domingo, 31 de maio de 2015

RT Comenta: DIREITO ADMINISTRATIVO - Responsabilidade civil do Estado por ato legislativo


Prova: Procurador TCDF 2013
Tipo: Objetiva
Banca:
Hoje comentarei uma questão de Direito Administrativo sobre responsabilidade civil do Estado por ato legislativo.

1 - Questão 39

O Estado só responderá pela indenização ao indivíduo prejudicado por ato legislativo quando este for declarado inconstitucional pelo STF.

           O item proposto relaciona-se ao tema da responsabilidade civil do Estado, mas com uma peculiaridade importantíssima. Ele se refere à responsabilização estatal por ato legislativo.  

Inicialmente, o leitor deve recordar-se de que a responsabilidade do Estado pelos atos dos seus agentes pode apresentar-se em diferentes esferas (civil, penal e administrativa). Especificamente no campo civilístico, a doutrina reconhece que a responsabilidade pode decorrer de um contrato (responsabilidade contratual) ou de causa não prevista em contrato (responsabilidade extracontratual), que é quando inexiste relação jurídica prévia, a ligar o agente causador do dano e a vítima respectiva.  

Para o estudo do Direito Administrativo, interessa, sobretudo, a hipótese da responsabilidade civil extracontratual. Com efeito, as normas do ordenamento jurídico, que admitem o Estado como sujeito responsável, fazem-no com o objetivo de permitir a reparação dos danos que os agentes públicos, no exercício de função pública, venham a causar aos particulares. Nessas circunstâncias, mesmo não havendo um contrato anterior, o Estado responderá pelos danos causados em decorrência de sua atuação na disciplina da sociedade - o que significa dizer que a sua responsabilidade será extracontratual.  

Em regra, a responsabilidade extracontratual do Estado rege-se, no Brasil, pela teoria da responsabilidade objetiva. Segundo essa teorização, é suficiente à caracterização do dever de indenizar a comprovação de três elementos: 1) conduta; 2) dano; e 3) nexo causal. Diz-se “objetiva” tal teoria justamente por dispensar os elementos volitivos (culpa e dolo) na apuração do sujeito responsável. Além disso, mesmo que o ato administrativo seja lícito, a teoria objetiva impõe a reparação à vítima, uma vez que a mera relação causal entre o evento danoso e a conduta do agente do Poder Público já satisfaz seu tríplice pressuposto. 

No plano do direito constitucional positivo brasileiro, a teoria da responsabilidade civil objetiva do Estado encontra-se no art. 37, § 6º, da CF/88, in verbis:

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

            Não parece haver dúvidas de que o procedimento levado a cabo pela Administração Pública, caso venha a desencadear ato administrativo lesivo à esfera jurídica de terceiro, causará dano, o que, ato contínuo, imporá o dever de indenizar a vítima. Porém, será que esse mesmo raciocínio aplica-se aos atos legislativos? Será que o exercício da função legiferante também pode suscitar a figura do Estado enquanto sujeito responsável pela reparação do dano?     

A esse respeito, recordo ao leitor que, no Brasil, a atividade legislativa compreende a elaboração de alguns objetos, que são aqueles elencados no art. 59 da Constituição:

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

I - emendas à Constituição;

II - leis complementares;

III - leis ordinárias;

IV - leis delegadas;

V - medidas provisórias;

VI - decretos legislativos;

VII - resoluções.

            Sendo assim, sempre que o legislador estiver a se desincumbir da sua missão precípua, que é representar os interesses do povo, inovando o direito de acordo com os anseios da sociedade que o elegeu, deve-se entender que tal função não pode ser limitada pela ameaça do dever de indenizar. Daí o porquê de a doutrina brasileira afirmar que, em regra, não há responsabilidade civil do Estado pela produção de atos legislativos. Fundamenta-se esse posicionamento na certeza de que a criação do direito é feita por meio de leis lato sensu, que são atos normativos gerais e abstratos por excelência. Assim, destinando-se a regular as relações jurídicas ocorrentes na sociedade como um todo, afasta-se a possibilidade de dano indenizável a um particular específico. Acrescente-se igualmente que o Parlamento, ao desempenhar seu múnus legiferante, nos estritos limites das normas que regem o processo legislativo, encontra-se protegido pelo texto constitucional. O motivo é que o Poder Constituinte, ao disciplinar o exercício dos direitos políticos, estruturou o Estado nos moldes de uma democracia semidireta. Isto é, o Brasil adota uma democracia de caráter representativo-participativo, o que passa pela atuação do Poder Legislativo, cujos membros não podem ser tolhidos pela responsabilização civil quando do exercício de sua função típica (legislar). Assim, editado um ato legislativo constitucional (formal e materialmente), tem-se o desempenho regular da missão do Parlamento, o que calha com a democracia representativa brasileira. 

