segunda-feira, 29 de outubro de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES NA DOUTRINA E NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ


Introdução

Na doutrina administrativista, há uma conhecida disputa entre os doutrinadores que consiste em saber se a motivação dos atos administrativos é ou não obrigatória. Em um sentido lato, a discussão insere-se no estudo dos elementos (ou requisitos ou pressupostos de validade) do ato administrativo.
Ato administrativo é o meio pelo qual a Administração Pública exterioriza sua vontade, a fim de produzir efeitos jurídicos. Embora haja muita divergência no assunto, a maioria da doutrina inclina-se em reconhecer que os elementos do ato administrativo encontram-se elencados no art. 2º da Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular – LAP), a saber:
Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:
a) incompetência;
b) vício de forma;
c) ilegalidade do objeto;
d) inexistência dos motivos;
e) desvio de finalidade.

O raciocínio é o seguinte: ato administrativo válido é aquele que tenha sido produzido de conformidade com regras competenciais (competência do agente), formais (forma do ato deve ser legal e solene, isto é, compatível com a lei, escrito e manifesto, pois, em princípio, o silêncio administrativo não produz efeitos), com conteúdo qualificado pela licitude (objeto lícito e possível) e pela exposição dos fatos e fundamentos jurídicos geradores da vontade administrativa que se exterioriza no ato (motivo), além de estar direcionado ao atingimento do interesse público (finalidade). Portanto, são elementos do ato administrativo: competência, forma, objeto, motivo e finalidade. Prova disso é que a LAP comina de inválidos atos que tenham sido editados na ausência desses elementos.
Motivo de fato e de direito e os atos vinculados e discricionários
Já sabemos que, no Direito Administrativo, motivo representa sinônimo de fundamento do ato. Afirmei também que ele seria fático e de direito. Na primeira hipótese (motivo de fato), tem-se a verificação das circunstâncias reais que ensejam a edição do ato. Na segunda (motivo de direito), a verificação dá-se no plano da norma jurídica, a partir da qual é possível extrair a determinação legal que há de culminar na prática do ato.
Nesse ponto, é comum a doutrina efetuar a classificação dos atos em vinculados e atos discricionários. O critério classificatório diz respeito ao motivo, na medida em que o legislador, ao elaborar a norma legal, pode eleger sponte sua o fato gerador do ato ou deixar a sua identificação a cargo do agente. Assim, quando a norma já estabelece de antemão as condições fáticas que autorizam a prática do ato, o agente praticará um ato vinculado, porquanto sua manifestação de vontade dar-se-á num plano de mero executor da lei diante da ocorrência dos fatos eleitos pela regra legal. Por outro lado, pode ser que a norma atribua ao agente a responsabilidade de verificar se as circunstâncias fáticas justificam a exteriorização da vontade administrativa, caso em que se estará diante de ato discricionário, visto que caberá ao agente determinar, por meio de juízo de valor, se as circunstâncias de fato atendem a critérios administrativos de conveniência e oportunidade para o interesse público.

