sábado, 14 de dezembro de 2013

CONTRATO PRELIMINAR E DIREITO REAL DE AQUISIÇÃO NA PROMESSA DE COMPRA E VENDA: comentários ao enunciado 239 da súmula de jurisprudência do STJ


Min. Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.221.369/RS no STJ.

Ouvindo atualmente: "Desfado" (2012), de Ana Moura. 
Um dos melhores álbuns de música popular
que ouvi este ano.
Ana Moura consolida seu nome
entre as grandes fadistas contemporâneas. Brilhante!
 
O Código Civil brasileiro atribuiu expressamente ao direito do promitente comprador do imóvel a qualidade de direito real (art. 1.225, VII). Embora não esteja consignado na norma, trata-se de um direito real de aquisição aplicável aos contratos de promessa de compra e venda, consistente na possibilidade de o promitente comprador (titular do direito real à aquisição do imóvel) exigir em juízo a adjudicação compulsória do bem cuja escritura definitiva não fora outorgada voluntariamente pelo promitente vendedor.  

A terminologia técnica é complicada, mas pode ser mais facilmente compreendida à luz do estudo do contrato preliminar. Isso porque o contrato de promessa de compra e venda nada mais é do que uma espécie de contratação que visa, em princípio, a assegurar o cumprimento de outro contrato. A esse segundo contrato dá-se o nome de contrato principal, que é o contrato definitivo de compra e venda do imóvel.   

No tocante ao contrato preliminar, é mister assinalar que se trata de um tipo de negócio jurídico que voltado a preparar as partes contratantes para a celebração de um contrato futuro. Sendo assim, como negócio jurídico preparatório, deve conter os requisitos essenciais à validade do contrato definitivo (o contrato principal), especialmente aqueles previstos no art. 104 do Codexin verbis:   

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Entre esses requisitos do art. 104, não se aplica ao contrato preliminar apenas o relativo à forma. Com efeito, o legislador optou por deixa-la livre à autonomia privada, a afastar a sua solenidade. É o que prescreve o art. 462 do CC (grifo meu):

Art. 462. O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado.

É fato que parte da doutrina interpreta com ressalvas a liberdade de forma nos contratos preliminares, buscando conciliá-la com outros dispositivos legais, a exemplo do art. 227, que impõe restrições, no direito probatório, à prova exclusivamente testemunhal nos negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do salário mínimo.

A esse respeito, os comentários de Farias e Rosenvald (2012, p. 948) são esclarecedores:  

Na linha consensualista, o Código Civil é enfático na defesa do princípio da liberdade de forma para os contratos preliminares (art. 107, CC). Em outras palavras, dotado o negócio jurídico dos pressupostos de existência e dos requisitos de validade a que alude o artigo 104 do Código Civil, o contrato preliminar é um ato jurídico perfeito, independente da relação principal que procura garantir. O ordenamento afastou o princípio da atração das formas entre os contratos preliminar e definitivo. Esta diversidade de fundamentos e efeitos entre os dois modelos jurídicos, justifica a liberdade de contratar sem a exigência da forma pública, essencial à validade de negócios jurídicos que visem à constituição de direitos reais sobre bens imóveis de valor superior a trinta salários mínimos (art. 108, CC).
Certamente esta liberdade de forma não será extremada, posto conciliada com outros dispositivos legais. Daí a necessidade de escrito particular para os contratos preliminares cujo valor ultrapasse o décuplo do salário mínimo, admitindo-se a prova exclusivamente testemunhal quanto à sua existência tão somente para transação de patamar inferior ao aludido montante (art. 227, CC). Esta mesma restrição ao direito probatório é insculpida no artigo 401 do Código de Processo Civil.

Importa salientar que, no contrato preliminar, já há uma obrigação contratual definida. Ela consubstancia o dever de celebrar o contrato definitivo (contrato principal). Assim se justifica a redação do caput do art. 463 do CC, o qual assinala a eficácia obrigacional do vínculo prévio, dotando-o de exigibilidade jurídica:

Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra para que o efetive.