Nesse sentido, convém atentar para o que prescreve o parágrafo único do art. 1º, bem assim o art. 14, ambos dispositivos da Constituição de 1988:

Art. 1º omissis

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
 
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

             Acima, enfatizei que um dos fundamentos principais da irresponsabilidade estatal pelos atos legislativos é a sua constitucionalidade. Logo, se invertermos essa noção rudimentar, ficará fácil assimilar a ideia seguinte: admite-se a responsabilidade civil do Estado pela produção de leis inconstitucionais.
 
            A autorização de legislar, que é conferida pela Constituição ao Parlamento, justifica-se com o fim de permitir a criação do direito. Mas essa força criadora (normogenética) deve ser compatível com o texto constitucional. Por outras palavras, se o legislador produz norma inconstitucional, assim reconhecida pelo STF, declara-se implicitamente que o Poder Legislativo se desincumbiu mal do seu múnus (função de legislar). Logo, se atuou de maneira indevida, não está protegido pela Constituição. Disso decorre que eventuais danos decorrentes dos atos legislativos inconstitucionais atrairão o dever de reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas. Afinal, no fundo, a lei inconstitucional corresponde a um ato ilícito (ato normativo inválido à luz do parâmetro constitucional). E atos ilícitos geram o dever de indenizar. Na verdade, se nos detivermos no exame da teoria objetiva da responsabilidade civil do Estado, concluiremos que até mesmo procedimentos lícitos ensejam o dever de reparação. 

Logicamente, não se há de concluir que toda e qualquer lei será capaz de ensejar a responsabilização do ente estatal. É preciso notar que a lei, por ser um ato precipuamente de caráter geral e abstrato, só atrairá a responsabilidade civil do Estado naqueles casos em que for possível individualizar o dano, isto é, quando houver um administrado cuja esfera patrimonial, perfeitamente identificada, tenha sido atingida pelo ato normativo nulo do Poder Público. Obviamente, esse raciocínio é corolário do sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade brasileiro, nos termos do qual somente a lei declarada inconstitucional pelo STF pode oportunizar a responsabilidade civil do Estado por ato legislativo

Nesse sentido, é conveniente citar alguns precedentes do STJ sobre o assunto. O mais conhecido deles consta do acórdão lavrado no REsp 201.972/RS (Rel. Min. Demócrito Reinaldo, j. 17/06/1999, p. DJ 30/08/1999). Nesse julgamento, a Primeira Turma do STJ registrou o seguinte: 

O Estado só responde (em forma de indenização, ao indivíduo prejudicado) por atos legislativos quando inconstitucionais, assim declarados pelo Supremo Tribunal Federal.

              Idêntico raciocínio foi esposado pelo mesmo STJ quando do julgamento do REsp 571.645/RS (Inf. 297), ocasião em que a Segunda Turma do Tribunal consignou no item 2 da do acórdão: 

2. Apenas se admite a responsabilidade civil por ato legislativo na hipótese de haver sido declarada a inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado.

             Observe o leitor que o excerto do julgado refere-se ao controle concentrado, que é uma das modalidades pelas quais se classifica a técnica de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público. Especificamente, a modalidade em comento elege como critério a competência do órgão fiscalizador. Porém, vale lembrar que já há doutrina a defender que também em sede de controle difuso far-se-ia possível a invocação da responsabilidade estatal pelo ato legislativo declarado inconstitucional.  

De pacífico nessa matéria, no entanto, é somente a conclusão segundo a qual o Estado só responderá pela indenização ao individuo prejudicado pelo ato legislativo quando este for declarado inconstitucional pelo STF. Eis a assertiva constante do item em apreço, a indicar a sua correção. 

Todavia, embora o gabarito do CESPE-UNB tenha considerado correta a assertiva, é fato que ela poderia ensejar discussões. O que problematizo é o emprego do advérbio "só" na oração, o que poderia levar o leitor, equivocadamente, a concluir que se trata de hipótese única. Mas não é verdadeira essa conclusão. Aqui vale sublinhar que, além da já amplamente referida responsabilidade civil do Estado pelo ato legislativo inconstitucional, também se admite em doutrina a responsabilização estatal na hipótese de leis de efeitos concretos. 

Leis de efeitos concretos são atos formalmente normativos, mas materialmente administrativos. São leis, visto que imperativas (obrigatórias) e normativas (estipulam dever-ser), mas carecem dos requisitos da generalidade e da abstração - as características distintivas da lei stricto sensu, ou seja, da norma que se destina a regular as relações da coletividade como um todo. Se não são gerais, é porque seu destinatário é certo, determinado. Se não possuem abstração, é porque não podem ser repetidas (invocadas) indefinidamente no tempo, porquanto exaurem seus efeitos na disciplina da situação concreta que se propõem a regular. O exemplo recorrentemente apresentado nos livros de doutrina é o das leis orçamentárias. Outros bons exemplos podem ainda ser mencionados: lei que concede indenização a uma vítima de tortura durante a ditadura militar, leis de anistia, leis que fixam nomes de ruas.

