quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

RT Comenta: DIREITO CONSTITUCIONAL


Prova: Juiz Federal TRF5 2011
Tipo: Discursiva
Banca:
 
1 - Dissertação
Discorra sobre o fenômeno da objetivação, objetivização ou abstrativização do controle difuso de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Em seu texto, explicite o conceito desse fenômeno, apresente exemplos, analise as relações do fenômeno com outras modalidades de controle constitucional e com procedimentos decisórios vinculativos, como a súmula vinculante e a repercussão geral, e enfoque, ao final, as consequências de todas essas novidades para a aplicação jurisdicional da Constituição Federal.
2 - Minha Resposta
Na tradicional classificação doutrinária do controle de constitucionalidade, temos que, quanto ao momento, o controle pode ser preventivo ou repressivo. Neste último caso, a aferição da constitucionalidade de uma determinada norma é feita a posteriori, isto é, após a sua entrada em vigor no ordenamento jurídico. Por isso, a finalidade do controle repressivo é paralisar a eficácia de lei ou ato normativo do Poder Público contrastante com o texto da Constituição. 
De acordo com o sistema de controle de constitucionalidade da CF/88, o controle repressivo é o controle típico do Poder Judiciário. É quando surge nova classificação do controle, desta vez relacionada à competência do órgão jurisdicional. Assim, no plano competencial, o controle pode apresentar-se de duas maneiras: concentrado e difuso. O modelo de controle concentrado é aquele em que a competência para a fiscalização das leis infraconstitucionais é atribuída com exclusividade a um grupo ou a um órgão julgador especializado (no Brasil, esse órgão é o Supremo Tribunal Federal). Já o modelo do controle difuso é aquele em que a competência para verificar a constitucionalidade de lei ou ato normativo pertence a todo e qualquer juiz ou tribunal no exercício da jurisdição.
No sistema brasileiro, o controle difuso de constitucionalidade apresenta como característica principal o fato de ser um controle concreto, isto é, ele é feito a partir de um caso concreto, de um processo de partes, com vistas a garantir, em primeiro lugar, a defesa de direitos subjetivos e, secundariamente, a supremacia da Constituição.
Quando se afirma que o controle difuso decorre de um caso concreto e que seu objetivo principal é a salvaguarda de direitos subjetivos, está-se a evidenciar que a fiscalização da constitucionalidade das leis ou atos normativos não é a finalidade principal do processo. Diferentemente do controle concentrado-abstrato, no qual o juízo de compatibilidade da norma com o texto constitucional é analisado principaliter tantum (ele constitui o próprio pedido da ação direta), no controle difuso-concreto a alegada questão da inconstitucionalidade funciona como questão prejudicial do mérito, de maneira que o órgão julgador, para resolver a controvérsia e certificar o direito subjetivo, necessariamente, terá de proceder à verificação da compatibilidade do objeto (lei ou ato normativo) com o parâmetro (Constituição). Por isso, a doutrina afirma que o controle difuso-concreto é um controle incidental, haja vista a alegação do vício de inconstitucionalidade ser feita como causa de pedir (incidenter tantum) da demanda.            
A primeira consequência de a questão de constitucionalidade ser alegada como causa de pedir (prejudicial de mérito) é que o órgão julgador não irá analisá-la no dispositivo da sentença ou acórdão (locus da análise do pedido), mas sim na fundamentação da decisão. Assim, no controle feito pela via incidental, caso seja reconhecido o vício de inconstitucionalidade, o órgão decisório afastará a aplicação da norma apenas para o caso concreto (daí por que, doutrinariamente, fala-se que, quanto à finalidade, o controle difuso é um controle de efeito concreto). 
Como o reconhecimento da eiva de inconstitucionalidade não é o objeto da demanda no controle difuso (o pedido veiculado na ação é a tutela de direitos subjetivos), e sim mera questão incidente (prejudicial do mérito), cuja resolução dar-se-á nos motivos (fundamentação) do decisum, é forçoso concluir que a decisão prolatada não se revestirá da autoridade da coisa julgada material. É o que determinada expressamente o CPC (grifo meu):
Art. 469. Não fazem coisa julgada:

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;

III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.

