terça-feira, 20 de março de 2012

Apontamentos sobre a responsabilidade da Administração Pública nos contratos de terceirização: análise da ADC 16 e da nova redação dos inc. IV e V do enunciado nº 331 da súmula de jurisprudência do TST


          A ideia de um terceiro interveniente na clássica relação bilateral dos contratos empregatícios sempre entrou em choque com o caráter tutelar característico do Direito do Trabalho. Como é cediço, este subssistema jurídico-normativo foi concebido para aquelas relações em que, de um lado, há uma parte (o empregador) que necessita da força vital de trabalho de outrem para impulsionar suas atividades econômicas, estando disposta a pagar um preço por isso, e, de outro, há uma parte (empregado) que necessita vender sua força de trabalho para a garantia da própria subsistência.
          Nesse formato de relação laboral clássico, notadamente bilateral, a terceirização surge como uma quebra de paradigmas. Visando a aumentar a produtividade, malgrado não reduzir custos, opta-se, ao celebrar-se um contrato de terceirização, pela prestação de serviços intermediada por um terceiro. Há, assim, um tomador de serviços que remunera a atividade de labor do empregado, mas de forma mediata, contratando-os mediante a intervenção de um terceiro (dito empregador principal ou empresa terceirizante).
          Nos contratos de terceirização, portanto, a integração do trabalhador ao processo produtivo do tomador de serviços ocorre de maneira direta quanto à prestação da atividade de labor (sua energia de trabalho servirá diretamente aos propósitos do tomador), mas indireta quanto aos direitos trabalhistas, pois o vínculo empregatício é firmado entre o obreiro e a empresa terceirizada. A terceirização estabelece, dessa maneira, uma relação jurídica trilateral, incompatível com o modelo clássico de relação bilateral típico dos contratos de emprego. 
          Em se tratando de terceirização, o leitor deve entendê-la qual um contrato de prestação de serviços de caráter excepcional, visto que em contraponto ostensivo aos postulados protetivos das normas trabalhistas. No caso brasileiro, a situação agrava-se, em razão de que inexiste legislação específica tratando da matéria (sequer há autorização legal na CLT). Com isso, a jurisprudência dos tribunais, reconhecendo o fenômeno fático da terceirização, e de modo a não a deixar desprovida de regramento, cuidou de regular o assunto. O Tribunal Superior do Trabalho, nesse sentido, editou o enunciado nº 331 da sua súmula de jurisprudência predominante, cuja redação foi consolidada após a revisão do antigo enunciado nº 256. Colaciono:

TST Enunciado nº 331 - Revisão da Súmula nº 256 - Res. 23/1993, DJ 21, 28.12.1993 e 04.01.1994 - Alterada (Inciso IV)  - Res. 96/2000, DJ 18, 19 e 20.09.2000 - Mantida - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
Contrato de Prestação de Serviços - Legalidade
I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). (Revisão do Enunciado nº 256 - TST)
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-06-1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993). (Alterado pela Res. 96/2000, DJ 18.09.2000)