Para ilustrar a argumentação, trago ao leitor um exemplo curioso de lei de efeito concreto: trata-se da Lei 12.286, promulgada em 13 de julho de 2010 pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No art. 1º desse diploma, lê-se o seguinte:   

Art. 1º  Em 27 de janeiro de cada ano, a cidade de Olinda, no Estado de Pernambuco, será reconhecida, durante esse dia, como a Capital Simbólica do Brasil.
                                             
            É evidente que a Lei 12.286/10 é uma lei de efeitos concretos. A uma, porque não possui generalidade (seu destinatário é certo, isto é, a cidade de Olinda, sita no Estado de Pernambuco). A duas, porque não possui abstração (outras cidades brasileiras não a podem invocar para o fim de se considerar "capital simbólica do Brasil").   

Na hipótese de responsabilidade civil do Estado pela edição de leis de efeitos concretos, valem as mesmas exigências já apontadas para o caso de lei declarada inconstitucional: é preciso que o particular prejudicado demonstre a ocorrência de dano à sua esfera patrimonial, de modo a evidenciar o nexo de causalidade entre os efeitos concretos da lei editada (que corresponde à conduta do ente político que criou o ato normativo) e o prejuízo suportado (dano).   

Em resumo, em se tratando de responsabilidade por atos legislativos, a regra é a de que não cabe responsabilização civil do Estado pela edição de leis, salvo em duas hipóteses: 1) leis inconstitucionais; 2) leis de efeitos concretos.   

sábado, 30 de maio de 2015

No mundo jurídico, escrever bem é ser objetivo



Recentemente, uma colega de profissão adentrou o gabinete onde trabalho, a pedir-me que avaliasse um voto que ela redigira. O voto havia sido qualificado de "fraco" pela Desembargadora que ela assessora. Então a colega decidiu pedir a opinião de um analista externo, alguém em quem ela tivesse confiança intelectual, e foi ter comigo.

Li o voto. Com muita sinceridade, avaliei-o e disse à minha interlocutora que não o considerava "fraco". Antes o contrário: julguei-o excelente, pois primava pela objetividade, a valer-se duma linguagem jurídica clara, direta, didática até. Então ela me mostrou o voto de uma assessora que a Desembargadora tem em "alta conta". Achei o voto horrível. Mal escrito, estava cheio de jargões técnicos desnecessários, expressões de latim jurídico pinçadas ao léu (algumas escritas com a ortografia errada), com dezenas de ementas de julgados repetidos à exaustão (quando bastaria trazer uma ou duas ementas recentes para provar a atualidade da tese). O voto continha ainda as brejeirices típicas do mau escritor jurídico (existe algo mais patético que se referir às ideias de alguém, adjetivando o autor como "saudoso", "festejado", "amado mestre", "Sua Excelência que tanta falta nos faz"? Direito é ciência ou é poesia laudatória do pior quilate?). Isso sem falar nas citações doutrinárias em profusão, que mais confundiam que ajudavam, enxertadas no texto gratuitamente para demonstrar "erudição".

Diante disso, apresentei minha conclusão à colega: o problema não estava com ela, mas com a Desembargadora. Ela estava a lidar com uma operadora do Direito de pensamento mumificado, que tem uma visão anacrônica acerca da qualidade de um trabalho jurídico. Para pessoas com esse perfil ultrapassado, a atividade forense é como trabalhar em um "açougue das palavras": quanto mais o redator fica enchendo linguiça, tanto melhor é o seu trabalho. Portanto, a meu sentir, estava clara a preferência da Desembargadora pelo voto prolixo, de discurso longo, denotativo de um "juridiquês" reprovável. Trata-se de postura que, bem lá no fundo, só quer disfarçar o vazio intelectual de quem, pela falta de ideias, precisa ficar enrolando ao escrever. Numa palavra: quer-se vencer o leitor pelo cansaço mental, submetendo-o ao esforço excruciante de atravessar aquele "mar de lama" em que termina por converter-se a redação jurídica.

Infelizmente, profissionais que pensam como a Desembargadora citada, isto é, que confundem "qualidade" com "quantidade", ainda são muito comuns na vida forense. São pessoas de perfil conservador, que creem que um voto de trinta laudas, quando seria suficiente escrever apenas cinco, revela "esmero" do redator. Há também o potencial estelionato intelectual diante do leigo, que, ao ver uma petição imensa (ou um voto imenso, como no exemplo da minha colega), deixa-se impressionar diante da extensão do escrito. Mal ele sabe que, espremidas aquelas peças volumosas, salvar-se-ia tão só uma dúzia de páginas de conteúdo verdadeiramente importante para a resolução da lide.