Se a apreciação da questão incidente não se reveste da coisa julgada material, tampouco irá projetar seus efeitos para fora do processo em que proferida. Desse modo, a decisão judicial que afasta a norma contrastante com a Constituição no controle incidental não produzirá efeitos erga omnes (oponível contra todos), mas apenas efeitos inter partes.
Por conseguinte, o controle difuso-concreto, por desenvolver-se em um processo subjetivo - no qual o objeto litigioso não é a verificação da constitucionalidade, mas sim a certificação de direitos dos particulares -,  acarreta a consequência de que a decisão do órgão julgador, que procede ao juízo de compatibilidade do objeto com o parâmetro constitucional, só afeta as partes envolvidas no caso, não atingindo terceiros não participantes da relação processual.   
A característica do controle difuso de só produzir efeitos inter partes fez com que parcela da doutrina brasileira passasse a defender o igualamento dos efeitos gerais da decisão judicial que controla a constitucionalidade nos modelos difuso-concreto e concentrado-abstrato. Nesse sentido é que se pugna, em doutrina, pela abstrativização, objetivação ou objetivização do controle difuso de constitucionalidade no Brasil.
Sumamente, a ideia é permitir que as decisões tomadas pelo STF em sede de controle difuso possam produzir efeitos erga omnes e vinculantes, projetando-se para além das partes do processo subjetivo. Como é cediço, no controle concentrado, a fiscalização da constitucionalidade não é feita incidentalmente, e sim principaliter tantum, uma vez que ela compõe o objeto do processo (daí se dizer que sua finalidade é abstrata, pois o pronunciamento judicial far-se-á em tese, e não para o desfecho de um caso concreto). Por constituir o objeto litigioso do processo, a decisão sobre a constitucionalidade da norma figurará no dispositivo da decisão, de maneira a revestir-se da coisa julgada material. E, com a coisa julgada formada, terá eficácia geral (erga omnes) e vinculante. Não é o que sucede no controle difuso, dada a característica de a decisão judicial objetivar, precipuamente, a resolução de um caso concreto (objeto litigioso do processo subjetivo), só produzindo efeitos inter partes, não havendo formação de coisa julgada material no que concerne à análise incidenter tantum da prejudicial de inconstitucionalidade.     
Para os defensores da abstrativização do controle difuso no Brasil, o reconhecimento de efeitos erga omnes e vinculantes à decisão que dirime o incidente de constitucionalidade nos autos de um processo subjetivo contribuiria para assegurar a força normativa da Constituição, dando especial prestígio à sua supremacia, na medida em que os precedentes da Corte Suprema que concluíssem pela inconstitucionalidade da lei ou ato normativo do Poder Público, ainda que firmados incidentalmente em sede de controle difuso, a partir de um caso concreto, teriam eficácia geral, oponível contra todos, e vinculativa dos Poderes Públicos.  
Nesse ponto, os adeptos da tese da abstrativização apontam a ocorrência de uma mutação constitucional quanto ao disposto no art. 52, X, da CF/88, segundo o qual compete ao Senado Federal "suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal". Esse dispositivo é importante. Interpretando-o literalmente, nota-se que, para uma decisão do STF - sobre a questão de constitucionalidade, tomada em sede de controle difuso - adquirir eficácia geral, é preciso que o Senado, discricionariamente, intervenha, vindo a editar resolução que suspenda a execução do dispositivo impugnado. Porém, para os defensores da abstrativização, a regra em comento teria alterado seu sentido, a despeito de inexistir modificação textual. Dessa mutação, surgiria nova exegese, a indicar que a suspensão de execução de lei pelo Senado teria o simples efeito de dar publicidade ao acórdão do STF. Significa dizer que a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo por parte do Supremo Tribunal Federal, ainda que seja feita incidentalmente na fundamentação da decisão prolata, teria, de per se, efeitos gerais (erga omnes), independentemente da resolução senatorial.
Para que a fundamentação articulada no acórdão do STF possa produzir efeitos gerais, a tese da abstrativização do controle difuso sustenta, no plano doutrinário, a aplicabilidade da teoria da transcedência dos motivos determinantes. Aqui cabe uma breve explicação. Normalmente, a eficácia geral e o efeito vinculante do conteúdo de uma decisão só ocorre em relação ao dispositivo. É nele que se julga o pedido, tornando-o apto a revestir-se da coisa julgada material. De regra, portanto, os motivos da decisão não fazem coisa julgada, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença (CPC, art. 469, I). Contudo, pela teoria da transcendência dos motivos determinantes, não somente o dispositivo da sentença é vinculante para todos, mas também a fundamentação. Significa dizer que a ratio decidendi que determinou a decisão pode vir também a transcender o caso concreto, irradiando efeitos sobre terceiros, especialmente para vincular os Poderes Públicos - à exceção do Poder Legislativo e do próprio STF, tribunal ao qual é dado rever em Plenário suas próprias decisões, de maneira a evitar a fossilização da interpretação do texto supremo.
O efeito vinculante da fundamentação das decisões visa a garantir o respeito aos precedentes judiciais. Assemelha-se, dessa forma, ao stare decisis do direito constitucional estadunidense, pelo qual eventual declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, posto que prolatada no caso concreto, vincula os demais tribunais ao teor do decidido (peso do precedente). No sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, só existe previsão de efeito vinculante para as decisões tomadas pelo STF em sede de ADI e ADC. É o que denota o § 2º do art. 102 da CF/88:

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.


ADI e ADC integram o repertório de ações do controle de constitucionalidade concentrado no Brasil (as outras são ADO, ADPF e a RI). Mesmo assim, a atual jurisprudência do STF vacila, havendo ministros que entendem que o efeito vinculante da ADI e ADC aplicar-se-ia tão somente ao dispositivo da decisão (corrente restritiva), ao passo que outros ministros entendem-no extensível também à fundamentação (corrente ampliativa ou extensiva, defensora da transcendência dos motivos determinantes).
Quando se trata de controle difuso, o debate é ainda mais controverso, especialmente pela tese da mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88 (modificação do papel do Senado Federal, que, de ordinário, tem a prerrogativa de atribuir efeitos erga omnes à decisão do STF que paralisa a eficácia de determinada lei no controle incidental). 
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a doutrina costuma aduzir alguns precendentes indiciários do fenômeno da abstrativização do controle difuso.
O primeiro precedente suscitado é o RE 197.917/SP. Nesse julgamento, contestava-se a representação legislativa no município de Mira Estrela (SP), à luz do princípio constitucional da proporcionalidade inscrito na redação original do inc. IV do art. 29 da CF (hoje, com o advento da EC 58/2009, o dispositivo ganhou nova redação). Na oportunidade, o Min. Gilmar Mendes sugeriu a existência de um efeito transcedente na decisão que deu provimento ao recurso extraordinário. A culminância do julgamento foi dar com a expedição da Resolução 21.702/2004, mediante a qual o TSE então regulamentou a quantidade de vagas nas Câmaras Municipais em todo o país. Ou seja, o TSE ratificou, por meio de uma resolução (ato normativo primário) entendimento da Suprema Corte fixado em aresto oriundo do controle difuso.       
O segundo precedente comumente apontado é o HC 82.959/SP. Nesse caso, o réu Óseas de Campos, condenado a 12 anos e três meses de reclusão por atentado violento ao pudor contra três crianças, impetrou HC para contestar decisão do STJ que vedara a progressão de regime de cumprimento de pena para os condenados por crimes hediondos. Foi a oportunidade de que o STF precisava para reconhecer a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, o qual estipulava que a pena por crime hediondo seria cumprida integralmente em regime fechado (tempos depois o legislador, influenciado pela interpretação da Corte Suprema, deu nova redação ao dispositivo ao promulgar a Lei 11.464/07). O acórdão ficou assim ementado:     
PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 - INCONSTITUCIONALIDADE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.
(STF, Tribunal Pleno, HC 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 23/02/2006, p. DJ 01/09/2006).   
 