          Da leitura do precedente supracitado, é possível concluir que, à falta de regramento legal específico, o contrato de terceirização de serviços, no Brasil, para ser considerado lícito, deve preencher algumas exigências jurisprudenciais, a saber
            a) a atividade terceirizada deve ser atividade-meio do tomador;
            b) a atividade terceirizada deve ser voltada à prestação de serviços especializados;
          c) a terceirização não permite subordinação direta do empregado ao tomador dos serviços;
            d) a terceirização não permite pessoalidade do empregado na prestação dos serviços;
       e) a responsabilidade do tomador de serviços pelo inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte da empresa terceirizada é de caráter subsidiário.   
          O grande busílis jurisprudencial e doutrinário acerca da terceirização sempre se deu com base na interpretação das normas de responsabilidade do tomador de serviços. Não para as hipóteses de terceirização ilícita, é claro, casos nos quais sempre foi pacífico que, uma vez identificada a ilicitude do contrato de serviços terceirizados, era preciso afastá-lo, para reconhecer o vínculo empregatício diretamente entre o tomador e os empregados da empresa interveniente, em detrimento da fraude trabalhista. Disso decorria a responsabilização solidária entre o tomador de serviços e a empresa terceirizada quanto aos créditos trabalhistas decorrentes dessa relação, dado que ambos contribuíram para a prática fraudulenta infensa ao ordenamento jurídico. A regra da subsidiariedade na responsabilidade, prevista no inciso IV do enunciado nº 331, era, assim, somente aplicável aos casos de terceirização lícita, isto é, que preenchesse os requisitos que já citei acima.
          Contudo, a discussão sobre a responsabilidade subsidiária pelas obrigações trabalhistas mudava completamente de figura quando um dos contratantes da prestação de serviço terceirizado era ente integrante da Administração Pública. Em tais hipóteses, havia um descompasso visível entre o direito legislado e o direito sumulado, gerando funda controvérsia doutrinária e jurisprudencial. 
          Nesse sentido, duas correntes logo se formaram, opondo, de um lado, os que entendiam, à luz da Lei de Licitações (art. 71, § 1º), ser impossível a responsabilização do Estado pelas dívidas trabalhistas deixadas pela empresa terceirizada (corrente fazendária) e, de outro, o que entendiam ser possível e necessário responsabilizar os entes públicos, tomando por base a regra constitucional de responsabilidade da Administração Pública (CF, art. 37, § 6º) e o conceito de empregador (CLT, art. 2º).      
          Para facilitar o entendimento do leitor, reproduzirei o texto ipsis litteris do caput e § 1º do art. 71 da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações). Sua redação é a seguinte:

Art. 71.  O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
"§ 1o  A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis."

          Esse dispositivo de lei, em uma leitura literal, impede a transferência dos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais para a Administração Pública nas hipóteses em que o terceiro contratado revelasse-se inadimplente em relação a eles. A razão é que, consoante a cabeça do art. 71 da lei já referida, o contratado era o responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. Com isso, eventual inadimplência não teria o condão de gerar a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, isto é, da Administração Pública.
          Para dar um exemplo prático ao leitor, basta pensar na situação de empresa contratada pela Administração que deixasse de satisfazer suas obrigações contratuais, igualmente não adimplindo os demais encargos inerentes à execução do objeto contratado. Isso pode parecer de somenos (não o é, ressalto) se se tomar o prisma das responsabilidades previdenciárias, fiscais, comerciais. Muda, no entanto, de forma diametralmente oposta, quando se considera o encargo de natureza trabalhista, pois aqui se está diante de verba alimentar. Logo, a inadimplência do contratado no campo laboral toma ares de maior gravidade, haja vista que os empregados do terceiro inadimplente deixariam de perceber seus salários e, por conseguinte, estar-se-ia diante de trabalhador e sua família passando fome.
          O Tribunal Superior do Trabalho, como já percebeu o leitor a partir do texto do enunciado nº 331 de sua súmula, promoveu uma releitura constitucional do § 1º do art. 71 da Lei de Licitações, para admitir a responsabilidade subsidiária da Administração Pública pelas obrigações trabalhistas decorrentes dos contratos de terceirização. Desenvolveu sua argumentação com base no conceito de empregador (CLT, art. 2º), segundo o qual há a assunção dos riscos por parte do agente econômico que usufrui a força de trabalho subordinada, não eventual, pessoal e onerosa. Conjugou-o ainda com uma exegese ampliativa das regras responsabilizatórias da Administração, a par do texto constitucional de 1988, o qual não só manteve a tradicional responsabilidade objetiva do Estado como ainda o estendeu às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (CF, art. 37, § 6º). No fundo, o posicionamento da Corte Superior Trabalhista visava a evitar a precarização das condições de trabalho, em homenagem a uma leitura sistemática da Constituição, com base na qual se torna clara a intenção do povo constituinte em dar prevalência ao valor social do trabalho na ordem advinda do Estado Democrático de Direito brasileiro (CF, art. 1º, IV).  
          Ainda que ao arrepio do art. 71, § 1º, da Lei 8.666/93, a orientação jurisprudencial predominante inclinou-se no sentido de reconhecer a responsabilidade subsidiária dos entes da Administração Pública, direta ou indireta, nos contratos de terceirização, pelas dívidas de natureza trabalhista deixadas pelo terceiro contratado que não adimplisse suas obrigações. Esse entendimento então ganhou a força do precedente judicial, quando restou incluído no inciso IV do enunciado nº 331 da súmula de jurisprudência do TST.
          Isso fez com que muitos empregados de empresas terceirizadas acorressem ao Judiciário, postulando o pagamento de suas verbas laborais pela Administração Pública contratante, caracterizada como responsável subsidiária pelas dívidas do contratado inadimplente. Em tais demandas, à luz da orientação firmada e sumulada pelo TST, foram reiterativas as condenações da Administração Pública ao pagamento desses créditos trabalhistas.      
          Evidentemente que a Administração Pública não se conformou com a interpretação conferida ao dispositivo legal da Lei de Licitações pelo TST. Afinal, semelhante entendimento acabava por transferir ônus trabalhista ao Estado-Administração, onerando os cofres públicos. Daí por que o Governador do Distrito Federal ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade – que é ação constitucional que visa a certificar, com a força de coisa julgada, a compatibilidade de determinada lei ou ato normativo federal com a Constituição (CF, art. 102, I, “a”, c/c art. 13 e ss. da Lei 9.868/99). No exemplo que estou a comentar, a ação do GDF tomou a forma da ADC 16 e tinha por objeto a declaração de constitucionalidade do § 1º do art. 71 da Lei de Licitações, com vistas a impedir a continuidade de sucessivas decisões de Tribunais Regionais do Trabalho, e do próprio TST, no sentido de admitir a responsabilidade subsidiária da Administração Pública pelas obrigações trabalhistas nos contratos de terceirização.
          Em 24/11/2010, julgando a ADC 16, o Plenário do STF julgou procedente o pedido veiculado na ação, para declarar a constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei de Licitações (Lei 8.666/93). Colaciono a ementa do julgado:

EMENTA: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995. (STF, Tribunal Pleno, ADC 16/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 24/11/2010, p. 09/09/2011). 

          O leitor não deve, porém, entender, a partir da ementa supracitada, que a ADC 16 sepultou a responsabilidade do tomador de serviços pelos débitos trabalhistas nas terceirizações envolvendo entes administrativos. É preciso assinalar, nesse sentido, que o resultado do julgamento do STF, entendendo pela constitucionalidade do § 1º do art. 71 da Lei de Licitações, não obsta a que o TST reconheça, no caso concreto, a responsabilidade da Administração Pública, contanto que fique caracterizada a omissão culposa dos entes administrativos na fiscalização dos terceiros contratados. Assim sucede porquanto a fiscalização da execução escorreita do contrato licitado é de responsabilidade da Administração (Lei 8.666/93, art. 67). 
          Por outras palavras, significa dizer que, de conformidade com o entendimento do STF na ADC 16, para que seja reconhecida a responsabilidade contratual dos entes administrativos nos contratos de terceirização, é preciso que fique demonstrada, no mínimo, a culpa in vigilando da Administração Pública, isto é, sua responsabilidade não se pode considerar automática - como efeito necessário da contratação, tal como havia entendido o TST -, mas sim como consequência da má fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais assumidas pela empresa terceirizada.   
          De qualquer maneira, com a prolatação da decisão na ADC 16, geradora de coisa julgada em sede de controle de constitucionalidade, a Corte Suprema atribuiu, portanto, eficácia "erga omnes" (de força de lei) e efeito vinculante ao § 1º do art. 71 da Lei de Licitações – dispositivo que gerou tantas divergências, como apontei ao leitor no início deste artigo.
          Naturalmente que, dada a aludida eficácia erga omnes e a transcendência dos motivos determinantes do precedente firmado na ação declaratória de constitucionalidade em comento, o TST não poderia permanecer inerte. Assim, seu Tribunal Pleno alterou a redação do polêmico inciso IV do enunciado nº 331 de sua súmula de jurisprudência, acrescentando, ainda, na oportunidade, mais dois incisos ao texto sumulado.
          Eis a íntegra do enunciado nº 331, já com a nova redação conferida pelo Pleno do TST em maio de 2011:

Súmula nº 331 do TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
 
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
 
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
 
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
 
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
 
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.  