Em sentido contrário, creio que a prolixidade daqueles que atuam na área jurídica revela - isto sim - a incompetência de quem é incapaz de perceber que a era dos anacronismos, do rebuscamento exagerado, das petições em formato de livros ficou para trás. Hoje o que o Judiciário deve buscar é a eficiência na entrega do bem da vida, garantindo-se a razoável duração do processo. E ser eficiente, em tempo razoável, passa também pelo esforço em escrever de forma clara, direta, objetiva, sobretudo quando as estatísticas comprovam que a intensa judicialização de demandas assoberbou o Poder Judiciário, o que tem forçado muitos juízes a proferirem dezenas de sentenças por dia.

Logicamente, nada impede que algumas manifestações nos autos exijam um empenho maior e mais cuidadoso, sobretudo quando se trata de exposição de tese inovadora à luz da jurisprudência. Mas esses deveriam ser casos excepcionais, e não a regra de atuação no sistema, cujos operadores - de modo incompreensível! - parecem envaidecer-se diante daquilo que deveria ser considerado um defeito do mau escritor, isto é, a prolixidade vazia que só quer "encher linguiça" gratuitamente.

Sendo assim, deixo a proposta ao leitor: da próxima vez que for redigir qualquer manifestação nos autos de um processo (petições, sentenças, recursos, etc.), lembre-se de que a objetividade do redator jurídico só traz benefícios, pois é muito mais fácil alguém se interessar pela leitura de um texto simples, escrito de maneira clara e objetiva, a um texto longo e repetitivo. É bom para o juiz, que assim decide mais rápido; é bom para a parte, que assim compreende o conteúdo do decidido; é bom até para o meio ambiente, pois se economiza papel.

Quanto à Desembargadora do meu exemplo, bem, dada a sua visão mumificada e conservadora da vida jurídica, tão envelhecida que parece exalar o odor forte da naftalina dos séculos, talvez seja a hora de cogitar seriamente a aposentadoria...

domingo, 17 de maio de 2015

OBRIGAÇÕES "PROPTER REM" E A RESPONSABILIDADE PELAS DESPESAS CONDOMINIAIS NOS CONTRATOS DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA: análise dos critérios jurisprudenciais firmados no REsp 1.345.331/RS (tese de recursos repetitivos)

Min. Luis Felipe Salomão, relator do REsp 1.345.331/RS no STJ
Ouvindo atualmente: "Henryk Szeryng (v) - Tasso Janopoulo (p) - 
Le Livre d'Or de Paris-Inter" (2013),
Henryk Szeryng foi, ao lado de Max Rostal, um dos mais
brilhantes alunos de Carl Flesch e um dos melhores violinistas do século XX.
Nesse álbum foi resgatada a sua gravação da "Sonata nº 3 em Ré Maior" (Op. 9) 
do compositor barroco Jean-Marie Leclair ("O Velho"),
o grande fundador da escola francesa de violino. Obrigatório, portanto. 



1 - Introdução

No estudo do Direito Civil, existe atualmente uma tendência doutrinária favorável à superação das divisões classificatórias tradicionais da dogmática jurídica (Direito Público e Privado, Direito Objetivo e Direito Subjetivo). Apesar dessa corrente de pensamento, a dicotomia que separa os direitos patrimoniais em direitos pessoais e direito reais ainda é válida do ponto de vista didático.

Dessa maneira, no âmbito dos direitos pessoais, surge o conceito de obrigação, que, por seu turno, dá origem aos direitos obrigacionais. Estes direitos compreendem a titularidade de um direito de crédito, que corresponde ao vínculo que une pessoas determinadas (ou determináveis) em torno do cumprimento de uma prestação. Essa prestação é precisamente o comportamento que o credor espera do devedor, no que importa conceituar a obrigação pela finalidade da conduta almejada, isto é, obrigação de dar, de fazer ou de não fazer. Conclui-se, portanto, que o credor, para satisfazer seu direito pessoal de crédito, necessita da colaboração do devedor, cuja conduta positiva ou negativa representará o adimplemento da obrigação.

Diferente é a estrutura dos direitos patrimoniais de caráter real. Em tal hipótese, a relação jurídica dos direitos reais forma-se a partir do exercício de um poder proprietário que o titular do direito exerce sobre a coisa (res). A relação jurídica real se funda na ligação que se estabelece entre a pessoa e uma coisa, que pode ser móvel ou imóvel. Como consequência desse poder proprietário, todos os outros sujeitos de direito ficam obrigados a não praticar qualquer conduta atentatória ao exercício do direito de propriedade. Isto é, os direitos reais criam um dever genérico de abstenção, oponível erga omnes, que impede todas as demais pessoas da sociedade de estorvarem o exercício do direito real pelo seu titular. Não há necessidade de colaboração de outrem (devedor) para a satisfação dessa espécie de direito patrimonial. É suficiente à sua estrutura que o titular possa exercitar o seu domínio sobre a coisa, usando-a, gozando-a, dispondo-a de acordo com sua vontade.           

