quinta-feira, 25 de julho de 2013

RT Comenta: DIREITO DO CONSUMIDOR


Prova: Promotor de Justiça MPSC - Concurso 38 (2013)
Tipo: Objetiva
Banca:
Mais uma questão de Direito do Consumidor, entre as que selecionei para comentar no blogue do GERT, do concurso XXXVIII para Promotor de Santa Catarina.
Questão 111
( ) “Liquidação imprópria” é a modalidade de liquidação nas ações coletivas para a reparação de danos envolvendo direitos individuais homogêneos, quando procedente a sentença, caso em que deverão ser apurados a titularidade do crédito e o quantum debeatur.

Há casos em que uma decisão judicial, apesar de ter certificado o direito, não permite que o autor usufrua o bem da vida, porquanto careça de liquidez. Nessas casos, é preciso completá-la, de modo a garantir a execução plena do título. Por isso se afirma que a sentença, além de certa e exigível, deve ser líquida, pois só assim se poderá falar na sua exequibilidade. 

A liquidação é justamente esse procedimento de complementação do direito certificado. Ela aparece como uma etapa prévia à execução da decisão judicial, fase que só ocorrerá quando estiver devidamente determinado (liquidado) o objeto da condenação.

No direito processual civil brasileiro, a doutrina majoritária aponta a existência de duas espécies de liquidação: (1) por arbitramento (quando é feita a partir da prova pericial); e (2) por artigos (quando é feita mediante a alegação e prova de fatos novos). A mesma liquidação pode apresentar-se ora como processo autônomo (para execução de sentença estrangeira homologada pelo STJ, sentença penal condenatória ou sentença arbitral), ora como incidente processual (liquidação incidental), ora como fase procedimental (que é a regra geral do sistema brasileiro após a Lei 11.232/05 vitalizar o processo civil sincrético, o qual conjuga as finalidades de certificação do direito, liquidação e execução da decisão judicial enquanto fases de um mesmo procedimento).   

Porém, compreender o que seja uma liquidação imprópria pressupõe sejam revistas algumas lições da teoria da decisão judicial no Processo Civil.   

Basicamente, é preciso recordar que a decisão judicial, em regra, ao certificar o direito na fase de conhecimento, define alguns elementos:

1) an debeatur (existência da dívida); 

2) cui debeatur (a quem é devido); 

3) quis debeat (quem deve);

4) quid debeatur (o que é devido);

5) quantum debeatur (quantidade devida).

Obviamente, o último elemento - o quantum debeatur - só aparecerá quanto a decisão tiver certificado um direito quantificável (p. ex., valor em dinheiro de uma indenização).

A doutrina aponta que, de regra, são ilíquidas as decisões que não fixam o quantum debeatur ou o quid debeatur. Em tais situações, o procedimento liquidatório serve, respectivamente, para quantificar o montante devido ou para individualizar o objeto da prestação. Mas há casos em que até mesmo o titular da relação jurídica é indefinido. Nesta última hipótese, tem-se um grau mais elevado de iliquidez. É aí que entrará o conceito de liquidação imprópria no processo coletivo.    

Doutrinariamente, liquidação imprópria é aquela que visa a apurar o valor do débito (quantum debeatur) e a aferir a titularidade do crédito. Diz-se "imprópria" justamente pelo caráter genérico da decisão liquidanda, que reconhece a existência da obrigação (an debeatur), mas não fixa imediatamente quem são os credores. Por outras palavras, a liquidação imprópria decorre de uma sentença coletiva procedente, que será ordinariamente genérica, uma vez que a demanda que a originou visa tão somente à decretação do dever de indenizar do réu.

É nesse contexto que deve ser lido o art. 95 do CDC:     

Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados.

Ou seja, a sentença coletiva é genérica na medida em que declara que os fatos deduzidos pelo autor provocaram danos a direitos individuais. No entanto, ela não é capaz de individualizar os consumidores lesados, tampouco o valor devido a cada um deles a título de indenização. Tal só poderá ser feito num procedimento de liquidação imprópria - onde, além do quantum debeatur, será necessário que as vítimas (e os sucessores) demonstrem o nexo de causalidade do prejuízo experimentado com o dano genericamente reconhecido na sentença coletiva procedente. Também por isso se diz em doutrina que a cognição na liquidação imprópria abrange um objeto mais amplo que o da liquidação "própria" (comum, tradicional), haja vista conjugar dupla finalidade: (1)apuração do montante da indenização devida pelo réu (quantum debeatur) e (2) definição dos titulares do crédito (vítimas do dano).         