Para os teóricos da abstrativização, a importância desse acórdão consistiu na atitude da Defensoria Pública que, após  o STF ter declarado, em sede de controle difuso, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º  da Lei 8.072/90, ajuizou reclamação constitucional (Rcl 4.335/AC) , para contestar a decisão da Vara de Execuções Penais de Rio Branco (AC), que indeferiu pedido de progressão de regime em favor de dez condenados pela prática de crimes hediondos. A peculiaridade do caso reside na circunstância de que a reclamação é instituto processual cuja destinação volta-se à preservação da competência e à garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, l). De ordinário, a decisão, cuja autoridade a ação quer resguardar, deve ser dotada de eficácia geral (erga omnes) e vinculante. Esse tipo de aresto é encontrado no controle concentrado, modelo de fiscalização abstrata da constitucionalidade. Ocorre que, na Rcl 4.335/AC, o relator, Min. Gilmar Mendes, entendeu que a decisão do STF, tomada nos autos do HC 82.959/SP, que reconheceu a inconstitucionalidade da norma que vedava a progressão de regime aos condenados pelos crimes qualificados pela hediondez, teria sido desrespeitada pelo juiz acreano. Eis excerto que colhi junto ao seu voto:   

É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica  mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto.
(...)
Em verdade, a aplicação que o Supremo Tribunal Federal vem conferindo ao disposto no art. 52, X, da CF indica que o referido instituto mereceu uma significativa reinterpretação a partir da Constituição de 1988.
É possível que a configuração emprestada ao controle abstrato pela nova Constituição, com ênfase no modelo abstrato, tenha sido decisiva para a mudança verificada, uma vez que as decisões com eficácia erga omnes passaram a se generalizar. 
(...)
Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não se cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (...).
Portanto, a não-publicação, pelo Senado Federal, de Resolução que, nos termos do art. 52, X da Constituição, suspenderia a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia jurídica.   
(...)
Com efeito, verifica-se que a recusa do Juiz de Direito da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, em conceder o benefício da progressão de regime, nos casos de crimes hediondos, desrespeita a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão deste Supremo Tribunal Federal, no HC 82.959, que declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/1990.


Portanto, o relator admitiu efeitos irradiantes transcendentais à fundamentação de uma decisão tomada em sede de controle difuso. Explicitamente, reconheceu o efeito transcendente dos motivos determinantes da ratio decidendi do julgado, para autorizar a procedência do pedido contido em uma reclamação constitucional que, em princípio, só serviria para resguardar a autoridade das decisões declaratórias de constitucionalidade ou inconstitucionalidade tomadas no controle concentrado (dotadas de eficácia erga omnes).

Ao permitir reclamação para garantia da autoridade de aresto ementado em sede de controle difuso, sem que o autor da ação tivesse sido parte na relação processual pertinente ao precedente invocado, o Min. Gilmar Mendes considerou superada a intervenção discricionária do Senado Federal, prescindindo da resolução senatória de suspensão eficacial do ato normativo atacado para o asseguramento da eficácia geral da decisão. Frise-se que, na leitura doutrinária tradicional, caberia a essa resolução atribuir o efeito erga omnes ao julgado concebido no controle pela via incidental.    
Embora a apontada Rcl 4.335/AC ainda esteja pendente de julgamento pelo Plenário do STF, e de toda a constrovérsia doutrinária e jurisprudencial que remanesce derredor do efeito transcendente dos motivos determinantes e da mutação constitucional quanto ao papel do Senado na atribuição de efeitos gerais ao controle concreto, é indiscutível que, nos últimos anos, o cenário do ordenamento jurídico brasileiro foi alterado pela criação de institutos que, ainda que indiretamente, reconhecem efeito transcendente às decisões do STF tomadas em sede de controle difuso.
É assim que se entende que a súmula vinculante denota uma tendência à abstrativização. Com efeito, trata-se de instrumento previsto no art. 103-A da CF/88 (incluído pela EC 45/2004) nos termos seguintes:  

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.


Esse dispositivo revela que os enunciados de súmula, quando editados em conformidade com o regramento proposto supra, tornar-se-ão vinculativos para os Poderes Públicos (excetuados o Poder Legislativo e o STF, é claro). Ora, como referidos enunciados originam-se de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, é de se ver que o legislador constituído atribuiu um efeito típico do controle de constitucionalidade abstrato (efeito vinculante) aos precedentes assentados em sede de controle difuso. 

Isso fica bastante evidente na regulamentação do mecanismo pela Lei 11.417/06, onde se lê, no § 1º do art. 2º (por sinal, repetição do § 1º do art. 103-A da CF/88), que o enunciado de súmula vinculante visará a dirimir controvérsia atual entre os orgãos judiciários e/ou a administração pública. Vejamos:       
§ 1º  O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.
 
Controvérsia atual não pode ser senão a que se verifica in concreto, inspirada por uma pletora de lides. E como no Brasil o controle difuso é sempre exercido em concreto, fica evidente que o efeito vinculante do enunciado de súmula, ao fim e ao cabo, denota uma incipiente tendência legislativa de conferir eficácia geral às decisões da Corte Suprema, independentemente da intervenção do Senado Federal.   
Essa mesma tendência legiferante apresenta-se no instituto da repercussão geral. Trata-se de um novel requisito intrínseco de admissibilidade recursal. Sua previsão encontra-se encartada no art. 102, § 3º, da CF/88 ((incluído pela EC 45/2004):

§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.


Ao introduzir na sistemática processual brasileira um novo requisito de cabimento do recurso extraordinário, o legislador constituído passa uma mensagem cristalina: é preciso filtrar os casos concretos que hão de ser julgados pelo STF. Por outras palavras, o apelo extremo não serve apenas ao propósito de tutela de direitos subjetivos, mas tem também se presta à missão de assegurar a defesa da ordem constitucional objetiva (supremacia da Constituição). É por isso que nem todos os casos merecem chegar ao conhecimento da Corte Suprema. Apenas devem ser objeto de julgamento aqueles precedentes que, efetivamente, tenham algum grau de transcedência, isto é, cuja repercussão social, política, econômica ou jurídica seja de tal monta que ultrapasse os interesses subjetivos da causa.

É o que se depreende, de maneira inequívoca, da Lei 11.418/06, que regulamentou o procedimento desse "filtro de recursos", acrescentando o art. 543-A ao CPC:

Art. 543-A.  O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. 
§ 1º  Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. 
§ 2º  O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral. 
§ 3º  Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. 
§ 4º  Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário. 
§ 5º  Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. 
§ 6º  O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. 
§ 7º  A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.

É lógico que, diante do disposto no art. 543-A do CPC, a filtragem para o conhecimento do recurso excepcional terá de ser feita caso a caso. Sim, pois é virtualmente impossível estabelecer um juízo apriorístico, dotado de fixidez, quanto ao que seja relevante do ponto de vista econômico, social, político ou jurídico - conceitos indeterminados por excelência. Logo, o STF terá de analisar o caso concreto, para estabelecer se há ou não repercussão geral.   
Entretanto, o legislador infraconstitucional previu pelo menos uma exceção relevante no § 3º do art. 543-A do CPC. In verbis novamente: 

§ 3o  Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.