          A nova redação do inc. IV do enunciado, como o leitor já o notou, excluiu a referência aos entes da Administração Pública. Manteve, no entanto, a já conhecida responsabilidade subsidiária do tomador de serviços na terceirização trabalhista, sempre que se verificar a inadimplência do empregador principal no que tange ao pagamento das verbas devidas aos seus empregados. Repare o leitor que essa responsabilidade subsidiária, em se tratando de empregador privado, é automática, isto é, o simples inadimplemento das obrigações trabalhistas da empresa terceirizada já autoriza o reclamante a demandar contra o tomador dos serviços. A única exigência jurisprudencial é que o tomador do serviço tenha participado da relação processual (princípio do contraditório) e figure como parte no título executivo judicial.     
          Por outro lado, o inc. V da súmula, na novel redação dada pelo TST, consubstanciou exatamente aquilo que já afirmei acima: é possível a responsabilização subsidiária dos entes da Administração Pública pelas obrigações trabalhistas não adimplidas, desde que haja sido demonstrada a conduta culposa da tomadora de serviços quanto ao seu dever de bem fiscalizar a execução do contrato pelo terceiro contratado. A diferença fundamental de interpretação, à evidência motivada pela ratio decidendi firmada no julgamento da ADC 16, consiste em notar que o TST afastou a responsabilidade automática da Administração Pública quanto aos créditos trabalhistas não satisfeitos pela empresa contratada na terceirização.
          Com isso, é possível concluir que, após a ADC 16, a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços na terceirização trabalhista muda conforme se trate:
a)    de tomador de serviços privado: a responsabilidade será automática, não demandando demonstração de conduta culposa, sendo suficiente que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial;
b)    de tomador de serviços integrante da Administração Pública: quando somente a prova da culpa in vigilando, isto é, da conduta culposa denotativa de ausência ou falha no dever de fiscalização da execução do contrato por parte do ente administrativo gerará para a Fazenda o dever de adimplemento dos créditos trabalhistas insatisfeitos pela empresa terceirizada contratada (empregador principal).
       Quanto ao novo inc. VI do enunciado nº 331 do TST, embora não diga respeito diretamente à questão que centralizou minha atenção na redação deste artigo, faço breve registro. Esse entendimento veio para pacificar um aspecto pontual, mas não menos relevante, das discussões jurídicas em derredor da extensão da responsabilidade do tomador de serviço. A questão consistia em saber se essa responsabilidade (subsidiária, pois, como vimos, a responsabilidade principal é da empresa terceirizada contratada para prestar o serviço) abrangeria a totalidade das verbas trabalhistas devidas ao empregado ou apenas parte delas, excluídas aquelas que, em princípio, somente o empregador principal poderia satisfazer (por exemplo, o recolhimento do FGTS e de contribuições sociais). Como se percebe da redação do inciso VI, o TST entendeu que a responsabilidade do tomador de serviços, conquanto subsidiária, tem extensão máxima, ou seja, abrange a totalidade das verbas devidas em razão do período de labor, incluindo as de natureza tributária.     
          Do ponto de vista crítico, analisando o teor dos novos incisos do enunciado nº 331, editados pelo TST em observância ao que foi definido no julgamento da ADC 16, anoto que a  dicotomia de efeitos da responsabilidade do tomador de serviços na terceirização - automática conforme se trate, ou não, de ente da Administração Pública – apresenta pelo menos dois problemas graves. O primeiro, e mais patente deles, é atribuir ao demandante (no caso, o empregado) o ônus de provar a conduta culposa da Administração na fiscalização da execução do contrato. Como o obreiro fará isso no caso concreto, sabendo-se de antemão que a Administração Pública não hesitará em adotar toda sorte de subterfúgios para furtar-se às suas responsabilidades? Não me parece, definitivamente, uma prova fácil de ser aduzida nos autos. De outra banda, parece que o STF esqueceu que as sociedades de economia mista e as empresas públicas – as chamadas “empresas estatais” – integram a Administração Pública (indireta) e, portanto, não serão automaticamente responsabilizadas na condição de tomadores de serviço, algo diverso do que ocorrerá com as empresas privadas ocupantes de idêntica posição numa relação contratual de terceirização. Não vejo, sinceramente, como isso se pode compatibilizar validamente com a norma constitucional do art. 173, § 1º, II, da CF/88, segundo a qual o estatuto jurídico-legal da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços deverá, dentre outros preceitos, observar a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Numa palavra: para privilegiar o interesse fazendário dos entes estatais terceirizantes, o STF acabou por rasgar mais uma vez a Constituição, em franco desprestígio ao valor do trabalho e à dignidade da pessoa humana.