Ao assegurar a possibilidade de tutela específica da obrigação de fazer, consistente na celebração do contrato principal, o art. 463 deixa claro que o contrato preliminar é um negócio jurídico sério, não se confundindo, dessa maneira, com as negociações preliminares, no curso das quais há apenas a manifestação de intenções desprovidas de juridicidade.  

Consequentemente, em regra, o contrato preliminar deve ser concebido como uma convenção jurídico irretratável, porquanto dotada de eficácia obrigacional. Ciente disso, o legislador ressalvou expressamente a possibilidade de inclusão da cláusula concernente ao direito de arrependimento, isto é, a aposição autônoma ao instrumento do contrato do direito potestativo que faculta aos contratantes resilir unilateralmente o contrato preliminar. Logo, a cláusula de arrependimento permite, por exemplo, que o contratante arrependido (contratante demissionário) não seja judicialmente compelido a celebrar a avença principal - medida que, na linguagem processual, corresponde à tutela específica da obrigação de fazer futura. 

Essas noções doutrinárias acerca do contrato preliminar são extremamente úteis ao entendimento do contrato de promessa de compra e venda. O motivo reside na similitude dessas modalidades contratuais, a apresentar estreita relação em sua disciplina jurídica. Prova disso é a previsão da cláusula de arrependimento no art. 1.417 do CC:

Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.

Portanto, seja na disciplina geral dos contratos preliminares, seja na disciplina específica da promessa de compra e venda, o exercício do direito potestativo de arrependimento deve decorrer da aposição de cláusula expressa ao instrumento. Caso contrário, a denúncia não se concretizará validamente (sem perdas e danos).

Mas mais interessante ainda é atentar ao teor do parágrafo único do art. 463 do Código Civil, in verbis:

Art. 463. omissis

Parágrafo único. O contrato preliminar deverá ser levado ao registro competente.

Trata-se de dispositivo polêmico, que tem gerado fundas discussões nos tribunais. O busílis encontra-se na exigência de registro do contrato preliminar, o que poderia afetar o direito à adjudicação compulsória previsto no art. 1.418 do CC:

Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

No afã de interpretar a redação equívoca do parágrafo único do art. 463 do CC, surgem duas correntes na doutrina (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2013, p. 1465). De lado, há os que defendem que o dispositivo refere-se tão só à necessidade de registro do compromisso de compra e venda para oposição de efeitos erga omnes (Ruy Rosado de Aguiar, Carlos Roberto Gonçalves); de outro, situam-se os que entendem que é imperiosa a necessidade de registro quaisquer que sejam os efeitos pretendidos pelos contraentes (Joel Dias Figueira, Carlos Alberto Dabus Maluf, Mário Müler Romitti).  

Por sua vez, no plano jurisprudencial, os precedentes mais antigos do Superior Tribunal de Justiça inclinavam-se em acatar os argumentos expendidos pela primeira corrente. Colaciono:

Adjudicação compulsória.
1. É torrencial a jurisprudência da Corte no sentido de que o "direito à adjudicação é de caráter pessoal, restrito aos contratantes, não se condicionando a obligatio faciendi à inscrição
no registro de imóveis".
2. Recurso especial conhecido e provido.
(STJ, T3 - Terceira Turma, REsp 204.784/SE, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 23/11/1999, p. DJ 07/02/2000).