Mas, no estudo da liquidação de sentença no processo civil coletivo, importa também considerar o seu objeto, que é a tutela dos direitos ou interesses transindividuais (também chamados de metaindividuais ou supraindividuais). Pode-se dizer, assim, que o que se busca tutelar são direitos de titularidade coletiva, cujas espécies bipartem-se na conhecida classificação que os divide em (a) direitos e interesses difusos e coletivos e (b) direitos e interesses individuais homogêneos. A própria lei especial alude a essa classificação:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

Consultando o CDC, o leitor notará que o legislador nada dispôs acerca da liquidação de sentença coletiva prolatada em demanda relativa a direitos difusos e coletivos. Dessa maneira, conclui-se que a liquidação nessas hipóteses seguirá a lógica procedimental do CPC: a decisão será liquidada ou por arbitramento (quando for suficiente a prova pericial para determinar o objeto da condenação) ou por artigos (quando a determinação do objeto da condenação requerer a alegação e prova de fato novo).   

A situação é distinta para os direitos individuais homogêneos. Para a sua tutela, o legislador previu um regramento próprio, previsto no art. 82 e ss. do CDC. Disso decorre que a execução da sentença coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos observará o códex consumerista, socorrendo-se apenas subsidiariamente do CPC. No caso da liquidação, à falta de disposição específica, a doutrina divide-se em duas correntes: de um lado, os que entendem que a sentença coletiva relativa a direitos individuais homogêneos pode ser liquidada por arbitramento e por artigos; de outro, os que entendem cabível tão só a liquidação por artigos (os consumidores lesados precisam provar fatos novos, como o dano individualizado e o respectivo nexo causal, para que possam usufruir os efeitos do título judicial genérico).   

De qualquer modo, o importante é notar que, quando a doutrina fala em liquidação imprópria, fá-lo no âmbito da liquidação de sentença de procedência relativa a direito individual homogêneo. O motivo é que a ação coletiva proposta para a tutela dessa espécie de direito transindividual visa precisamente a permitir seu aproveitamento pelos titulares do direito individual homogêneo lesado. Sendo assim, é indispensável que as vítimas (e seus sucessores) habilitem-se individualmente para a liquidação da sentença genérica. O oferecimento da liquidação nessa hipótese visa a apurar, além do montante devido (quantum debeatur), a ocorrência do dano individual e do nexo de causalidade que torna o prejuízo do lesado consequência dos fatos lesivos genericamente reconhecidos na sentença coletiva procedente. 

O art. 97 do CDC vai ao encontro desse raciocínio:     

Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82.

É nesse prisma, especialmente a partir da conjugação dos arts. 81, III, e 95 do CDC, que parcela da doutrina aduz a existência de uma peculiaridade na demanda para a tutela de direito individual homogêneo. Diz-se, com razão, que essa modalidade de tutela coletiva trata o objeto tutelado como sendo indivisível, mas que, com o oferecimento da liquidação e execução individuais, a indivisibilidade cede. Com isso, cinde-se o objeto tutelado, a fim de que se possa individualizar o dano experimentado por cada indivíduo (consumidor) lesado.

Na realidade, é correto mesmo afirmar que a demanda coletiva proposta para a defesa de direitos individuais homogêneos tem por finalidade formar um título executivo judicial que, apesar de genérico (ilíquido), presta-se a ao aproveitamento individualizado. Cada indivíduo, de posse da sentença coletiva genérica procedente, oferece sua liquidação, a buscar a individualização do seu dano, a prova do nexo causal e, consequentemente, a fixação do montante que lhe é devido.