Em linhas gerais, essa é a diferenciação teórica estrutural por meio da qual a doutrina civilista reparte os direitos patrimoniais, enquanto gênero, em direitos pessoais e direitos reais. Compreendê-la é sobretudo útil para introduzir o estudo das obrigações propter rem, que se situam na fronteira da dicotomia conceitual clássica, e que permitirão, ao final deste estudo, analisar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da responsabilidade pelas obrigações condominiais nos contratos de promessa de compra e venda. 

2 – O conceito de obrigações propter rem

A análise sumária da estrutura dos direitos pessoais ao lado dos direitos reais revela a proximidade que há na gênese dessas relações jurídicas. De um lado, há uma relação que une duas pessoas determinadas ou determináveis em posições de sujeito ativo e sujeito passivo, respectivamente, credor e devedor. De outro, há uma relação que liga uma pessoa (sujeito ativo) a uma coisa (res), a impor um dever geral de abstinência (respeito ao direito real) a todos os outros membros da coletividade (sujeito passivo universal). Não é difícil supor que esses direitos possam confluir na vida negocial, originando vínculos híbridos, a fundir, numa mesma relação, direitos pessoais aos direitos reais.     

Exemplo categórico dessa hibridez encontra-se no conceito de obrigações propter rem (também conhecidas em doutrina como obrigações in rem ou ob rem). Trata-se de uma espécie de relação jurídica que se forma ao atrelar prestações obrigacionais à titularidade de um direito real.

A respeito do conceito de obrigação propter rem, Silvio Rodrigues (2002, p. 79, grifos do autor) leciona:

A obrigação propter rem é aquela em que o devedor, por ser titular de um direito sobre uma coisa, fica sujeito a determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa ou tácita de sua vontade. O que o faz devedor é a circunstância de ser titular do direito real, e tanto isso é verdade que ele se libera da obrigação se renunciar a esse direito.

Já Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 42, grifos do autor) adverte que a obrigação propter rem

[...] é uma obrigação de caráter misto, pelo fato de ter como a obligatio in personam objeto consistente em uma prestação específica; e como a obligatio in re estar sempre incrustada no direito real. 

Alguns exemplos ajudam a esclarecer o conceito.

No art. 1.297 do CC, o legislador assegura ao proprietário o direito de constranger o confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas. A obrigação de demarcar do confinante é consequência não de sua manifestação de vontade, mas da sua especial condição de proprietário do prédio vizinho. Ou seja, é uma imposição ex vi legis ao titular do direito real de propriedade (propter rem). Logo, caso o proprietário perca o domínio, ele fica livre do dever de concorrer para o pagamento das despesas com a demarcação.

Também há obrigação propter rem no comando do art. 1.277 do CC, que impõe ao proprietário de prédio a obrigação de não dar causa a interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde daqueles moradores que habitam o prédio vizinho. Mais uma vez essa obrigação não decorre de manifestação de vontade, mas sim da lei, que usa como critério apto a fundar a imposição a mera contiguidade de domínio sobre a coisa (ser proprietário ou possuidor de prédio vizinho). Significa dizer que a obrigação exsurge por causa (advém) da coisa. Assim, como o vínculo obrigacional provém da lei e está atrelado a um direito real de propriedade, quem não detém domínio sobre o prédio fica desobrigado do cumprimento da prestação estipulada pelo artigo.    

Diante do raciocínio acima, evidencia-se que a conceituação doutrinária de obrigação propter rem está ligada a pelo menos dois elementos: (a) imposição legal (ausência de manifestação de vontade do obrigado); e (b) titularidade de um direito real (domínio ou detenção) sobre a coisa. Assim, quando faltam esses elementos na generatriz da obrigação, desfaz-se a sua natureza propter rem.  

É o caso dos serviços de energia, água e esgoto, hipóteses de vínculos obrigacionais às quais a jurisprudência pacífica do STJ nega a natureza de obrigação propter rem. Senão vejamos (grifos meus):    