De acordo com o raciocínio que foi sendo maturado pela Corte, a eficácia obrigacional inter partes existe tão logo seja concluído o pacto. Independentemente de registro, o promissário fica autorizado a exigir da contraparte a celebração do contrato principal nos limites do acordo prévio de vontades. Por sua vez, a eficácia real (erga omnes) é que demanda o registro em cartório da avença. Neste último caso, o registro (no cartório de registro de imóveis ou no cartório de títulos e documentos, conforme se cuide, respectivamente, de bem imóvel ou móvel) serve como mecanismo assecuratório de que a promessa inscrita no contrato preliminar não será afetada por eventual negócio jurídico celebrado com terceiros de boa-fé. Um exemplo vem a calhar. Suponhamos que, na promessa de compra e venda de imóvel, o promitente vendedor, no curso do contrato preliminar, e exercendo legitimamente seu direito de proprietário (afinal, não houve ainda a outorga da escritura definitiva da propriedade do bem imobiliário), celebre novo contrato (de compra e venda) com terceiro de boa-fé. Este terceiro ignorava a existência de contrato de promessa de compra e venda e nem poderia, diligenciando ordinariamente, descobri-lo. Aí é que a eficácia erga omnes, adquirida mediante o registro em cartório, tem o poder de impedir que a alienação do imóvel a terceiro de boa-fé prejudique o contrato preliminar. Assim, garantir-se-á que o promissário comprador da promessa de compra e venda possa ajuizar a ação pessoal de adjudicação compulsória, desta vez não apenas contra o promitente vendedor, que alienou o bem, mas também contra o terceiro, cujo contrato de compra e venda, ainda que celebrado de boa-fé, será considerado negócio jurídico ineficaz. Ou seja, o registro em cartório assegura a oponibilidade a terceiros da promessa de compra e venda, a atestar a eficácia real do pacto preliminar, consubstanciada no direito real de aquisição do bem prometido (CC, art. 1.225, VII).   

Com amparo nesse raciocínio, o STJ editou o enunciado nº 239 da súmula de jurisprudência do tribunal:

STJ, Súmula nº 239: 

O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

O verbete revela a assunção pelo tribunal da distinção já feita antes, no sentido de que a eficácia obrigacional inter partes do contrato preliminar independe de registro. "Assim, quando o direito à escrituração definitiva da compra e venda é exercido diretamente contra o promitente vendedor, não se lhe condiciona o registro" (ASSIS NETO; JESUS; MELO, 2013, p. 1465, grifo do autor).    

De tal arte a corroborar esse entendimento, o enunciado 95 da I Jornada de Direito Civil do CJF/STJ preceitua:

95 – Art. 1.418: O direito à adjudicação compulsória (art. 1.418 do novo  Código Civil), quando exercido em face do promitente vendedor, não se  condiciona ao registro da promessa de compra e venda no cartório de  registro imobiliário (Súmula n. 239 do STJ).

Em seus julgados, o STJ vem aplicando iterativamente o enunciado nº 239. Colaciono (grifo nosso):

DIREITO CIVIL. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. REGISTRO IMOBILIÁRIO. DESNECESSIDADE. SÚMULA/STJ. RECURSO NÃO CONHECIDO.
- Nos termos do enunciado nº 239 da súmula/STJ, o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.
(STJ, T4 - Quarta Turma, REsp 188.172/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 10/10/2000, p. DJ 20/11/2000).

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO. REGISTRO DO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. SÚMULA 239/STJ. FINANCIAMENTO DE IMÓVEL. HIPOTECA POSTERIOR. INEFICÁCIA.
I – Em consonância com o enunciado 239 da Súmula desta Corte, o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.
II - A hipoteca outorgada pela construtora ao agente financiador em data posterior à celebração da promessa de compra e venda com o promissário-comprador não tem eficácia em relação a este último. Precedentes. Agravo improvido.
(STJ, T3 - Terceira Turma, AgRg no Ag 575.115/SP, Rel. Min. Castro Filho, j. 28/10/2004, p. DJ 17/12/2004).