No repositório de jurisprudência do STJ, colho julgado recente a caminhar de conformidade com o que expus acima. Eis o aresto (grifos meus):

PROCESSO CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA PROLATADA EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. PRECEDÊNCIA DA LEGITIMIDADE DAS VÍTIMAS OU SUCESSORES. SUBSIDIARIEDADE DA LEGITIMIDADE DOS ENTES INDICADOS NO ART. 82 DO CDC.
1. A legitimidade para intentar ação coletiva versando a defesa de direitos individuais homogêneos é concorrente e disjuntiva, podendo os legitimados indicados no art. 82 do CDC agir em Juízo independentemente uns dos outros, sem prevalência alguma entre si, haja vista que o objeto da tutela refere-se à coletividade, ou seja, os direitos são tratados de forma indivisível.
2. Todavia, para o cumprimento de sentença, o escopo é o ressarcimento do dano individualmente experimentado, de  modo que a indivisibilidade do objeto cede lugar à sua individualização.
3. Não obstante ser ampla a legitimação para impulsionar a liquidação e a execução da sentença coletiva, admitindo-se que a promovam o próprio titular do direito material, seus sucessores, ou um dos legitimados do art. 82 do CDC, o art. 97 impõe uma gradação de preferência que permite a legitimidade coletiva subsidiariamente, uma vez que, nessa fase, o ponto central é o dano pessoal sofrido por cada uma das vítimas.
4. Assim, no ressarcimento individual (arts. 97 e 98 do CDC), a liquidação e a execução serão obrigatoriamente personalizadas e divisíveis, devendo prioritariamente ser promovidas pelas vítimas ou seus sucessores de forma singular, uma vez que o próprio lesado tem melhores condições de demonstrar a existência do seu dano pessoal, o nexo etiológico com o dano globalmente reconhecido, bem como o montante equivalente à sua parcela.
5. O art. 98 do CDC preconiza que a execução "coletiva" terá lugar quando já houver sido fixado o valor da indenização devida em sentença de liquidação, a qual deve ser - em sede de direitos individuais homogêneos - promovida pelos próprios titulares ou sucessores.
6. A legitimidade do Ministério Público para instaurar a execução exsurgirá - se for o caso - após o escoamento do prazo de um ano do trânsito em julgado se não houver a habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, nos termos do art. 100 do CDC. É que a hipótese versada nesse dispositivo encerra situação em que, por alguma razão, os consumidores lesados desinteressam-se quanto ao cumprimento individual da sentença, retornando a legitimação dos entes públicos indicados no art. 82 do CDC para requerer ao Juízo a apuração dos danos globalmente causados e a reversão dos valores apurados para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (art. 13 da LACP), com vistas a que a sentença não se torne inócua, liberando o fornecedor que atuou ilicitamente de arcar com a reparação dos danos causados.
7. No caso sob análise, não se tem notícia acerca da publicação de editais cientificando os interessados acerca da sentença exequenda, o que constitui óbice à sua habilitação na liquidação, sendo certo que o prazo decadencial nem sequer iniciou o seu curso, não obstante já se tenham escoado quase treze anos do trânsito em julgado.
8. No momento em que se encontra o feito, o Ministério Público, a exemplo dos demais entes públicos indicados no art. 82 do CDC, carece de legitimidade para a liquidação da sentença genérica, haja vista a própria conformação constitucional desse órgão e o escopo precípuo dessa forma de execução, qual seja, a satisfação de interesses individuais personalizados que, apesar de se encontrarem circunstancialmente agrupados, não perdem sua natureza disponível.
9. Recurso especial provido.
(STJ, T4 - Quarta Turma, REsp 869.583/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 05/06/2012, p. 05/09/2012).

Todos os elementos doutrinários correspondentes ao conceito de liquidação imprópria, os quais procurei explanar  anteriormente, estão incorporados em sucessivos julgados da jurisprudência. Colaciono algumas dessas decisões (grifos meus):  