quinta-feira, 1 de março de 2012

TPI e a prolatação de sua primeira sentença: o caso “Procurador vs. Thomas Lubanga Dyilo”


          Thomas Lubanga Dyilo é um cidadão congolês que integrou um grupo rebelde da República Democrática do Congo (RDC).  Esse país africano é conhecido pelas guerras civis sucessivas, especialmente localizadas no distrito de Ituri. As motivações que ensejam a cobiça dessa parte do Congo dizem respeito às colinas verdejantes, ricas em terras férteis e minérios, que ondulam até Bunia, passando pelo Lago Albert, cidade que faz fronteira com Uganda.
          O problema é que Thomas Lubanga Dyilo não apenas figurou como parte em guerra civil no território conguês, mas atuou diretamente no recrutamento de crianças menores de 15 anos de idade para integrarem o grupo rebelde Forces patriotiques pour la libération du Congo (“Forças Patrióticas para a Libertação do Congo”) - FPLC. Pelo menos é o que consta nos autos do processo que o Procurador do Tirbunal Penal Internacional (TPI) move contra ele (“Caso: Procurador vs. Thomas Lubanga Dyilo"), acusando-o de incorrer em crimes de guerra. Segundo alega a acusação, Dyilo teria sido co-autor do delito, usando dos adolescentes e crianças como membros do grupo que atuou nas guerras no distrito conguense de Ituri no período de setembro de 2002 a agosto de 2003.     
          Segundo dispõe o Estatuto de Roma, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional cinge-se ao julgamento dos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto. Esses crimes de especial gravidade, a teor do seu art. 5º, abrangem: (a) crimes de genocídio; (b) crimes contra a humanidade; (c) crimes de guerra; (d) crime de agressão. No caso vertente, Dyilo é acusado, junto ao TPI, da prática de crimes de guerra, que são aqueles delitos, previstos no art. 8º do tratado, especialmente quando cometidos “como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes” (§ 1º). O rol de condutas estatuídas no art. 8º do Estatuto de Roma, constitutivas de “crimes de guerra”, é extenso, mas posso resumi-las, de modo muito genérico, como sendo as condutas que violam as normas do Direito Internacional Humanitário – tratados oriundos das quatro convenções de Genebra, compiladas na quarta convenção, de 12 de agosto de 1949 -, como, por exemplo, homicídios dolosos, torturas, tratamento desumanos, inclusive por meio de experiências biológicas, tomada de reféns etc,  além de outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do direito internacional (como ataques a populações civis, ao pessoal e aos materiais de missões de paz ou de assistência humanitária, prática de estupro, escravidão sexual, prostituição forçada etc).
          No que concerne especificamente à suposta conduta criminosa perpetrada por Dyilo, o Estatuto de Roma é de clareza solar ao dispor que será considerado crime de guerra o ato de “Recrutar ou alistar menores de 15 anos nas forças armadas nacionais ou utilizá-los para participar ativamente nas hostilidades” (TPI, ER, art. 8º, b, xxvi).     
          Nesse contexto, não causa espécie a grande comoção que a notícia divulgada no sítio oficial do Tribunal Penal Internacional (ver referências abaixo), no último dia 29 de fevereiro, causou junto aos estudiosos do Direito Internacional Público e à sociedade internacional como um todo. Trata-se, a um só tempo, da prolatação da primeira sentença da Corte desde sua criação (o tratado foi aprovado durante a Conferência Diplomática de Plenipotenciários da ONU, realizada na cidade de Roma, em julho de 1998, mas só entrou em vigor internacionalmente em 1º de julho de 2002) e do fortalecimento da tendência à jurisdicionalização do direito das gentes por meio de juízos naturais, não ad hoc. Esse movimento, inaugurado de modo especialmente acentuado após o conflito bélico advindo do choque imperialista de potências que resultou na Segunda Guerra Mundial, adquiriu juridicidade concreta com a instituição do TPI, o qual universalizou a ideia de um poder punitivo protetor da dimensão eficacial dos tratados internacionais de direitos humanos, mediante a instituição de uma Justiça Penal Internacional de caráter permanente que viesse a punir, para além das fronteiras nacionais, os autores de crimes atentatórios contra a humanidade.
          Vale ressaltar que o continente africano desencadeou precedente histórico importante no conjunto de iniciativas que, ao fim e ao cabo, impulsionaram a celebração do tratado que instituiu o TPI. Reporto-me, no particular, aos conflitos que dizimaram milhares de civis em Ruanda (guerra civil entre as etnias tutsis e hutus) e que motivaram pedido do próprio governo ruandense, dirigido ao Conselho de Segurança da ONU, no sentido de que fosse criada uma corte internacional para processo e julgamento dos crimes contra a humanidade perpetrados no território de Ruanda e de Estados vizinhos. Isso se concretizou, em 1994, mediante a Resolução 955, que instituiu ad hoc o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR).
          Para além do marco histórico que é a prolatação da primeira sentença do TPI, definindo ou não a culpa do réu no crime de guerra do qual é acusado perante a Corte, a vindoura decisão determinará, conforme demonstra a notícia, os princípios aplicáveis às indenizações, além de poder impor reparações às vítimas.
          Todos esses motivos contribuem para que o internacionalista permaneça atento à essa sentença. De um lado, porque, como já afirmei acima, demonstra a consolidação da Justiça Penal Internacional – ou, por outras palavras, o fim da “impunidade protegida pela soberania de Estado” -, de outro, porque dessa decisão, independentemente de seu teor ser absolutório ou condenatório, sairão importantes balizas jurisprudenciais a nortear as pesquisas futuras sobre o Direito Internacional Penal, especialmente no que tange a este novo e interessantíssimo campo de estudos jurídicos que é o Processo Internacional Penal.           
Segue abaixo a notícia, no original em inglês, extraída do sítio oficial do TPI (International Criminal Court  - ICC). 