Cuida-se de uma presunção legal de repercussão geral aplicável às hipóteses em que o recurso extraordinário contestar decisão contrária a enunciado de súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. Ora, a interpretação que se extrai do requisito de admissibilidade recursal presumido é no sentido de que as decisões do STF merecem o devido respeito por parte dos órgão jurisdicionais do País. Nesse novo contexto normativo, o direito judicial ganha prestígio. Assim, as decisões tomadas pelos tribunais, especialmente pelo STF, quando desrespeitadas, fazem presumir a repercussão, até mesmo por apreço ao ideário da segurança jurídica, do qual resulta a força dos precedentes judiciais. A presunção absoluta de repercussão geral inscrita no § 3º do art. 543-A do CPC, consequentemente, revela uma tendência de abstrativização do controle difuso, pois instiga e recrudesce o caráter vinculativo dos precedentes da Suprema Corte, mesmo que eles tenham sido cimentados a partir de casos concretos, e não de pronunciamentos em tese típicos do modelo abstrato de fiscalização da constitucionalidade.  
Todo esse amplo panorama apresentado, que percorre os planos jurisprudencial, doutrinário e legislativo, anuncia uma nova compreensão do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade à luz da Constituição de 1988. A tendência é dar à jurisprudência do STF a importância que ela merece, criando mecanismos assecuratórios da autoridade de suas decisões, seja pela via da reclamação constitucional, seja pela edição de enunciados de súmula com efeito vinculante, seja pela filtragem de recursos extraordinários permitida pelo requisito de admissibilidade recursal da repercussão geral.  
O que se percebe de uníssono nesse cipoal de medidas legislativas, busílis doutrinários e discussões jurisprudenciais é que o sistema jurisdicional misto de controle de constitucionalidade passa por uma evolução incontornável no Brasil, a caminhar no sentido da valorização dos precedentes judiciais.

Nessa toada, o reconhecimento da tendência hodierna de abstrativização do controle difuso vai ao encontro desse movimento evolutivo, pois preconiza o desenvolvimento de instrumentos que superem uma visão anacrônica da separação de Poderes, que condiciona a dimensão eficacial erga omnes das decisões da Suprema Corte no controle concreto à participação discricionária do Senado Federal.  
Mas a consequência mais marcante que o movimento de abstrativização do controle difuso apresenta diz respeito à aplicação jurisdicional da Constituição de 1988.
Como é sabido, a jurisdição constitucional, que compreende a aplicação das normas constitucionais por juízes e tribunais, pode ser direta ou indireta. Só este último caso interessa ao controle de constitucionalidade, pois, na jurisdicional constitucional indireta, o intérprete utiliza-se do texto constitucional como o guia paradigmático de aferição da validade das normas hierarquicamente inferiores.
Pois bem. O que a tendência de abstrativização do controle difuso demonstra é que a aplicação jurisdicional da Constituição deve pautar-se pela primazia da sua força normativa. Como, à luz da CF/88, o guardião autorizado do texto constitucional é o Supremo Tribunal Federal, deve-se concluir a fortiori que as decisões da Suprema Corte devem ser obedecidas pelos órgãos jurisdicionais a quo.

Tal não implica que se não possa divergir do STF. Apenas a abertura de divergência contra um precedente demanda maior ônus argumentativo pelo intérprete. Logo, quando não houver fundamentos substacialmente arrazoados nas sentenças ou acórdãos que divirjam da jurisprudência da Corte, o desrespeito trivial aos precedentes do STF, no fundo, revela apenas uma incompreensão cabal da atividade judicante pós-CF/88. O motivo é que, ao assim decidir, o órgão julgador ignora o papel preeminente do Tribunal na defesa do princípio da supremacia da Constituição. E, nesse prospecto, a obediência aos precendentes firmados pelo STF assegura a segurança jurídica que se reputa desejável do sistema jurídico como um todo.       

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

DOS REQUISITOS PARA A TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ: análise do HC 139.942/SP (Inf. 509)

Min. Maria Thereza de Assis Moura, relatora do HC 139.942/SP

1 - Introdução

Dentre os tipos penais que visam a tutelar a paz pública, encontra-se o de quadrilha ou bando. Sua previsão legal está no art. 288 do CP nos termos seguintes:

 Art. 288 - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes:
Pena - reclusão, de um a três anos. 
Parágrafo único - A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.


Para a configuração desse tipo, doutrina e jurisprudência, ao longo do tempo, foram firmando entendimento quanto aos elementos exigíveis no caso concreto.

O primeiro deles, também o mais óbvio, relaciona-se com a quantidade de integrantes que praticam a conduta de "associarem-se para o fim de cometer crimes". A redação do tipo patenteia a necessidade de que haja mais de três pessoas, isto é, só se tipifica a quadrilha ou bando se houver, pelo menos, quatro agentes associados.

Quanto ao número mínimo de associados, o STJ já decidiu explicitamente (grifo meu):

HABEAS CORPUS. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ART. 180 DO CP. FIXAÇÃO DA PENA PREVISTA NO CAPUT. IMPOSSIBILIDADE. EXERCÍCIO DA ATIVIDADE COMERCIAL OU INDUSTRIAL. MAIOR GRAVIDADE E REPROVABILIDADE DA CONDUTA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. DELITO DE QUADRILHA ARMADA. PRESENÇA DE MAIS DE TRÊS PESSOAS. DELITO CONFIGURADO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.
1. Embora seja certo que o delito do § 1º do art. 180 do Código Penal traga como elemento constitutivo do tipo o dolo eventual, a pena mais severa cominada à forma qualificada da receptação tem sua razão de ser na maior gravidade e reprovabilidade da conduta praticada no exercício da atividade comercial ou industrial, cuja lesão exponencial resvala num número indeterminado de consumidores.
2. Para a configuração da infração tipificada no art. 288 do Código Penal - quadrilha ou bando -, é exigida a presença de pelo menos quatro indivíduos, uma vez que o tipo penal prevê que o ilícito resta caracterizado somente quando "mais de três pessoas" se associam para "o fim de cometer crimes".
3. O simples fato de ter sido determinado o desmembramento do feito em relação aos demais agentes não tem o condão de descaracterizar o delito previsto no art. 288 do Código Penal, como pretendido na impetração, já que, além do paciente e dos outros dois agentes que restaram condenados na mesma ação penal pelo crime de quadrilha armada, ainda restaram outros integrantes a compor o bando.
4. Ordem denegada.
(STJ, Sexta Turma, HC 189.297/BA, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 19/06/2012, p. DJe 29/06/2012).