Desnecessário dizer que, em um e outro caso - isto é, seja o ato vinculado, seja o ato discricionário -, o administrador deverá atuar sempre dentro dos limites da lei.
Motivo e motivação: uma necessária distinção conceitual e consequencial
Há que considerar, ainda, a distinção conceitual que a doutrina aponta existir entre motivo e motivação. Aquele, como já expus antes, representa o fundamento de fato e de direito que impulsiona a prática do ato. Este, por sua vez, significa a justificativa que se confere ao ato. Ou seja, sempre que se estiver a falar em motivação dos atos administrativos, estaremos a pressupor que o administrador explicite o porquê de ter praticado o ato diante dos fatos e do direito aduzidos. Não basta os elencar; é preciso que haja demonstração argumentativa de que ambos (fundamentos fáticos e jurídicos) correlacionam-se logicamente, compatibilizando-se com a lei e, em ultima ratio, com o interesse público.
É aí que encontramos o busílis doutrinário entre os administrativistas. Ele pode ser facilmente sintetizado na seguinte pergunta: a motivação dos atos administrativos é obrigatória? Repare o leitor: estou a falar de motivação, e não de motivo, pois é pacífico que este último compõe o rol de elementos integrantes da estrutura do ato administrativo, tanto que toda manifestação de vontade administrativa sem motivo é inválida. E a mesma consequência (nulidade) também se aplicaria à manifestação de vontade com motivo, mas sem motivação? Vale dizer, estaremos diante de ato administrativo inválido em casos nos quais o agente que o praticou tenha manifestado a vontade da Administração, aduzindo fundamentos de fato e de direito, porém sem os justificar, sem argumentar o nexo lógico que une o motivo, o resultado e os fins colimados na lei?
Para autores como José dos Santos Carvalho Filho (2012, p. 113-114) a motivação dos atos administrativos não é obrigatória. Reproduzirei a argumentação do jurista, pois sintetiza bem o pensamento de parte da doutrina:
Quanto ao motivo, dúvida não subsiste de que é realmente obrigatório. Sem ele, o ato é írrito e nulo. Inconcebível é aceitar-se o ato administrativo sem que se tenha delineado determinada situação de fato.
No que se refere à motivação, porém, temos para nós, com o respeito que nos merecem as respeitáveis opiniões dissonantes, que, como regra, a obrigatoriedade inexiste.
Fundamo-nos em que a Constituição Federal não incluiu (e nem seria lógico incluir, segundo nos parece) qualquer princípio pelo qual se pudesse vislumbrar tal intentio; e o Constituinte, que pela primeira vez assentou regras e princípios aplicáveis à Administração Pública, tinha tudo para fazê-lo, de modo que, se não o fez, é porque não quis erigir como princípio a obrigatoriedade de motivação. Entendemos que, para concluir-se pela obrigatoriedade, haveria de estar ela expressa em mandamento constitucional, o que, na verdade, não ocorre. Ressalvamos, entretanto, que também não existe norma que vede ao legislador expressar a obrigatoriedade. Assim, só se poderá considerar a motivação obrigatória se houver norma legal expressa nesse sentido.
O pensamento de Carvalho Filho, entretanto, é hoje minoritário na doutrina e na jurisprudência. Para a maioria dos autores, como regra, a motivação dos atos administrativos é medida de rigor que se impõe.

A corrente doutrinária dominante apresenta uma visão moderna do Direito Administrativo, compreendido desde a perspectiva dos direitos fundamentais. Sendo assim, há de se considerar o direito fundamental à informação (CF, art. 5º, “XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;”) e à inafastabilidade da jurisdição (“CF, art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”) como vetores valorativos preponderantes no ordenamento jurídico brasileiro. Desse modo, seja pelo dever de informar os cidadãos, seja pela necessidade de garantir conhecimento público quanto às razões conducentes da conduta administrativa, inclusive para permitir eventual controle de legalidade pelo Poder Judiciário, a motivação dos atos administrativos é obrigatória.

Nesse sentido, o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 396) apresenta argumentação do ponto de vista constitucional:
Parece-nos que a exigência de motivação dos atos administrativos, contemporânea à prática do ato, ou pelo menos anterior a ela, há de ser tida como uma regra geral, pois os agentes não são “donos” da coisa pública, mas simples gestores de interesses de toda a coletividade, esta, sim, senhora de tais interesses, visto que, nos termos da Constituição, “todo o poder emana do povo” (...) (art. 1º, parágrafo único). Logo, parece óbvio que, praticado o ato em um Estado onde tal preceito é assumido e que, ademais, qualifica-se como “Estado Democrático de Direito” (art. 1º, caput), proclamando, ainda, ter como um de seus fundamentos a “cidadania” (inciso II), os cidadãos e em particular o interessado no ato têm o direito de saber por que foi praticado, isto é, que fundamentos o justificam.