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. POUPANÇA.EXPURGOS. INDENIZAÇÃO POR LESÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.EXECUÇÃO INDIVIDUAL. JUROS MORATÓRIOS. MORA EX PERSONA. TERMOINICIAL. CITAÇÃO NA FASE DE LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. AGRAVOREGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. As ações civis públicas, em sintonia com o disposto no artigo 6º,VIII, do Código de Defesa do Consumidor, ao propiciar a facilitação a tutela dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, viabilizam otimização da prestação jurisdicional, abrangendo toda uma coletividade atingida em seus direitos, dada a eficácia vinculante das suas sentenças.
2. A sentença de procedência na ação coletiva tendo por causa de pedir danos referentes a direitos individuais homogêneos, nos moldes do disposto no artigo 95 do Código de Defesa do Consumidor, será, em regra, genérica, de modo que depende de superveniente liquidação, não apenas para apuração do quantum debeatur, mas também para aferir a titularidade do crédito, por isso denominada pela doutrina "liquidação imprópria".
3. Com efeito, não merece acolhida a irresignação, pois, nos termos do artigo 219 do Código de Processo Civil e 397 do Código Civil, na hipótese, a mora verifica-se com a citação do devedor, realizada na fase de liquidação de sentença, e não a partir de sua citação na ação civil pública. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STJ, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 18/12/2012, T4 - QUARTA TURMA).

CIVIL E PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. LIQUIDAÇAO DE SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE ACORDO. AÇAO CIVIL PÚBLICA. PRELIMINARES. incompetência DA JUSTIÇA ESTADUAL. NECESSIDADE CHAMAMENTO AO PROCESSO DA ANEEL. CERCEAMENTO DE DEFESA. AFASTADAS. INVERSAO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 6º, VIII, DO CDC. DEFICIÊNCIA NA PRESTAÇAO DO SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. DANO MORAL INDIVIDUAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. REDUÇAO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
[...]
5. A liquidação dos danos individuais versados em sentença genérica relacionada com direitos individuais homogêneos, é, nos dizeres de Cândido Dinamarco, uma liquidação imprópria, “porque inclui a pretensão do demandante ao reconhecimento, em um primeiro momento, de sua própria condição de lesado, ou seja, pretensão à declaração de existência do dano individual alegado; não se tratando de fase liquidatória instaurada para o fim exclusivo de obter a declaração do quantum debeatur (V. Instituições de Direito Processual Civil, vol. IV, 2009, p. 734).
[...]
(TJ-PI - AI: 201000010059905 PI, Relator: Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho, Data de Julgamento: 09/11/2011, 3a. Câmara Especializada Cível).

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. APLICAÇÃO DO ART. 557 DO CPC.NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTE DA CORTE ESPECIAL. RECURSOSREPRESENTATIVOS DA CONTROVÉRSIA (CPC, ART. 543-C). AÇÃO COLETIVA.SENTENÇA. CONDENAÇÃO GENÉRICA. DEVEDOR DE QUANTIA CERTA OU FIXADA EMLIQUIDAÇÃO. AUSÊNCIA. MULTA. ART. 475-J DO CPC. NÃO INCIDÊNCIA.
1. A decisão agravada, ancorada em precedente da Corte Especial (REsp 1.247.150/PR), adotou orientação que reflete a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, não havendo falar em inobservância da regra prevista no artigo 557, § 1º, do Código de Processo Civil.
2. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de recurso especial submetido ao procedimento dos recursos representativos da controvérsia, firmou o entendimento de que não é cabível a aplicação da multa prevista no art. 475-J do Código de Processo Civil no caso de descumprimento voluntário de sentença proferida no âmbito das ações coletivas, uma vez que, dada sua natureza genérica, esta decisão carece da liquidez e exigibilidade necessárias, demandando a apuração, mediante ampla cognição, da titularidade do crédito e do quantum debeatur.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STJ, T4 - Quarta Turma, AgRg no REsp 1.253.252/PR, Rel. Min. Raul Araújo, j. 12/06/2012, p. DJe 27/06/2012).