The decision on the innocence or guilt of Thomas Lubanga Dyilo will be delivered on 14 March by ICC Judges
ICC-CPI-20120229-MA118
Situation: Democratic Republic of the Congo
Case: The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo
Trial Chamber I of the International Criminal Court (ICC) will deliver its decision on the innocence or guilt of Thomas Lubanga Dyilo (in accordance with article 74 of the Rome Statute) in a public hearing on 14 March 2012 at 10.00 a.m. (The Hague local time). Practical information on how to attend such session will be announced in a separate media advisory at a later stage.
The trial against Mr Lubanga Dyilo is the first trial before the ICC. It started on 26 January 2009 and the closing statements were presented by the parties and participants on 25 and 26 August 2011. In accordance with the Rome Statute, in order to convict the accused, the Chamber must be convinced of the guilt of the accused beyond reasonable doubt. In the event of a conviction, the Chamber will later consider the appropriate sentence to be imposed. Irrespective of whether the accused is acquitted or convicted, the Court is required to establish the principles to be applied in relation to reparations, and it may make orders as regards awards of reparations to victims.
At present, 14 cases have been brought before the Court of which 4 are at the trial stage. In total 7 situations are currently under investigation in Uganda, the Democratic Republic of the Congo, the Central African Republic, Darfur (Sudan), Kenya, Libya and Côte d’Ivoire.
Background information
Thomas Lubanga Dyilo, a national of the Democratic Republic of the Congo, is accused of having committed, as a co-perpetrator, the war crimes of enlisting and conscripting children under the age of 15 years into the Forces patriotiques pour la libération du Congo (Patriotic Forces for the Liberation of the Congo) (FPLC), and using them to participate actively in hostilities in Ituri, a district of the eastern province of the Democratic Republic of the Congo, between September 2002 and August 2003. Following his surrender to the Court, he was transferred to The Hague on 17 March 2006, pursuant to a warrant of arrest issued by Pre-Trial Chamber I.
Over the course of 204 days of hearings, the Chamber, comprising Judge Adrian Fulford (presiding judge), Judge Elizabeth Odio Benito and Judge René Blattmann, heard 36 witnesses called by the Office of the Prosecutor, including 3 experts, 24 witnesses called by the Defence and 3 witnesses called by the legal representatives of the victims participating in the proceedings. The Chamber also called 4 experts to testify.
A total of 129 victims, represented by two teams of legal representatives and the Office of Public Counsel for Victims, were granted the right to participate in the trial. They have been authorised to present submissions and to examine witnesses on specific issues.”