Recordo ainda que há doutrina que extrai da combinação dos arts 2º, VII, com o art. 50, ambos da Lei 9.784/99, conclusão que pugna pela necessidade de motivação dos atos administrativos no ordenamento jurídico brasileiro.
Quanto à Lei 9.784/99, o art. 2º, VII, instituiu o dever de indicar os pressupostos de fato e de direito que justificam a atuação do administrador e, conforme enumerado acima, o art. 50 aponta os atos administrativos que devem ser motivados. Este último dispositivo, ao contrário do defendido por alguns doutrinadores, institui o dever geral de motivar, considerando que a sua enumeração é tão ampla que acaba incluindo praticamente todos os atos administrativos, embora não se admitindo a alegação de um rol para exclusão de alguns atos. (MARINELA, 2010, p. 249)
Do que foi exposto acima, conclui-se que a maioria da doutrina sustenta a tese da obrigatoriedade de motivação dos atos administrativos.
De sua parte, a jurisprudência vai encontro desse pensamento, como se pode observar dos seguintes julgados recentes do STJ (grifos meus):
PROCESSUAL CIVIL. ATO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO.
NULIDADE.
1.  O ato administrativo que determina a remoção de servidor público deve ser motivado. Precedentes do STJ.
2. Agravo Regimental não provido.
Não é possível o conhecimento do recurso especial na hipótese em que o estado recorrente sustenta que o ato administrativo de remoção de servidor público está inserido no âmbito do poder discricionário da Administração Pública e o Tribunal de origem declarou a nulidade do ato por falta de motivação, porque além do referido entendimento estar em consonância com a jurisprudência do STJ, a inversão do julgado demandaria o reexame fático-probatório, atraindo a incidência das Súmulas 7 e 83 do STJ. (STJ, AgRg no AREsp 153140/SE, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 22/05/2012, p. 15/06/2012).
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. MAGISTRADO ESTADUAL. CONVOCAÇÃO AO TRIBUNAL. AUXÍLIO. ART. 2º, III, E ART. 5º, § 2º, DA RESOLUÇÃO 72/2009 DO CNJ. ALEGAÇÕES DE VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. POSTULAÇÃO DE AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO INSUBSISTENTES. ATO ADMINISTRATIVO EXCEPCIONAL E PRECÁRIO. REVOGAÇÃO MOTIVADA E COMPROVADA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
1. Cuida-se de recurso ordinário interposto contra acórdão que denegou a segurança, em writ no qual se postula a nulidade do ato de suspensão da excepcional convocação de magistrado de primeira instância - com base nos arts. 2º, III e 5º, § 2º, ambos da Resolução CNJ 72/2009, para atuar no Tribunal. É suscitada a violação do contraditório e da ampla defesa, bem como postulada a ausência de motivação e falta de razoabilidade na fundamentação da decisão administrativa.
2. O ato administrativo de convocação não possui equivalência ao ato de remoção, já que ele é precário por sua natureza, nos termos da Resolução 72/2009; seu desfazimento não obriga ao contraditório e à ampla defesa, mas tão somente à comprovação de cessação de sua necessidade e da existência de devida motivação, como ocorre nos autos.
3. Os autos descrevem com riqueza de detalhes que a cessação da convocação ocorreu em razão da baixa produtividade do impetrante e de sua desatenção ao plano de trabalho, base técnica para deliberação de convocação; tendo o ato administrativo impugnado sido revestido de convincente e comprovada motivação, em prol da revogação da convocação, não há falar em direito líquido e certo.
Recurso ordinário improvido. (STJ, RMS 34571/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 18/09/2012, p. 25/09/2012.)

Portanto, está claro que os atos administrativos, consoante pensamento majoritário da doutrina e da jurisprudência, devem ser editados com a devida motivação.
Teoria dos motivos determinantes: conceito e jurisprudência aplicável no STJ 
Finalmente, após explicitados os fundamentos teóricos que contextualizam a discussão no âmbito do Direito Administrativo, é possível tratar da teoria dos motivos determinantes.

Essa teoria insere-se nos debates relativos aos elementos dos atos administrativos, especialmente no que se refere ao motivo e a exigência de a forma do ato apresentar motivação (obrigatória, conforme já demonstrado, com arrimo na opinião majoritária da doutrina e jurisprudência). A situação que se coloca aqui é, todavia, peculiar.
Em que pese a regra geral ser o dever de motivação dos atos administrativos, há que considerar as hipóteses que não a demandam, visto que também não exigem motivo. São atos nos quais o legislador libera o administrador do encargo de aduzir os fatos ou fundamentos jurídicos de sua decisão. O exemplo mais lembrado pela doutrina é o dos cargos em comissão de livre nomeação e exoneração ad nutum. Em tais hipóteses, como o preenchimento da unidade funcional dá-se com base no critério da confiabilidade que sustenta o nomeado eleito pelo administrador, a lei autoriza-o igualmente a proceder ao desfazimento do vínculo de acordo com seu juízo de valor (em tese, o de confiança), não carecendo o ato, para ser considerado válido, de justificativa (motivação).
Porém, pode ocorrer de o administrador, mesmo não precisando, decidir apresentar o motivo que ensejou a manifestação da vontade administrativa. Juridicamente, haveria alguma consequência nisso? A resposta é positiva, pois aí ele fica vinculado ao fundamento expendido. Logo, se se provar a inocorrência (inexistência) do motivo, ou a sua falsidade, a consequência jurídica imediata será a invalidação do ato.
É nesse sentido que se afirma que os motivos são determinantes para a prática do ato administrativo. Ora, o agente não pode expressar sua vontade baseado em motivo inexistente ou inidôneo (falso). Se isso ocorre, no fundo, o que há é um ato administrativo viciado em um dos seus elementos (ausência ou falsidade do motivo), pois, como vimos, a manifestação da vontade administrativa, de que o ato é a exteriorização formal e solene, é impelida por circunstâncias de fato e de direito legalmente qualificadas.
A propósito da teoria dos motivos determinantes, Bandeira de Mello (2009, p. 398) descreve-a da seguinte maneira:
De acordo com esta teoria, os motivos que determinaram a vontade do agente, isto é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato. Sendo assim, a invocação dos “motivos de fato” falso, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando, conforme já se disse, a lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato. Uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto essa obrigação de enunciá-los, o ato será válido se estes realmente ocorreram e o justificavam.