DIREITO DAS COISAS. RECURSO ESPECIAL. USUCAPIÃO. IMÓVEL OBJETO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. INSTRUMENTO QUE ATENDE AO REQUISITO DE JUSTO TÍTULO E INDUZ A BOA-FÉ DO ADQUIRENTE. EXECUÇÕES HIPOTECÁRIAS AJUIZADAS PELO CREDOR EM FACE DO ANTIGO PROPRIETÁRIO. INEXISTÊNCIA DE RESISTÊNCIA À POSSE DO AUTOR USUCAPIENTE. HIPOTECA CONSTITUÍDA PELO VENDEDOR EM GARANTIA DO FINANCIAMENTO DA OBRA. NÃO PREVALÊNCIA DIANTE DA AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE. INCIDÊNCIA, ADEMAIS, DA SÚMULA N. 308.
1. O instrumento de promessa de compra e venda insere-se na categoria de justo título apto a ensejar a declaração de usucapião ordinária. Tal entendimento agarra-se no valor que o próprio Tribunal - e, de resto, a legislação civil - está conferindo à promessa de compra e venda. Se a jurisprudência tem conferido ao promitente comprador o direito à adjudicação compulsória do imóvel independentemente de registro (Súmula n. 239) e, quando registrado, o compromisso de compra e venda foi erigido à seleta categoria de direito real pelo Código Civil de 2002 (art. 1.225, inciso VII), nada mais lógico do que considerá-lo também como "justo título" apto a ensejar a aquisição da propriedade por usucapião.
[...]
(STJ, T4 - Quarta Turma, REsp 941.464/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24/04/2012, p. DJe 29/02/2012).

DIREITO CIVIL. PROPRIEDADE. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA. COMPROMISSO DE VENDA E COMPRA. REGISTRO IMOBILIÁRIO. OPOSIÇÃO. ADJUDICAÇÃO EM HASTA PÚBLICA. BOA-FÉ.
[...]
6. A jurisprudência conferia ao promitente comprador o direito à adjudicação compulsória do imóvel independentemente de registro (Súmula n. 239); e, quando registrado, o compromisso de compra e venda foi erigido à seleta categoria de direito real pelo Código Civil de 2002 (art. 1.225, inciso VII), sendo, portanto, oponível em relação aos terceiros.
[...]
(STJ, T3 - Terceira Turma, REsp 1.221.369/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/08/2013, p. DJe 30/08/2013).

Conclui-se, portanto, que, no caso da promessa de compra e venda, o promissário comprador pode exigir a tutela específica da obrigação de fazer (celebração de contrato futuro, mediante a outorga da escritura definitiva de transmissão da propriedade do bem imóvel) contra o promitente vendedor tão logo seja concluído o negócio jurídico prévio (obviamente, contanto que o promissário comprador tenha adimplido sua obrigação e o promitente vendedor esteja em mora).

Dessa maneira, o registro em cartório, referido no parágrafo único do art. 463 do Código Civil deve ser interpretado tão somente como fator eficacial da promessa de compra e venda perante terceiros (sujeito passivo universal). Logo, o consectário do registro do contrato preliminar em serventia é a garantia de que a sentença que julgar procedente o pedido veiculado em ação de adjudicação compulsória possa desconstituir o direito real de todo e qualquer terceiro interveniente, ainda que de boa-fé.

REFERÊNCIAS
ASSIS NETO, Sebastião de; JESUS, Marcelo de; MELO, Maria Izabel de. Manual de Direito Civil. Salvador: JusPODIVM, 2013. 1720 p.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Enunciado nº 239 da súmula de jurisprudência. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 14 de dez. 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Enunciado nº 95 da I Jornada de Direito Civil. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 14 de dez. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 204.784/SE,da Terceira Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 23/11/1999, p. 07/02/2000. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 14 de dez. 2013


BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 188.172/SP da Quarta Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 10/10/2000, p. 20/11/2000. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 14 de dez. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo nº 575.115/SP, da Terceira Turma, Rel. Min. Castro Filho, j. 28/10/2004, p. 17/12/2004. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 14 de dez. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 941.464/SC,da Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24/04/2012, p. 29/02/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 14 de dez. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.221.369/SE, da Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/08/2013, p. 30/08/2013. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 14 de dez. 2013.

BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 18 de nov. 2012.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: reais, vol. 5. 8º ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 988 p.

sábado, 7 de dezembro de 2013

"DE JURE" - REVISTA JURÍDICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS (MPMG): edição nº 21 (jul. /dez.2013) conta com texto de minha autoria.




Caros,
é com satisfação que comunico a publicação da edição nº 21 da "De Jure" - Revista Jurídica do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Trata-se de obra coletiva, para a qual colaboro com texto veiculado na seção de Direito Constitucional, a apresentar o título seguinte: "Lei de defesa dos usuários de serviços públicos e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor: estudo sobre as inconstitucionalidades por omissão e o ativismo judicial do STF na ADO 24 MC/DF." 

A edição física encontra-se atualmente no prelo, porém o leitor que quiser prestigiar o meu trabalho doutrinário na revista pode acessá-lo mediante o link seguinte, onde a versão digital se encontra disponível para download gratuitamente: 


Aproveito a oportunidade para parabenizar toda a equipe de servidores que atua junto ao Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MPMG em Belo Horizonte, responsáveis pelo trabalho editorial altamente profissional que se vê na "De Jure". Agradeço, ainda, em especial, à Helena Moysés, que foi deveras atenciosa ao intermediar o convite feito a mim, a fim de que pudesse integrar o rol de colaboradores da revista na presente edição.

Estou muito feliz em participar de uma publicação no Estado de Minas Gerais, terra tradicional na revelação de juristas talentosos e que tem um povo sempre muito gentil e acolhedor.

Obrigado pelo convite!    

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

RT Comenta: DIREITO ELEITORAL


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Prova: Juiz TJPA (2012)
Tipo: Objetiva
Banca:
Inaugurando uma nova seção no blogue do GERT, comentarei hoje uma questão de Direito Eleitoral. Na verdade, o assunto situa-se muito mais no plano do Direito Constitucional Eleitoral, em especial no campo dos direitos políticos, que propriamente na esfera dogmática do Direito Eleitoral positivo. Ainda assim é questão muito interessante, que ora passo a comentar em apreço ao leitor que acompanha o meu trabalho.   

1 - Questão 64
QUESTÃO 64

Olavo, médico com vinte e cinco anos de idade, em cumprimento do serviço militar obrigatório no Comando Aéreo Regional de Belém – PA, pretendendo votar nas eleições de 2012, requereu, no prazo fixado para requerimento, inscrição como eleitor.

Nessa situação, de acordo com as disposições contidas na CF e na legislação aplicável, o juiz eleitoral deve

(A) deferir o pedido, desde que o requerente apresente documento assinado pelo comandante do referido comando aéreo, referendando o pedido de alistamento eleitoral do oficial médico.

(B) deferir o pedido caso o requerente comprove, em documento oficial do comando aéreo, o licenciamento do contingente de médicos até um mês antes da data da eleição.

(C) indeferir o pedido, decisão da qual cabe recurso, em razão de o conscrito não poder alistar-se como eleitor durante o período do serviço militar obrigatório.

(D) indeferir o pedido caso o requerente, não tendo pleiteado inscrição até o final do ano subsequente ao ano em que completou dezoito anos de idade, não apresente prova do pagamento da multa pelo atraso do alistamento eleitoral.

(E) deferir o pedido, com base no fato de ser a inscrição eleitoral dever legalmente imposto a todo brasileiro com mais de dezoito anos de idade e direito líquido e certo a ele garantido.

Nessa questão, o examinador está a exigir do candidato conhecimento quanto à disciplina jurídica dos direitos políticos. A Constituição de 1988 é a primeira e mais importante fonte formal nesse sentido, uma vez que dedicou todo o capítulo IV ("Dos Direitos Políticos") do seu Título II ("Dos Direitos e Garantias Fundamentais") ao tratamento da matéria.