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. FORNECIMENTO DE ÁGUA. INADIMPLEMENTO. OBRIGAÇÃO PESSOAL. INVIABILIDADE DE SUSPENSÃO DO ABASTECIMENTO NA HIPÓTESE DE DÉBITO PRETÉRITO VINCULADO A PROPRIETÁRIO ANTERIOR. INEXISTÊNCIA DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. PRÉDIO DEMOLIDO. REEXAME VEDADO PELA SÚMULA 7/STJ. TUTELA ANTECIPADA. REQUISITOS. SÚMULA 7/STJ.
1. Trata-se de pretensão recursal da prestadora de serviço público com intuito de caracterizar a possibilidade de suspensão do fornecimento de água com base em débitos contraídos por proprietário anterior e, com relação à agravada, durante o período em que o prédio ficou demolido.
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o dever de pagar pelo serviço prestado pela agravante - fornecimento de água - é destituído da natureza jurídica de obrigação propter rem, pois não se vincula à titularidade do bem, mas ao sujeito que manifesta vontade de receber os serviços.
3. O Tribunal de origem consignou indevida a imposição da cobrança de água por inexistência de efetiva prestação do serviço. A revisão desse entendimento depende do reexame fático, o que é inviável em Recurso Especial, conforme disposto na Súmula 7/STJ.
4. A apreciação dos requisitos do art. 273 do CPC, para apurar suposta presença dos requisitos necessários para a concessão da tutela antecipada exige análise do contexto fático-probatório dos autos. Incidência da Súmula 7/STJ.
5. Agravo Regimental não provido. (STJ, T2 – Segunda Turma, AgRg no AREsp  29.879/RJ,  Rel. Min. Herman Benjamin,  j. 24/04/2012, p. DJe 22/05/2012)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA E COLETA DE ESGOTO. DÉBITO DE ANTIGO LOCATÁRIO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL. ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO LOCAL. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 280/STF. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1.   É firme o entendimento no STJ de que o dever de pagar pelo serviço prestado pela agravante - fornecimento de água – é destituído da natureza jurídica de obrigação propter rem, pois não se vincula à titularidade do bem, mas ao sujeito que manifesta vontade de receber os serviços (AgRg no AREsp 2.9879/RJ, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 22.05.2012).
2.   A análise de Legislação Estadual é medida vedada na via estreita do Recurso Especial, a teor da Súmula 280 do STF, aplicável ao caso por analogia.
3.   Agravo Regimental da SABESP desprovido.
(STJ, T1 – Primeira Turma, AgRg no AREsp  265.966/SP,  Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho,  j. 21/03/2013, p. DJe 10/04/2013)

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL. SERVIÇO DE ÁGUA E ESGOTO. OBRIGAÇÃO DE NATUREZA PESSOAL
1. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental em razão da nítida pretensão infringente que deles emerge. Aplicação dos princípios da fungibilidade e da economia processual.
2. A decisão agravada foi baseada na jurisprudência pacífica desta Corte, a qual entende que a natureza da obrigação pelo pagamento de contas de consumo de energia e de água é pessoal, e não propter rem.
3. Agravo regimental não provido.
(STJ, T2 – Segunda Turma, EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp  332.334/SP,  Rel. Min.  Mauro Campbell Marques,  j. 08/10/2013, p. DJe 15/10/2013).

Os argumentos expendidos pelo tribunal conduzem ao entendimento de que os serviços de energia, água e esgoto não decorrem da lei, porquanto esta não prende o nascimento da obrigação necessariamente à titularidade de um direito real. Acorde com os arestos do STJ, tais serviços são prestados àqueles que por eles reclamam, isto é, que manifestam sua vontade no sentido de recebê-los. O serviço de água, por exemplo, não acompanha o imóvel onde quer que ele esteja, e sim cabe ao proprietário ou ao inquilino solicitá-lo à prestadora do serviço.

Com isso, percebe-se que sempre que o elemento volitivo for relevante para o surgimento do enlace obrigacional, a prestação daí decorrente não estará indissociavelmente incrustada no direito real. Portanto, não será propter rem.

3 – Obrigações condominiais em face dos contratos de promessa de compra e venda: os critérios jurisprudenciais para definição da responsabilidade pelo pagamento das despesas 

Visto o conceito de obrigações propter rem, cumpre analisar agora a responsabilidade pelas obrigações condominiais, a fim de saber se o adquirente do imóvel responde pelas dívidas da unidade. 

Nessa toada, é preciso, de início, verificar a natureza da obrigação. Assim, considerando que, nos termos do art. 1.315 do CC, o condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer para as despesas de conservação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que estiver sujeita, verifica-se que há uma imposição ex vi legis de prestação a quem detém a titularidade de parte ideal do condomínio. Quer isso dizer que o dever de cumprir a prestação não decorre de uma manifestação de vontade do condômino, sendo suficiente ao nascimento da obrigação que ele tenha assumido a titularidade de um direito real sobre a coisa. Portanto, trata-se, a toda evidência, de uma obrigação propter rem.     

Dessa maneira, por se tratar de uma obrigação propter rem, a definição da responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais deverá tomar em consideração o caráter misto da obrigação, na medida em que a prestação devida fica incontornavelmente embutida no direito real.   

Nesse contexto das obrigações condominiais, de natureza propter rem, houve quem controvertesse acerca da legitimidade para responder pelas despesas devidas ao condomínio na hipótese de compromisso de compra e venda. A questão consistia em saber se, em não tendo sido levado o contrato preliminar à averbação no registro de imóveis, o condomínio estaria obrigado a ajuizar a ação de cobrança contra o promissário comprador imitido na posse do bem ou, ao revés, o promitente vendedor continuaria a figurar no polo passivo ou, ainda, ambos (promitente vendedor e promissário comprador) poderiam ser demandados.  