De modo a reforçar o propósito didático destes meus comentários, peço permissão ao leitor para reproduzir trecho do voto divergente proferido pela Desa. Liége Puricelli Pires no julgamento do AI 70027563840 do TJRS. Penso que a leitura do excerto sintetiza tudo o que expus acerca da liquidação imprópria nas sentenças coletivas de direitos individuais homogêneos. Ei-lo:    

Como regra, a indenização decorrente de violação a  direitos coletivos é devida às vítimas do dano ocasionado em tais direitos, vítimas essas que se mostram indeterminadas, ainda que eventualmente  determináveis em sede do procedimento chamado  “liquidação”, ou “liquidação imprópria”, como preferem alguns doutrinadores, a exemplo de Cândido Dinamarco, dada sua grande distinção em relação à liquidação própria do CPC. Aquela liquidação imprópria, típica para as ações coletivas de reparação por lesão a direitos individuais homogêneos, funciona como uma espécie de “habilitação” similar a do processo falencial. As pessoas que se entenderem vítimas vêm ao processo, em procedimento que resguarda o contraditório e ampla defesa, para provar o seu dano e o nexo de causalidade com o ilícito já reconhecido na sentença da ação coletiva. Uma vez demonstrados esses dois elementos, o Juiz “liquida” o montante indenizatório, abrangendo danos materiais e/ou morais. Uma vez operada essa liquidação imprópria, que pode ser feita individualmente ou coletivamente pelo legitimado extraordinário (indicando, na segunda hipótese, as vítimas substituídas), abre-se caminho à execução, a qual também pode ser individual ou coletiva (neste caso, individual plúrima, em verdade), desde que, na segunda hipótese, previamente liquidado o valor de cada indenização.

Daí porque, como acima se referiu, a sentença condenatória na ação coletiva de reparação de danos é sempre genérica, sem a fixação do quantum debeatur, uma vez que indeterminado o número de vítimas que dela podem se valer, por força da coisa julgada in utilibus, com efeito erga omnes em razão da procedência do pedido.

Contudo, o microssistema das ações coletivas, em especial no tocante às relações de consumo, consagra a chamada execução coletiva residual ou fluid recovery (reparação fluída), originária do direito norte-americano, cuja previsão legal encontra-se no art. 100 do CDC:

"Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.
Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela Lei n.° 7.347, de 24 de julho de 1985."

Trata-se de circunstância em que as vítimas de um acidente ou vício de consumo não aparecem em grande número para liquidar o crédito, ou não conseguem provar o dano, situação que se mostra mais do que esperada no caso dos autos. Para evitar a impunidade, os legitimados do art. 5º da LACP e art. 82 do CDC promovem uma execução coletiva, cujo produto será destinado ao Fundo criado pela Lei n.° 7.347, de 24 de julho de 1985, e que, no caso do Estado do Rio Grande do Sul, restou instituído pela Lei Estadual nº 10.913/97. Tal hipótese de execução só será possível após o decurso de um ano do trânsito em julgado da sentença condenatória (1ª condição), e se não houver vítimas habilitadas de modo suficiente a evitar uma impunidade (2ª condição), daí o seu caráter eminentemente residual.
 
Essa possibilidade de execução coletiva propriamente dita, contudo, e além dos requisitos materiais acima referidos, depende de prévia liquidação (liquidação imprópria das demandas coletivas), como decorre da redação do art. 100 do CDC

Sendo assim, após todo o exposto, é forçoso concluir que a questão 111 é VERDADEIRA.   

terça-feira, 23 de julho de 2013

RT Comenta: DIREITO DO CONSUMIDOR


Prova: Juiz Federal TRF5 (2012)
Tipo: Objetiva
Banca:
Às vezes um concurso difícil como o de Juiz Federal pode surpreender com questões relativamente fáceis. É o caso da questão abaixo, que separei de concurso recente, na qual fica evidente que a decoreba de leis é essencial ao concurseiro (gostemos disso ou não). Vamos ler o enunciado da questão 32:
QUESTÃO 32

Assinale a opção correta de acordo com o CDC.

(A) Se o dano for causado por componente ou peça incorporada ao produto ou serviço, respondem subsidiariamente o seu fabricante, o construtor ou importador e quem tiver realizado a incorporação.

(B) São nulas de pleno direito as cláusulas que infrinjam as normas ambientais ou possibilitem sua violação.

(C) Comprovado que o fornecedor desconhecia os vícios de qualidade por inadequação do produto, extingue-se o dever de indenizar.

(D) As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são solidariamente responsáveis pelas obrigações estabelecidas no CDC.