Do ponto de vista teórico, cabe afirmar que os direitos políticos constituem a garantia de participação dos cidadãos na vida do Estado. Portanto, são de fundamental relevância nos sistemas democráticos, para os quais deve preponderar a organização do Estado lastrado no ideal da coisa pública a ser gerida pelo corpo social, ainda que indiretamente, mediante a eleição de representantes.  

Em geral, a doutrina - com base nos arts. 1º, parágrafo único, e 14 da CF/88 - concorda com a tese de que o Brasil configura uma democracia semidireta, calcada no modelo híbrido que permite a eleição de representantes (democracia representativa) de maneira conjugada com a participação direta do povo no poder (democracia direta). Exemplos de institutos da democracia semidireta brasileira são a iniciativa popular (para a apresentação de projetos de lei ao Parlamento), o referendo (para a submissão ao povo de projetos de lei aprovados pelo Parlamento),o plebiscito (para a submissão ao povo da decisão política a partir da qual pode resultar a elaboração do material legislativo) e a ação popular (instrumento processual que visa a pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público, isto é, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico).

Se a participação indireta se faz por meio de representantes eleitos, é natural supor que deve haver um regramento mínimo quanto ao modus operandi das eleições. Quem pode se candidatar? Quem pode votar? São perguntas que decorrem desse sistema. E a resposta encontra-se precisamente na disciplina jurídica dos direitos políticos, os quais, como visto antes, regulam a participação dos cidadãos na condução dos negócios do Estado. 

Nesse sentido, é tradicional a classificação doutrinária que os constitucionalistas fazem no campo dos direitos políticos. De um lado, estão os direitos políticos positivos, consubstanciados na capacidade de votar (capacidade eleitoral ativa) e ser votado (capacidade eleitoral passiva). De outro, estão os direitos políticos negativos, que remetem às regras que restringem a participação do cidadão na vida política do Estado, consoante critérios que determinam ora a inelegibilidade ora a perda ou suspensão de direitos políticos.

É no campo dos direitos políticos que a resposta da questão deve ser buscada. Mas, para falar de alistamento (capacidade eleitoral ativa, direito de ser eleitor), que é o que o examinador cobrou efetivamente, quero iniciar meus comentários pela análise § 4º do art. 14 da Constituição, que traz a regra concernente à inelegibilidade muito cobrada nas provas:    

Art. 14. omissis

§ 4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos.

Portanto, segundo o art. 14, §§ 3º, III, e 4º, do texto constitucional, os inalistáveis não podem votar (não têm o direito de se alistar como eleitor) nem podem candidatar-se a mandatos, estando excluídos do escrutínio. Em tal caso, o constituinte limitou o direito de sufrágio dos inalistáveis, impedindo-os de exercitar tanto a capacidade eleitoral ativa quanto a capacidade eleitoral passiva. Diz-se, ainda, em doutrina, cuidar-se de hipótese de inelegibilidade absoluta a que consta do § 4º do art. 14, visto que a restrição erigida atinge os inalistáveis em relação a todo e qualquer pleito para cargo eletivo.

Essa limitação do direito de votar e ser votado (sufrágio) relativa aos inalistáveis é coerente com o rol das condições de elegibilidade instituídas na Constituição, a qual impõe expressamente, entre outras exigências, a necessidade de alistamento eleitoral.

Vejamos o que dispõe o inc. III do § 3º do seu art. 14 da Constituição (grifo meu): 

Art. 14. omissis

§ 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei:

I - a nacionalidade brasileira;

II - o pleno exercício dos direitos políticos;

III - o alistamento eleitoral;

IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;

 V - a filiação partidária; 

VI - a idade mínima de:

a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;

b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;

c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;

d) dezoito anos para Vereador.

Logicamente, se o alistamento eleitoral é condição para o exercício da capacidade eleitoral passiva, significa dizer que quem não pode se alistar como eleitor não pode ser eleito. Nesse ponto, a inalistabilidade, ao obstar o direito de ser eleitor, impede, pela via reflexa, a elegibilidade daquele que está impedido de alistar-se.