O segundo deles é pertinente à conduta, entendida como a associação de quatro pessoas (no mínimo) com o fito de cometer crimes. No entanto, a conduta, caracterizadora do art. 288 do CP, apresenta algumas peculiaridades. A partir de agora, hei de destacá-las.  

2 - As peculiaridades da conduta no crime de quadrilha ou bando

Dentre os elementos integrantes do fato típico, destaca-se a conduta. É nela que se avalia a presença, no caso concreto, da voluntariedade ou involuntariedade. Numa palavra, a conduta pode ser dolosa ou culposa.  

Para efeito de tipificação do delito do art. 288 do CP, a conduta deve ser dolosa, ou seja, exige-se a vontade consciente de associar-se em quadrilha ou bando. Mas não basta "qualquer" manifestação de vontade. É preciso que ela esteja dirigida a um fim específico, que é o de "cometer crimes".

Portanto, a expressão "para o fim cometer crimes" deve ser analisada com esmero. Cumpre sublinhar, de início, que é ela que denota o especial fim de agir, ou o elemento subjetivo do injusto, ou ainda o "dolo específico" (denominação antiga, hoje em paulatino desuso doutrinário). Se o dolo dos agentes não tiver "o fim de praticar crimes", consequentemente, não haverá quadrilha ou bando. Daí por que a popular "quadrilha do jogo do bicho" é juridicamente atecnia das mais reprováveis, haja vista inexistir, nos termos do art. 288 do CP, associação de quadrilheiros com o fim de cometer contravenção penal. Da mesma maneira, se o ajuntamento deu-se com vistas à prática de um único crime, não há que se cogitar de quadrilha ou bando, pois o plural empregado pelo legislador (cometer crimes) tem a significância dogmática de compreender a perpetração de vários delitos, uma série indefinida deles.
    
Outro importante efeito do elemento subjetivo do injusto no crime de quadrilha ou bando é a necessidade de sua demonstração pelo titular da ação penal quando do oferecimento da peça acusatória. Caso contrário, restará inviabilizada a defesa e até mesmo a adequação típica. É como já decidiu o STJ (grifo meu):
 
HABEAS CORPUS. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. INÉPCIA. OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO VÍNCULO ASSOCIATIVO E DO ELEMENTO SUBJETIVO ESPECIAL DO TIPO (FINALIDADE DE COMETER CRIMES). ORDEM CONCEDIDA.
1. Para a imputação do crime previsto no art. 288 do Código Penal, o concurso necessário de mais de 3 agentes, de forma permanente, ligados subjetivamente pela vontade consciente de cometerem delitos, como elementares que são do tipo, devem ser demonstradas pelo parquet quando do oferecimento da peça acusatória, sob pena não só de inviabilizar o exercício da defesa como, até mesmo, impossibilitar a adequação típica entre a conduta e a norma.
2. Na hipótese, não há na exordial acusatória menção à convergência de vontades direcionada à prática criminosa, o que faz com que ela não atenda as exigências do art. 41 do Código de Processo Penal, notadamente por não conter a exposição clara dos elementos indispensáveis dos fatos tidos como delituosos, pois não demonstra a associação da paciente aos demais correús, tampouco os contornos da conduta que indiquem o preenchimento da elementar subjetiva.
3. Habeas corpus concedido, a fim de pronunciar a inépcia formal do Aditamento à denúncia nº 001/2011, e excluir a paciente da ação penal que apura a ocorrência do crime de formação de quadrilha, ratificando-se a liminar anteriormente concedida.
(STJ, Sexta Turma, HC 207.663/CE, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 06/03/2012, p. DJe 24/04/2012).  

Além do elemento finalístico alusivo ao cometimento de crimes, a análise da conduta no crime de quadrilha ou bando deve verificar outra importante peculiaridade. Trata-se dos elementos normativos do tipo, consistentes na exigência de que a associação dos agentes seja dotada de permanência e estabilidade.

A esse respeito, Noronha (1962 apud DELMANTO, 2003, p. 716) pontifica que

não bastam meros atos preparatórios da convenção comum; não é suficiente simples troca de ideias, ou conversa "por alto" acerca do fim, mas o propósito firme e deliberado, a resolução seriamente formada, com programa a ser posto em execução em tempo relativamente próximo, de modo que se possam divisar no fato a lesão jurídica e o perigo social, contra os quais se dirige a tutela penal. 

Significar dizer que o mero encontro casual descaracteriza o tipo do art. 288 do CP, pois o vínculo que a lei exige deve ser durável, produto de um animus associativo prévio, direcionado ao cometimento dos delitos em um espaço dilatado de tempo. Caso a reunião seja temporária, instável, transitória, aí não é caso de quadrilha ou bando, mas sim de concurso de pessoas (coautoria ou participação).

3 - As peculiaridades da conduta no crime de associação para o tráfico

Fiz questão de aprofundar um pouco a análise da conduta no tipo de quadrilha ou bando constante da Parte Especial do Código Penal por uma razão lógica: ela guarda os elementos conceituais cujo entendimento facilita a compreensão de um outro tipo penal bem parecido. Refiro-me ao art. 35 da Lei 11.343/06, que tipifica o crime de associação para o tráfico. Ei-lo in verbis:

Art. 35.  Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.
Parágrafo único.  Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei.

De imediato, salta aos olhos uma peculiaridade da conduta da associação para o tráfico: ela se aperfeiçoa com a presença de duas ou mais pessoas, ou seja, basta que dois agentes estejam associados para a tipificação do delito. É diferente, dessa forma, da quadrilha ou bando genérica, prevista no art. 288 do CP, para a qual dois associados não satisfazem o tipo incriminador (que reclama, no mínimo, quatro), constituindo a pluralidade de agentes, conforme o caso, ora causa de aumento de pena (p. ex.: no roubo majorado, art. 157, § 2º, II), ora qualificadora (p. ex.: no furto qualificado, art. 155, § 4º, IV).   