(E) Quando a contratação do serviço ocorrer fora do estabelecimento comercial, o consumidor poderá desistir do contrato no prazo de até quinze dias, contado da assinatura ou do recebimento do serviço.
Como se vê, a questão insere-se no estudo do Direito do Consumidor. Para resolvê-la, o leitor deve atentar para o seu enunciado: "de acordo com o CDC". Eis a chave para a resposta correta. O mencionar o "de acordo" o examinador, no fundo, está querendo dizer que ele irá reproduzir a famigerada letra da lei. E quem vence uma questão como essa? Não tem jeito: só quem leu bastante o código.     
1 - Comentários ao item A
 
(A) Se o dano for causado por componente ou peça incorporada ao produto ou serviço, respondem subsidiariamente o seu fabricante, o construtor ou importador e quem tiver realizado a incorporação.

A alternativa A está errada.
O erro é facilmente visualizado à luz do § 2º do art. 25 do CDC:

 Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.

§ 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.

§ 2° Sendo o dano causado por componente ou peça incorporada ao produto ou serviço, são responsáveis solidários seu fabricante, construtor ou importador e o que realizou a incorporação.
 
Note o leitor que o examinador fez um trocadilho com o § 2º do art. 25 do CDC. Nesse dispositivo, lê-se que a responsabilidade é solidária - e não subsidiária.

Uma dica é perceber que a Lei 8.078/90 visa a proteger o consumidor, que é presumido absolutamente vulnerável no mercado de consumo (art. 4º, I). Consequentemente, a responsabilidade tende à solidariedade, pois o vínculo obrigacional solidário facilita a reparação dos danos experimentados pelo consumidor lesado.   

Mas a legislação especial também traz algumas peculiaridades. Tal é a situação, por exemplo, da responsabilidade do comerciante pelo fato do produto. Vejamos o que prescreve o art. 13 do CDC:    

Art. 13. O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior, quando:

I - o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados;

II - o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador;

III - não conservar adequadamente os produtos perecíveis.

Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso.

Esse dispositivo sucede imediatamente o art. 12 do códex, que trata da responsabilidade do fornecedor pelo acidente de consumo (fato ou defeito do produto):

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

Note o leitor que, em regra, a responsabilidade dos fornecedores pelo fato do produto é objetiva (independe da existência de culpa) e solidária. Porém, em se tratando do comerciante, o art. 13 torna sua responsabilização diferenciada, condicionando-a à ocorrência de algumas das hipóteses elencadas nos incisos do art. 13. Presente alguma dessas situações, o comerciante será igualmente responsável solidário (a doutrina critica, com razão, o teor do inc. III do art. 13, mas tal debate não vem a calhar neste momento).  

Diversa é a responsabilidade do comerciante pelo vício do produto. Aí o art. 18 do CDC não diferenciou sua condição jurídica da dos demais fornecedores, de modo que ele será solidariamente responsável pelo prejuízo intrínseco (vício) do produto.

Eis o art. 18 do CDC:

Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

Portanto, convém atentar para esses pequenos detalhes da responsabilização solidária no CDC.  

2 - Comentários ao item B 

(B) São nulas de pleno direito as cláusulas que infrinjam as normas ambientais ou possibilitem sua violação.

A alternativa B está correta.

O item consiste na reprodução literal do art. 51, XIV, do CDC: 

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

 XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;

Examinador cobrou a letra da lei.

3 - Comentários ao item C

(C) Comprovado que o fornecedor desconhecia os vícios de qualidade por inadequação do produto, extingue-se o dever de indenizar.
 
A alternativa C está errada.

O microssistema consumerista não permite afastar a responsabilidade do fornecedor que, embora agindo de boa-fé, causa dano ao consumidor. Por essa razão, o art. 23 do CDC prevê o seguinte:

Art. 23. A ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade.

