuja estrutura organizacional foi estabelecida no texto da Constituição de 1988, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro lei a cometer, de modo incontornável, a função de assessoramento jurídico do Poder Executivo municipal a procuradores. O legislador excepcionou a regra constitucional de provimento dos cargos de advogados estatais mediante concurso público, motivo pelo qual inclusive se admite que o Prefeito figure como órgão passível de citação nas demandas movidas contra o Município (sistema da dupla representação). Sem embargo do fato de o alcaide não dispor de capacidade postulatória para praticar atos jurídicos processuais diretamente em juízo, nada obsta que ele contrate advogado privado para fazê-lo.
Logo, não é correto sustentar que o município não poderia instituir, por ato da autoridade competente, mandato para habilitar advogado privado a atuar em demanda na qual o interesse fazendário estivesse sob o crivo judicante. Pensar de maneira oposta sequer se coadunaria com o teor dos incisos do enunciado nº 436 da súmula do TST, porquanto a tese jurídica ali fixada diz respeito à prescindibilidade da juntada de mandato pelos procuradores da Fazenda Pública (I), bastando ao causídico declarar-se exercente do cargo de procurador (II). Ou seja, o que o enunciado faz, é reconhecer a representação in re ipsa, decorrência do vínculo jurídico-administrativo que une o órgão público ao mandatário que presenta a Fazenda Pública em juízo. Trata-se, no limite, de posicionamento similar ao encampado pelo STJ nessa matéria.          

6 – Conclusão
A disciplina legal que estipula o começo da personalidade jurídica não implica necessariamente capacidade para a prática de atos processuais ou para postular em juízo. A propósito, deve-se recordar que os conceitos de capacidade de ser parte (aptidão para ser sujeito processual), capacidade processual (legitimatio ad processum) e capacidade postulatória (possibilidade de postular diretamente em juízo) são distintos, inconfundíveis.
Fixada essa premissa, há de se conceber seu enquadramento dentro da teoria dos pressupostos processuais. Assim, notar-se-á que a capacidade postulatória configura pressuposto processual de validade, ao passo que, em regra, é cometida ao advogado devidamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil.  
No caso da representação judicial da Fazenda Pública em juízo, discute-se se há necessidade de juntada do instrumento de mandato nos feitos em que oficiem os procuradores. A posição prevalecente é no sentido negativo. Considerando o vínculo jurídico-administrativo que une os advogados públicos ao Estado, seja no âmbito federal, seja no âmbito estadual/distrital, entende-se que o mandato outorgando a representação existe in re ipsa, isto é, presume-se a legitimidade da representação a partir do vínculo legal mantido pelo presentante com a Administração Pública.
Porém, quando se trata dos entes municipais, é preciso observar o sistema da dupla representatividade, previsto no art. 12, II, do CPC, nos termos do qual se autoriza que a Fazenda Pública municipal seja representada por procurador como pelo próprio prefeito. Não há qualquer estrutura jurídica predeterminada no texto da Constituição de 1988 relativamente ao assessoramento jurídico do Chefe do Poder Executivo munícipe. Logo, faculta-se à Administração Pública local eleger como prioritária a criação da Procuradoria do Município ou optar pela nomeação de advogados privados, que, assim, passam a integrar o quadro de procuradores municipais, independentemente do provimento mediante concurso público.
Nesse passo, a jurisprudência do STJ tem se posicionado pela desnecessidade da juntada do instrumento procuratório pelo advogado que esteja a representar a Fazenda Pública municipal. Idêntico posicionamento é identificável nas decisões do TST, cuja posição já foi até mesmo cimentada no enunciado nº 436 da sua súmula de jurisprudência.  
Ora, se o sistema da dupla representatividade não altera o reconhecimento in re ipsa da legitimidade ad processum dos procuradores municipais cujo mandato tenha sido instituído mediante nomeação, à revelia do sistema de provimento de cargos mediante concursos públicos, nada obsta a que o ente público venha a contratar advogados particular para o desempenho das funções de assessoramento jurídico do Poder Executivo munícipe. É a conclusão que decorre da circunstância de o texto constitucional vigente ter silenciado a respeito da estrutura organizacional das Procuradorias nos municípios. 
Embora entenda que foi equivocada a opção do constituinte de 1988 em não estabelecer balizas no texto constitucional a respeito da representação judicial dos municípios, máxime a atribuindo a procuradores concursados, é de se reconhecer que a vigência do sistema da dupla representatividade (CPC, art. 12, II) da Fazenda Pública municipal só poderia ser alterada mediante lei expressa em sentido contrário. Logo, deixa-se ao prefeito decidir pela conveniência de instituir a procuradoria municipal, mediante provimento por concurso público, ou optar pela nomeação, caso em que o vínculo legal resta estabelecido e, portanto, fica dispensado o instrumento procuratório, tal como sucede em se tratando da advocacia pública em nível federal ou estadual/distrital.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.

BRASIL. Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Lei 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.

BRASIL. Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.
 
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial 1135608/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 20/10/2009, p. DJe 05/11/2009. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Embargos Declaratórios no Agravo Regimental no Agravo 1385162/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 20/10/2011, p. DJe 24/10/2011. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.
 
BRASIL. Superior  Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Agravo Regimental no Agravo 1385162/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 28/06/2011, p. DJe 01/09/2011. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.
 
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula de jurisprudência, enunciado nº 436 (REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. PROCURADOR DA UNIÃO, ESTADOS, MUNICÍPIOS E DISTRITO FEDERAL, SUAS AUTARQUIAS E FUNDAÇÕES PÚBLICAS. JUNTADA DE INSTRUMENTO DE MANDATO). DEJT 27, 30 e 31.05.2011. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 23 de fev. 2014.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Terceira Turma. Recurso de Revista 81100-43.2009.5.01.0281/RJ, Rel. Min. Maurício Godinho Delgado, j. 26/02/2014, acórdão pendente de publicação. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 03 de mar. 2014.

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 10ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Dialética, 2012. 830 p.

DIDIER JUNIOR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento, vol. 1. 14ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 643 p.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção Neves. Manual de Direito Processual Civil., vol. único. 3ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. 1484 p.