E quem não pode alistar-se como eleitor no Brasil?

A resposta a essa pergunta está talhada na norma constante do § 2º do art. 14 da Carta:    

§ 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos.

Da regra do § 2º se infere que, no Brasil, o gozo de direitos políticos é restrito aos brasileiros natos e naturalizados. Sendo assim, o estrangeiro que não se naturalizar não poderá votar nem ser votado. Consequentemente, o alienígena, ao ser proibido de alistar-se como eleitor, deixando de satisfazer um dos elementos que asseguram a capacidade eleitoral passiva (elegibilidade), incorre na regra de inelegibilidade absoluta do § 4º do art. 14 da CF/88.

Idêntico raciocínio aplica-se ao conscrito, que é o brasileiro do sexo masculino convocado para o serviço militar obrigatório nos termos do art. 143 da CF/88: 

Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.

§ 1º - às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. 

§ 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir. 

Além dos brasileiros do sexo masculino alistados por obrigação constitucional ao serviço militar, também são considerados conscritos os prestadores de serviços alternativos por força de imperativo de consciência decorrente de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, consoante o disposto no art. 3º, § 1º, da Lei 8.239/91, bem como os profissionais matriculados nos órgãos de formação de reserva e os estudantes de medicina, farmácia, odontologia e veterinária que estejam a prestar serviço militar junto às Forças Armadas, em atendimento ao prescrito na Lei 5.292/67 e à Resolução 15.850/89 do TSE.  

Com isso, nota-se que o conceito de conscrito não se confunde com o de militar, tanto que o próprio parágrafo único do art. 5º do Código Eleitoral admite o alistamento de militares: 

Art. 5º Não podem alistar-se eleitores:

I - os analfabetos;

II - os que não saibam exprimir-se na língua nacional;

III - os que estejam privados, temporária ou definitivamente dos direitos políticos.
 
Parágrafo único - Os militares são alistáveis, desde que oficiais, aspirantes a oficiais, guardas-marinha, subtenentes ou suboficiais, sargentos ou alunos das escolas militares de ensino superior para formação de oficiais.

Observe o leitor que o inc. I do art. 5º do CE não foi recepcionado pela CF/88, pois, no Brasil, o analfabeto, embora inelegível (art. 14, § 4º), é alistável. Ou seja, o analfabeto não pode ser votado (não detém capacidade eleitoral passiva), mas pode votar (detém capacidade eleitoral ativa). A única peculiaridade tocante ao seu alistamento diz respeito ao seu caráter facultativo, de acordo com o art. 14, de acordo com o art. 14, § 1º, II, a, do texto constitucional. Isso tudo porque a alistabilidade é direito subjetivo de todos aqueles que preencham os requisitos legais, só se podendo restringi-lo em circunstâncias excepcionais, expressamente previstas na Constituição, tal como ocorre em relação a estrangeiros e aos conscritos (inalistáveis).

Voltando  à questão, o examinador traz caso hipotético de médico, descrito como sujeito a prestar serviço militar obrigatório. Ora, já vimos que o profissional de saúde que presta serviço militar obrigatório se enquadra no conceito de conscrito, atraindo, assim, a inalistabilidade (CF, art. 14, § 4º). Daí se concluir que o juiz eleitoral deve indeferir o pedido de inscrição do médico como eleitor, uma vez que o conscrito, durante o serviço militar obrigatório, é inalistável. Porém, dessa decisão de indeferimento de inscrição, caberá a interposição de recurso pelo alistando, consoante previsto no § 7º do art. 45 da Lei 4.737/65:   

Art. 45 omissis
 
§ 7º Do despacho que indeferir o requerimento de inscrição caberá recurso interposto pelo alistando, e do que o deferir poderá recorrer qualquer delegado de partido.

Logo, a resposta correta da questão é a letra C.