No tocante ao elemento anímico, a conduta punível pelo art. 35 da Lei de Drogas também deve ser dolosa (não há previsão de tipo culposo). Porém, diferentemente do que ocorre com o tipo do art. 288, não basta a mera vontade consciente de associar-se para a prática de uma série indeterminada de crimes. A peculiaridade aqui consiste na exigência do elemento subjetivo especial do injusto "para o fim de praticar qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34, desta Lei". Sendo assim, a associação de dois ou mais agentes do art. 35 deve ter por finalidade a prática dos crimes de tráfico de drogas (art. 33, caput e § 1º), tráfico de maquinário (art. 34) ou financiamento do tráfico (art. 36) - este último retirado do parágrafo único.  

A perplexidade jurisprudencial surge, mais uma vez, da péssima redação empregada no tipo do art. 35 da Lei de Drogas. O motivo é que a expressão "reiteradamente ou não" é de interpretação duvidosa, na medida em que não permite discernir incontinênti se a conduta típica requer o vínculo estável entre os agentes. Na verdade, o legislador brasileiro perdeu uma excelente oportunidade de corrigir a conformação redacional dúbia já existente ao tempo da antiga Lei de Tóxicos (Lei 6.368/76). Colaciono:

  Art. 14. Associarem-se 2 (duas) ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos Arts. 12 ou 13 desta Lei:
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

Mudou-se a lei, mas não a redação. Com isso, um exegeta aferrado a uma interpretação gramatical do direito pode sustentar, por exemplo, a tese da desnecessidade do ânimo associativo permanente, de modo a autorizar a condenação, na pecha da associação para o tráfico, de agentes que se tenham associado com esporadicidade, em caráter eventual.

Foi o que fez um juiz de direito vinculado ao TJSP. Na sentença condenatória prolatada, consignou o seguinte (sic):

O tipo penal relativo ao artigo 35 da Lei n. 11.343/06 contenta-se com a associação ocasional, visto que não previu na nova lei a causa de aumento de pena descrita  no  artigo  18,  inciso III,  da  Lei  n.  6368/76,  no  tocante  à associação.
Assim, diante do disposto no artigo 14 da Lei n. 6368/76 e no artigo 18, inciso III, pacificou-se o entendimento de que para a caracterização daquele, era necessário a associação perene e,  para  a  aplicação  deste,  bastava  a associação  eventual.  Essa era a  única  interpretação  coerente  para  a convivência dos dois dispositivos no sistema da antiga Lei de Tóxicos.
Com a retirada desta causa de aumento de pena, restou apenas a conduta do artigo 14 da lei antiga reproduzida no 35 da nova.
Claro está no artigo 35  que  a  associação  decorre  da  prática reiteradamente  ou  não  do  crime  de  tráfico  de  entorpecentes,  ou  seja,  a interpretação, agora, ausente aquela causa de aumento de pena, é a de que basta a associação ocasional, provada à saciedade nestes autos, uma vez que seja, para a caracterização desse crime.
Verificou-se, assim, o crime definido no artigo 35 da Lei n. 11.343/06.
(...)

A defesa apelou da sentença. Entretanto, o acórdão do TJSP manteve o entendimento esposado em primeira instância (sic):  
 
Também a aventada ausência de estabilidade da associação não tem o condão de afastar a configuração do delito em comento. Este tipo penal se contenta com a associação ocasional, tanto que o artigo 35 da nova Lei de Drogas tratou de deixar claro que a associação decorre da prática reiterada ou não do crime de tráfico de entorpecentes, acabando de uma vez por todas com a celeuma em torno do alcance e aplicação dos artigos 14 e 18, inciso III, do Diploma anterior, (Lei n°. 6.368, de 21.10.1976).
Em face do acima expendido, é de se concluir que a  condenação  era mesmo de rigor.
(...)

É evidente que essa tese está completamente divorciada da técnica penal. Ignora que os crimes de quadrilha ou bando e de associaão para o tráfico, respectivamente previstos nos arts. 188 do CP e 35 da Lei 11.343/06, são substancialmente os mesmos. Em ambos, está-se a punir a conduta (autônoma, registro) daqueles que se associam com o fim de praticar crimes. Mas o que se persegue é a ação deliberada e refletida, permanente e estável, e não o mero ajuntamento ocasional. Entender de maneira diversa implicaria desconsiderar o concurso de pessoas, ampliando em demasia o fato típico, para abranger toda e qualquer pluralidade eventual de agentes.   

Para a incidência do caput do  delito  agora  comentado,  em  virtude  da cláusula  "reiteradamente  ou  não",  poder-se-ia  entender  que  também configuraria  o  crime  o  simples  concurso  de  agentes,  porque  bastaria  o entendimento  de  duas  pessoas  para  a  prática  de  uma  conduta  punível, prevista nos arts. 33, §1º e 34.
Parece-nos, todavia, que não será  toda  vez  que  ocorrer  concurso  que ficará  caracterizado  o  crime  em  tela.  Haverá  necessidade  de  um  animus associativo, isto é, um ajuste prévio no sentido da formação de um vínculo associativo de fato, uma verdadeira societas  sceleris,  em que vontade de se associar  seja  separada  da  vontade  necessária  à  prática  do  crime  visado.
Excluído, pois, está o crime no caso de convergência ocasional de vontades para a prática de determinado delito, que estabeleceria a co-autoria.
O tipo é especial em relação ao art. 288 do Código Penal; se os delitos visados  são  os  da  lei  sub  examinem, aplica-se  esta  e  não  o  estatuto repressivo genérico.
(...) o conteúdo do crime, porém, é igual ao do seu similar.
Assim, a ação  física  consiste  em  "associar-se".  Exige-se  o  fim  de praticar  crimes  dos  arts.  33,  caput  e  §1º,  e  34  como  dolo  específico  ou elemento subjetivo  do  tipo, mas  não    necessidade  de  que  algum  desses delitos venha a ocorrer para a consumação da quadrilha ou bando. Se vierem a ser praticados, haverá concurso material de delitos. (GRECO FILHO, 2009, p. 184-185).  

A tese da Justiça Estadual, portanto, não merecia prosperar.