A fim de descobrir a solução desse problema jurídico, inicialmente, é preciso frisar que a jurisprudência do STJ, atento à natureza propter rem da obrigação in casu, já havia definido que tanto o promitente vendedor quanto o promissário comprador são legitimados passivos para responder pelas despesas do condomínio, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Colaciono (grifo meu):

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. DESPESAS CONDOMINIAIS. COMPRA E VENDA REGISTRADA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. POSSE. OBRIGAÇÃO DE NATUREZA PROPTER REM. LEGITIMIDADE DA ADQUIRENTE. 1.- A jurisprudência desta Corte entende que que "a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias do caso concreto" (EREsp 138.389/MG, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA , DJ 13.09.99). 2.- No presente caso, "o adquirente, em alienação fiduciária, responde pelos encargos condominiais incidentes sobre o imóvel, ainda que anteriores à aquisição, tendo em vista a natureza propter rem das cotas condominiais" (REsp 827.085/SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 04/05/2006, DJ 22/05/2006, p. 219). 3.- Agravo Regimental improvido.
(STJ, T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1413977/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 11/02/2014, p. DJe 14/03/2014).

À luz desse julgado, nota-se que a responsabilidade pelo adimplemento das obrigações propter rem, da qual derivam as dívidas condominiais, não depende de averbação da promessa de compra e venda no registro de imóveis, mas sim está atreladas à titularidade do direito real sobre a coisa. Por esse motivo, a depender das circunstâncias do caso concreto, tanto o promissário comprador quanto o promitente vendedor podem figurar no polo passivo da demanda de cobrança de cotas condominiais.

Essa argumentação funda-se no teor do art. 1.334, § 2º, do CC, que dispõe:

Art. 1.334 omissis

§ 2º São equiparados aos proprietários, para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas.

Desse modo, para fins de responsabilização, o próprio código cuidou de equiparar promitente vendedor e promissário comprador quanto ao status jurídico de proprietário. Sendo assim, se ambos são “proprietários” no âmbito condominial, ambos são titulares de direito real sobre a coisa e, conseguintemente, estão aptos a responder ob rem pelas quotas condominiais.

Nesse sentido, colaciono excertos de um importante precedente do STJ (grifos meu):

RECURSO ESPECIAL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA DE AÇÃO DE COBRANÇA PROMOVIDA PELO CONDOMÍNIO CONTRA O PROMISSÁRIO COMPRADOR. REAQUISIÇÃO DO BEM PELO PROMITENTE VENDEDOR, QUE, CIENTE DOS DÉBITOS CONDOMINIAIS QUE PASSARIAM A SER DE SUA RESPONSABILIDADE, BEM COMO DA RESPECTIVA AÇÃO, REMANESCE INERTE, POR MAIS DE SEIS ANOS, SOMENTE INTERVINDO NO FEITO PARA ALEGAR NULIDADE DA CONSTRIÇÃO JUDICIAL. PROCEDER PROCESSUAL REPETIDO EM OUTRAS SETE AÇÕES CONTRA O MESMO CONDOMÍNIO. PREJUÍZO MANIFESTO DA ENTIDADE CONDOMINIAL. VERIFICAÇÃO. PENHORA SOBRE A UNIDADE IMOBILIÁRIA, POSSIBILIDADE, EXCEPCIONALMENTE. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. As cotas condominiais, concebidas como obrigações propter rem, consubstanciam uma prestação, um dever proveniente da própria coisa, atribuído a quem detenha, ou venha a deter, a titularidade do correspondente direito real. Trata-se, pois, de obrigação imposta a quem ostente a qualidade de proprietário de bem ou possua a titularidade de um direito real sobre aquele. Por consectário, eventual alteração subjetiva desse direito, decorrente da alienação do imóvel impõe ao seu "novo" titular, imediata e automaticamente, a assunção da obrigação pelas cotas condominiais (as vincendas, mas também as vencidas, ressalta-se), independente de manifestação de vontade nesse sentido. Reconhecida, assim, a responsabilidade do "novo" adquirente ou titular de direito real sobre a coisa, este poderá, naturalmente, ser demandado em ação destinada a cobrar os correspondentes débitos, inclusive, os pretéritos, caso em que se preserva seu direito de regresso contra o vendedor (anterior proprietário ou titular de direito real sobre o imóvel). [...] 3. O promitente vendedor, em regra, não pode ser responsabilizado pelos débitos condominiais posteriores à alienação, contemporâneos à posse do promissário comprador, pois, ao alienar o bem, tem a intenção de justamente despir-se do direito real sobre o bem. Diversa, todavia, é a situação em que o promitente vendedor (independente da causa) objetiva readquirir - e, de fato, vem a reaver - a titularidade de direito real sobre o bem imóvel anteriormente alienado. Nesse caso, deve, sim, o promitente vendedor responder pelos débitos condominiais contemporâneos à posse do posterior titular (compromissário comprador), sem prejuízo de seu direito de regresso, pois, em virtude da reaquisição do bem, sua condição de proprietário e/ou titular de direito real sobre a coisa, na verdade, nunca se rompeu. [...]. (STJ, T3 - Terceira Turma, REsp 1440780/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17/03/2015, p. DJe 27/03/2015).         