A referida teoria tem sido amplamente aceita na jurisprudência do STJ. Inclusive este tribunal superior tem esclarecido que a invalidação dos atos administrativos pela teoria dos motivos determinantes dá-se não apenas quando os motivos elencados não existiram ou eram falsos, mas também quando deles não advier a necessária coerência da fundamentação exposta com o resultado obtido com a manifestação de vontade da Administração Pública. Colaciono um precedente exemplar (grifo meu):
ADMINISTRATIVO. ATO ADMINISTRATIVO. VINCULAÇÃO AOS MOTIVOS DETERMINANTES. INCONGRUÊNCIA. ANÁLISE PELO JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. DANO MORAL. SÚMULA 7/STJ.
1. Os atos discricionários da Administração Pública estão sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo observar que os motivos embasadores dos atos administrativos vinculam a Administração, conferindo-lhes legitimidade e validade.
2. "Consoante a teoria dos motivos determinantes, o administrador vincula-se aos motivos elencados para a prática do ato administrativo. Nesse contexto, há vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele contido" (MS 15.290/DF, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, julgado em 26.10.2011, DJe 14.11.2011).
3. No caso em apreço, se o ato administrativo de avaliação de desempenho confeccionado apresenta incongruência entre parâmetros e critérios estabelecidos e seus motivos determinantes, a atuação jurisdicional acaba por não invadir a seara do mérito administrativo, porquanto limita-se a extirpar ato eivado de ilegalidade.
4. A ilegalidade ou inconstitucionalidade dos atos administrativos podem e devem ser apreciados pelo Poder Judiciário, de modo a evitar que a discricionariedade transfigure-se em arbitrariedade, conduta ilegítima e suscetível de controle de legalidade.
5. "Assim como ao Judiciário compete fulminar todo o comportamento ilegítimo da Administração que apareça como frontal violação da ordem jurídica, compete-lhe, igualmente, fulminar qualquer comportamento administrativo que, a pretexto de exercer apreciação ou decisão discricionária, ultrapassar as fronteiras dela, isto é, desbordar dos limites de liberdade que lhe assistiam, violando, por tal modo, os ditames normativos que assinalam os confins da liberdade discricionária." (Celso Antônio Bandeira de Mello, in Curso de Direito Administrativo, Editora Malheiros, 15ª Edição.)
6. O acolhimento da tese da recorrente, de ausência de ato ilícito, de dano e de nexo causal, demandaria reexame do acervo fático-probatórios dos autos, inviável em sede de recurso especial, sob pena de violação da Súmula 7 do STJ.
Agravo regimental improvido. (STJ, AgRg no REsp 1280729/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 10/04/2012, p. DJe 19/04/2012.)
DIREITO ADMINISTRATIVO. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. ATO VINCULADO. TEORIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES.