Evidentemente, se a legislação aceitasse a escusa da ignorância como causa excludente da responsabilidade, o consumidor restaria desprotegido em muitas situações. Por isso, a regra é a da responsabilidade objetiva pelo fato do produto (CDC, art. 12, caput) ou do serviço (CDC, art. 14, caput), salvo, neste último caso, quando se tratar de acidente de consumo decorrente de serviço prestado por profissional liberal, porque aí prevalece a exceção prevista no art. 14, § 4º, o qual demanda a perquirição do elemento culposo: 

Art. 14 omissis
 
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

Note o leitor que essa exceção aplica-se tão somente ao fato do serviço. Não é possível interpretá-la extensivamente, com vistas a aplica-la também na hipótese de vício do serviço, tal como previsto no art. 20 do CDC:    

Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;

II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - o abatimento proporcional do preço.

§ 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor.

§ 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.

Como o art. 20 não aludiu a quaisquer exceções à responsabilidade objetiva, conclui-se que, na hipótese de vício do serviço, a responsabilidade do fornecedor, incluindo o profissional liberal, será objetiva, isto é, apurada independentemente de culpa.

A seguir, colaciono uma decisão que desenvolve o raciocínio supra

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. PRELIMINAR AFASTADA. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO. PRETENSÃO DE SUBSTITUIÇÃO POR OUTRO DA MESMA ESPÉCIE EM RAZÃO DE VÍCIOS DO PRODUTO. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR DE NATUREZA OBJETIVA OU EM FACE DE PRESUNÇÃO "JURE ET DE JURE" DE CULPA, DA QUAL NÃO SE EXIME NEM NA HIPÓTESE DE IGNORÂNCIA DOS VÍCIOS, QUE SEQUER PODE ALEGAR, HAJA VISTA SEREM PREVISTOS EM BOLETINS TÉCNICOS EMITIDOS PELO FABRICANTE E QUE EMPRESTAM VERACIDADE À ALEGAÇÃO DE SUA OCORRÊNCIA PELO CONSUMIDOR. VÍCIOS, ADEMAIS, QUE TEM SUA OCORRÊNCIA COMPROVADA PELO CONJUNTO PROBATÓRIO E NÃO DECORREM DE COMPORTAMENTO NEGLIGENTE DO CONSUMIDOR. PROCEDÊNCIA PARCIAL. DECISÃO CORRETA. APELO DESPROVIDO.
(TJ-PR - AC: 1423110 PR Apelação Cível - 0142311-0, Relator: Augusto Lopes Cortes, Data de Julgamento: 05/05/2004, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 17/05/2004 DJ: 6622)

Agora o leitor tem condições de compreende o porquê de o art. 23 do CDC mencionar apenas "vícios". A razão é que, quando houver responsabilidade pelo fato do produto, a investigação de culpa será necessária para efeito de responsabilização do profissional liberal a quem se atribui a causação do acidente de consumo (CDC, art. 14, § 4º). 

4 - Comentários ao item D

(D) As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são solidariamente responsáveis pelas obrigações estabelecidas no CDC.
 
A alternativa D está errada.

Outro item retirado diretamente da letra da lei. Eis o dispositivo aplicável:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

O examinador trocou o termo "subsidiário" do § 2º pelo "solidário", nisso consistindo seu equívoco.  

5 - Comentários ao item E

(E) Quando a contratação do serviço ocorrer fora do estabelecimento comercial, o consumidor poderá desistir do contrato no prazo de até quinze dias, contado da assinatura ou do recebimento do serviço.
 
A alternativa D está errada.

O examinador retirou o item do art. 49 do CDC, que ora reproduzo:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

O erro da alternativa está no prazo, que não é de 15 dias, mas sim de apenas 7 dias, tal como está escrito na letra da lei.

Vale lembrar que doutrina e jurisprudência denominam tal prazo de "direito de arrependimento", senão vejamos:
 
AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. COMPRA. SISTEMA TELEVENDAS. DIREITO DE ARREPENDIMENTO. PRAZO LEGAL DE SETE DIAS. ART. 49 DO CDC. DECISÃO AGRAVADA. MANUTENÇÃO.
I- É facultado ao consumidor desistir do contrato de compra, no prazo de 7 (sete) dias, a contar da sua assinatura, quando a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial, nos termos do art. 49 do CDC.
II- Agravo Regimental improvido.
(STJ, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 22/06/2010, T3 - TERCEIRA TURMA)

Como o leitor pôde perceber ao longo destes meus comentários, em todos os concursos, conhecer bem a letra da lei é fundamental.