Logo, se se trata de obrigação propter rem, o vínculo obrigacional é imposto pela lei por força da titularidade de um direito que advém da coisa (ius ad rem), independentemente de quaisquer condicionantes que não a relação jurídica material (imissão na posse) com o imóvel.

Adotando essa orientação, o STJ julgou, sob o rito dos recursos repetitivos, o REsp 1.345.331/RS:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. CONDOMÍNIO. DESPESAS COMUNS. AÇÃO DE COBRANÇA. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA NÃO LEVADO A REGISTRO. LEGITIMIDADE PASSIVA. PROMITENTE VENDEDOR OU PROMISSÁRIO COMPRADOR. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. IMISSÃO NA POSSE. CIÊNCIA INEQUÍVOCA. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC, firmam-se as seguintes teses: a) O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. b) Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. c) Se ficar comprovado: (i) que o promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador. 2. No caso concreto, recurso especial não provido. (STJ, T3 - Terceira Turma, REsp 1.345.331/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08/04/2015, p. DJe 20/04/2015).   

Esse precedente explicita o posicionamento segundo o qual a obrigação pelo pagamento das quotas condominiais decorre da mera assunção de um direito real sobre a coisa. Consequentemente, a averbação da transação concernente à promessa de compra e venda é desnecessária, pois o que importa, para fins de responsabilidade pelas dívidas condominiais, é a efetiva imissão na posse pelo promissário comprador a latere da ciência do credor.

Forte nesses argumentos, justifica-se inclusive a redação do art. 1.345 do CC (“O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios.”).

4 – Conclusão

A tradicional classificação doutrinária dos direitos patrimoniais implica o estabelecimento de uma divisão dicotômica que opõe o conceito de direitos pessoais (relação jurídica entre sujeito ativo credor e sujeito passivo devedor) ao de direitos reais (relação jurídica entre sujeito ativo e uma coisa, em face de um sujeito passivo universal).

A partir dessa divisão, é possível identificar situações jurídicas híbridas, ocorrentes quando os direitos reais também estimulam o surgimento de vínculos obrigacionais próprios dos direitos pessoais. O exemplo por excelência de hibridismo obrigacional no Direito Civil brasileiro materializa-se na figura das obrigações propter rem. Nesta modalidade, o elo é misto: há um conteúdo prestacional que advém exclusivamente da titularidade de direitos reais sobre a coisa.   

Com base nesses fundamentos é que a jurisprudência do STJ enfrentou a questão consistente em saber qual o legitimado passivo para responder pelas dívidas condominiais em contrato preliminar de promessa de compra e venda não levado a registro.  

Nesse sentido, o STJ julgou, sob o rito dos recursos repetitivos, o REsp 1.345.331/RS e firmou a seguintes teses no acórdão:

a) o que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação;

b) havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto;

c) se ficar comprovado: (i) que o promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador.

Portanto, de acordo com a jurisprudência do STJ, na hipótese de contrato preliminar de promessa de compra e venda não averbado no registro de imóveis, para efeito de definir o responsável pelas despesas condominiais importa considerar dois critérios fundamentais: (i) a relação jurídica material com o imóvel (representada pela imissão do promissário comprador na posse) e (ii) a ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. São esses os critérios que hão de nortear a definição da responsabilidade pelo adimplemento do conteúdo obrigacional ínsito ao direito real e, por conseguinte, a identificação do sujeito legitimado para figurar no polo passivo da ação de cobrança de quotas condominiais.   

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.
                             
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T2 – Segunda Turma, AgRg no AREsp  29.879/RJ,  Rel. Min. Herman Benjamin,  j. 24/04/2012, p. DJe 22/05/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T1 – Primeira Turma, AgRg no AREsp  265.966/SP,  Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho,  j. 21/03/2013, p. DJe 10/04/2013. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T2 – Segunda Turma, EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp  332.334/SP,  Rel. Min.  Mauro Campbell Marques,  j. 08/10/2013, p. DJe 15/10/2013. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T3 – Terceira Turma, AgRg no REsp 1413977/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 11/02/2014, p. DJe 14/03/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T3 - Terceira Turma, REsp 1440780/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17/03/2015, p. DJe 27/03/2015.   Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T3 - Terceira Turma, REsp 1.345.331/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08/04/2015, p. DJe 20/04/2015.   Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 16 de mai. 2015.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: obrigações, vol. 2. 6ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 652 p.   

PEREIRA, Caio Mário da Silva.  Instituições de Direito Civil, vol. II. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 448 p.    

RODRIGUES, Silvio.  Direito Civil: parte gral das obrigações, vol. 2. 30ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002. 289 p.