Ciente disso, a defesa recorreu da decisão do tribunal paulista, levando-a ao STJ. A Sexta Turma, então, ao julgar o HC 139.942/SP, sob a relatoria da Min. Maria Thereza de Assis Moura, acompanhou o entendimento majoritário da doutrina, entendendo que a ausência de permanência (no tempo) e estabilidade (na estrutura de organização) descaracterizam a associação para o tráfico. Eis a ementa do precedente (grifo meu):

HABEAS CORPUS. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO  PARA  O  TRÁFICO. CONDENAÇÃO CONFIRMADA  EM  GRAU  DE  APELAÇÃO.  VIA INDEVIDAMENTE  UTILIZADA  EM  SUBSTITUIÇÃO  A  RECURSO ESPECIAL. ILEGALIDADE MANIFESTA VERIFICADA APENAS EM PARTE.  NÃO  CONHECIMENTO.  CONCESSÃO  PARCIAL  DA ORDEM  EX  OFFICIO .  DOSIMETRIA.  EXASPERAÇÃO  DA PENA-BASE  E  NÃO  APLICAÇÃO  DA  CAUSA  ESPECIAL  DE DIMINUIÇÃO. VARIEDADE E GRANDE QUANTIDADE DE DROGAS (HAXIXE, MACONHA, COCAÍNA E CRACK). MAIS  DE  27 QUILOS NO  TOTAL.  MANUTENÇÃO  DA  PENA  DO  CRIME  DE  TRÁFICO. ASSOCIAÇÃO  PARA  O  TRÁFICO.  INEXISTÊNCIA  DE  ÂNIMO ASSOCIATIVO  PERMANENTE.  RECONHECIMENTO  DISSO  PELO TRIBUNAL  DE  ORIGEM.  DIVERGÊNCIA COM  O ENTENDIMENTO DESTA CORTE SOBRE O TEMA.
1.  Mostra-se inadequado  e  descabido  o  manejo  de  habeas  corpus  em substituição ao recurso especial cabível.
2.  É imperiosa  a  necessidade  de  racionalização  do  writ,  a  bem  de  se prestigiar  a lógica  do sistema recursal,  devendo ser observada sua função constitucional,  de  sanar  ilegalidade  ou  abuso  de  poder  que  resulte  em coação ou ameaça à liberdade de locomoção.
3. "O habeas corpus é garantia fundamental que não pode ser vulgarizada, sob  pena  de sua  descaracterização  como remédio  heróico,  e seu  emprego não  pode  servir  a  escamotear  o  instituto  recursal  previsto  no  texto  da Constituição" (STF, HC 104.045/RJ).
4. Hipótese em que há, quanto a um fundamento, flagrante ilegalidade a ser reconhecida.
5.  Apreendidos mais de  27  quilos  de  diversas  drogas  (haxixe,  maconha, cocaína e crack), não há falar em alteração da pena-base, em sede de habeas corpus e  nem  de  ilegalidade  pela  não  aplicação  da  causa  especial  de diminuição para o tráfico.
6.  Reconhecido  pelo  acórdão  atacado  que  não    ânimo  associativo permanente (duradouro), mas  apenas  esporádico (eventual),  a  condenação ratificada  no  Tribunal  de  origem,  quanto  ao  crime  do  art.  35  da  Lei  nº 11.343/2006, é ilegal, ante a atipicidade da conduta.
7. Habeas corpus  não conhecido, mas concedida a ordem, ex officio, apenas para cassar a condenação pelo delito de associação para o tráfico.
(STJ, Sexta Turma, HC 139.942/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 19/11/2012, p. DJe 26/11/2012).  

No próprio STJ, outros julgados já vinham a exigir a demonstração da estabilidade do vínculo associativo, sob pena de se considerar fato atípico a conduta dada como incursa no art. 35 da Lei de Drogas. Reproduzo (grifos meus):

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ABSOLVIÇÃO. DESCONSTITUIÇÃO DO ÉDITO REPRESSIVO. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO APROFUNDADO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ESTREITA DO WRIT. CONDENAÇÃO FUNDAMENTADA NO DEPOIMENTO DE POLICIAIS MILITARES. MEIO DE PROVA IDÔNEO. FRAGILIDADE DO CONJUNTO PROBATÓRIO NÃO DEMONSTRADA.
1. Para se desconstituir o édito repressivo quanto ao delito de tráfico ilícito de entorpecentes, como pretendido no writ, seria necessário o exame aprofundado de provas, providência inadmissível na via estreita do habeas corpus, mormente pelo fato de que vigora no processo penal brasileiro o princípio do livre convencimento, em que o julgador pode decidir pela condenação, desde que fundamentadamente.
2. Conforme entendimento desta Corte, o depoimento de policiais responsáveis pela prisão em flagrante do acusado constitui meio de prova idôneo a embasar o édito condenatório, mormente quando corroborado em Juízo, no âmbito do devido processo legal.
ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA ESTABILIDADE OU PERMANÊNCIA PARA SUA CARACTERIZAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. Para a caracterização do crime de associação para o tráfico, é imprescindível o dolo de se associar com estabilidade e permanência, sendo que a reunião ocasional de duas ou mais pessoas não se subsume ao tipo do artigo 35 da Lei n.º 11.343/2006. Doutrina. Precedentes.
2. O Tribunal a quo não aponta qualquer fato concreto apto caracterizar que a associação entre o paciente, o corréu e os menores inimputáveis para a prática do tráfico de entorpecentes seria permanente.
3. Não havendo qualquer registro, na sentença condenatória ou no aresto objurgado, de que a associação do paciente com o corréu e os menores inimputáveis teria alguma estabilidade ou caráter permanente, inviável a condenação pelo delito de associação para o tráfico, estando-se diante de mero concurso de pessoas.
4. Ordem parcialmente concedida para trancar a Ação Penal n.º 294.01.2007.004725-1 (Controle n.º 414/07) no que diz respeito ao delito de associação para o tráfico quanto ao paciente DANIEL LIBANORI.
(STJ, Quinta Turma, HC 166.979/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 02/08/2012, p. DJe 15/08/2012). 

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART.  35, CAPUT, DA LEI Nº 11.343/2006.  CONFIGURAÇÃO.  ANIMUS ASSOCIATIVO ESTÁVEL  E  DURADOURO  PARA  A  PRÁTICA  DOS DELITOS PREVISTOS NOS ARTS. 33 E 34 DA LEI Nº 11.343/2006. CRIME AUTÔNOMO E QUE PRESCINDE DA PRÁTICA EFETIVA DOS DELITOS QUE MOTIVARAM  A  ASSOCIAÇÃO.  ALEGADA  AUSÊNCIA  DE FUNDAMENTOS PARA A CONDENAÇÃO. INOCORRÊNCIA. NATUREZA DO DELITO NÃO HEDIONDA. REGIME PRISIONAL. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS TOTALMENTE FAVORÁVEIS. ABERTO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA  PRIVATIVA  DE  LIBERDADE  POR  RESTRITIVA  DE  DIREITOS. EXPRESSA VEDAÇÃO LEGAL. ART. 44 DA LEI Nº 11.343/2006.
I - O tipo previsto no artigo art. 35 da Lei nº 11.343/2006 se configura quando duas ou mais pessoas reunirem-se com a finalidade de praticar os crimes previstos nos art. 33 e 34 da norma referenciada. Indispensável, portanto, para a comprovação da  materialidade,  o  animus associativo  de  forma  estável  e duradoura com a finalidade de cometer os crime referenciados no tipo.
II - De outro lado, o delito de associação para o tráfico de entorpecentes é crime autônomo, sendo prescindível para sua configuração efetiva prática dos crimes previstos nos art. 33 e 34 da Lei nº 11.343/2006.
III - Na espécie, verifica-se que as razões que motivaram a condenação do recorrente  pela  prática  do  delito  previsto  no  art.  35  da  Lei    11.343/2006 restaram  esposadas  pela  e. Corte  de  origem  de forma satisfatória  e suficiente, porquanto  levou  em  consideração,  além  das  escutas  telefônicas,  o  depoimento colhido  em  juízo  de  agente  policial  atuante  na  diligência  investigativa  para concluir  que  o  acusado  associou-se  de forma reiterada  e  estável  à  organização criminosa voltada à prática do tráfico de drogas.
IV  -  O  delito  de  associação  para  o  tráfico  de  entorpecentes,  como anteriormente  afirmado,  é  crime  autônomo,  não  sendo  equiparado  a  crime hediondo (Precedentes).
V - Um vez atendidos os requisitos constantes do art. 33, § 2º, alínea c, e §  3º,  c/c  art.  59  do  Código  Penal,  quais sejam,  a  ausência  de  reincidência,  a condenação por um período igual ou inferior a 4 (quatro) anos e a existência de circunstâncias  judiciais  totalmente  favoráveis,  deve  o  condenado,  por  crime hediondo  ou  equiparado,  cumprir  a  pena  privativa  de  liberdade  no  regime prisional aberto.
VI - O art. 44  da  Lei    11.343/06 veda, expressamente,  a possibilidade  de  substituição  da  pena  privativa  de  liberdade  por  restritiva  de direitos,  em  relação  ao  crime  de  associação  para  o  tráfico  de  entorpecentes previsto no art. 35 da Lei nº 11.343/06 (Precedentes).
Recurso parcialmente  provido para fixar  o regime  inicial  aberto  para resgate da reprimenda imposta ao recorrente.
(STJ, Quinta Turma, REsp 1.113.728/SC, Rel. Min. Félix Fischer, j. 29/09/2009, p. DJe 19/10/2009). 

Drogas (tráfico ilícito). Associação para o tráfico (condenação). Mera eventualidade (caso).
1. O delito previsto no art. 35 da Lei nº 11.343/06 não se configura diante de associação eventual, mas apenas quando estável e duradoura, não se confundindo com a simples coautoria. Precedentes.
2. No caso dos autos, em nenhum momento foi feita referência ao vínculo associativo permanente porventura existente entre os agentes, mas apenas àquele que gerou a acusação pelo tráfico em si. Inviável, pois, manter a condenação pela associação, pois meramente eventual.
3. Ordem concedida para se excluir da condenação a figura do art. 35 da Lei nº 11.343/06.
(STJ, Sexta Turma, HC 149.330/SP, Rel. Min. Nilson Naves, j. 06/04/2010, p. DJe 28/06/2010). 

Definitivamente, a jurisprudência do STJ inclina-se em reconhecer que a ausência do ânimo associativo, com caráter duradouro, afasta a tipicidade do crime de associação para o tráfico, previsto no art. 35 da Lei 11.343/06.  

4 - Conclusão

A conduta de "associar-se", seja para tipificação do crime de quadrilha ou bando do art. 288 do CP, seja para o de associação para o tráfico do art. 35 da Lei 11.343/06, deve ser analisada com cuidado pelo intérprete. Em ambos os casos, só se pode falar em conduta típica caso se verifique em concreto a existência de um liame intersubjetivo estável e duradouro entre os agentes que se associam. Em outras palavras, para os delitos em vista, não haverá fato típico na hipóse de uma mera reunião eventual, esporádica. Caso contrário, ter-se-ia de admitir sem nenhuma relevância as normas penais que dispõem sobre as consequências da pluralidade de agentes, vez que o concurso de pessoas redundaria quase sempre no caracterização de quadrilheiros.    

A celeuma que parte da jurisprudência insiste em repisar, afastando os elementos normativos típicos da estabilidade e durabilidade na conduta da agentes que se associam para o tráfico, funda-se em uma interpretração gramatical equivocada da expressão "reiteradamente ou não", inscrita no art. 35 da Lei de Drogas.

Como busquei demonstrar ao longo do texto, o legislador brasileiro sequer se deu ao trabalho de revisar a redação do art. 14 da (hoje revogada) Lei 6.368/76, que no passado gerou tantas discrepências de entendimentos quanto ao vínculo estável na associação para o tráfico. Dessa forma, o art. 35 da vigente Lei de Drogas apenas herdou o erro redacional do passado.  

Nesse sentido, é certo que a tese da desnecessidade de vínculo estável e permanente não se compatibiliza com a ideia de uma societas sceleris. Deve-se recordar que o que diferencia os tipos penais da Lei de Drogas e da Parte Especial do CP do simples concurso de agentes é precisamente isto: o ajuste prévio, que protrai o tempo de sua duração, com vistas ao cometimento associado de delitos. Sendo assim, nem toda a convergência volitiva caracterizará o "associar-se" ex vi legis - nos moldes da conduta que integra o fato típico da quadrilha ou bando como da associação para o tráfico. E, conforme procurei demonstrar, a jurisprudência do STJ é pacífica no sentido da imprescindibilidade do dolo de associar-se com estabilidade e permanêcia, para subsumir a conduta do agente no tipo de associação para o tráfico.

Em conclusão, à luz do art. 35 da Lei 11.343/06, é atípica a conduta daqueles agentes que se reúnem de modo fortuito, ocasional, para praticar os crimes de tráfico de drogas (art. 33, caput, e § 1º), tráfico de maquinários (art. 34) ou financiamento do tráfico (art. 36).  

REFERÊNCIAS

DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 7ª ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 1.336 p.

GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção-repressão. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.