Mais recentemente, a teoria dos motivos determinantes voltou à baila no julgamento do MS 13.948/DF (3ª Seção, Rel. Min. Sebastião Reis Junior, j. 26/09/2012). O caso envolvia pedido de apostilamento em cargo público, isto é, que fosse assegurada a percepção da remuneração correspondente a cargo em comissão exercido pelo servidor durante um período determinado em lei, de tal maneira que, mesmo após deixando o efetivo exercício desse cargo, ele continuasse a perceber a remuneração. Eis o texto do Informativo 505 do STJ (20/09 a 03/10), que informa de que maneira o tribunal decidiu a questão (grifo meu):
Há direito líquido e certo ao apostilamento no cargo público quando a Administração Pública impõe ao servidor empossado por força de decisão liminar a necessidade de desistência da ação judicial como condição para o apostilamento e, na sequência, indefere o pleito justamente em razão da falta de decisão judicial favorável ao agente. O ato administrativo de apostilamento é vinculado, não cabendo ao agente público indeferi-lo se satisfeitos os seus requisitos. O administrador está vinculado aos motivos postos como fundamento para a prática do ato administrativo, seja vinculado seja discricionário, configurando vício de legalidade – justificando o controle do Poder Judiciário – se forem inexistentes ou inverídicos, bem como se faltar adequação lógica entre as razões expostas e o resultado alcançado, em atenção à teoria dos motivos determinantes. Assim, um comportamento da Administração que gera legítima expectativa no servidor ou no jurisdicionado não pode ser depois utilizado exatamente para cassar esse direito, pois seria, no mínimo, prestigiar a torpeza, ofendendo, assim, aos princípios da confiança e da boa-fé objetiva, corolários do princípio da moralidade. MS 13.948-DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 26/9/2012.
 
Dessa decisão, depreende-se que STJ vem adotando a teoria dos motivos determinantes, relacionando aos princípios da proteção da confiança e da boa-fé objetiva, enquanto consectários do princípio constitucional da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput).
Nesse sentido, vale destacar que a própria Lei 9.784/99 reforça o raciocínio do Superior Tribunal de Justiça, na medida em que impõe ao administrador o dever de conduzir os processos administrativos com atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé (art. 2º, parágrafo único, IV).
Conclusão
Na discussão doutrinária derredor dos elementos do ato administrativo, destaca-se a que versa sobre a obrigatoriedade da motivação.

Por motivação do ato administrativo, deve-se compreender sua justificativa. Na falta de motivação do ato, tem-se defeito de forma, e não de motivo, cujo conceito prende-se ao de fatos e fundamentos jurídicos que ensejam a manifestação de vontade da Administração Pública.

Em regra, consoante doutrina e jurisprudência dominantes, o motivo, tanto quanto a motivação, é obrigatório nos atos administrativos. Há, contudo, exceções. São atos para os quais a explicitação do motivo é despicienda, ficando o administrador dispensado de elencar o substrato fático ou de direito que norteia a prática do ato administrativo.

Se o administrador, no entanto, a despeito de inexigência legal, decide praticar o ato, aduzindo o elemento motivo, fica vinculado a ele. Em uma palavra: os motivos expostos condicionam a validade do ato. Os motivos são determinantes.

Sendo assim, dada vinculação do administrador aos fatos e fundamentos jurídicos que impulsionam a materialização de vontade da Administração, em havendo a demonstração de inexistência ou falsidade dos motivos alegados, o ato administrativo será nulo. E, segundo a jurisprudência do STJ, com fulcro na teoria dos motivos determinantes, a nulidade também será decretada se faltar adequação lógica entre as razões expostas e o resultado alcançado pelo ato.         
 
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. rev. ampl. e atual. até a Lei 12.587, de 3-1-2012. São Paulo: Atlas, 2012. 1250 f.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 4ª ed. rev. ampl. e atual. até 01/01/2010. Niterói: Impetus, 2010. 1030 f.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 57, de 18.12.2008. São Paulo: Malheiros, 2009. 1101 f.


 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

DENÚNCIA ANÔNIMA, INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO: análise do HC 204.778/SP do STJ à luz da jurisprudência processual penal do STF

Em destaque, no primeiro plano, Ministro Og Fernandes, relator do HC 204.778/SP no STJ.

Introdução

O inquérito policial representa, no plano do direito processual penal, o procedimento de natureza administrativa que visa à colheita dos elementos de prova que possam subsidiar a conclusão acerca da autoria e da materialidade das infrações penais que estejam a ser apuradas. No curso do inquérito, portanto, são realizadas as diligências investigatórias que contribuem para a formação da opinio delicti do Parquet nos crimes de ação penal pública, isto é, a decisão do órgão do Ministério Público quanto ao oferecimento (ou não) da denúncia. Se se tratar de crimes de ação penal de iniciativa privada, o procedimento inquisitorial é igualmente relevante, na medida em que as informações nele colhidas permitem que o ofendido possa oferecer a sua queixa-crime.
 
No ordenamento jurídico brasileiro, as diligências procedidas no curso de inquérito policial não condicionam a propositura da competente ação penal. Vale dizer, trata-se de um procedimento administrativo prescindível (dispensável), não se impondo qual uma condição obrigatória a ser vencida na fase pré-processual. Isso porque, dada sua natureza de peça meramente informativa, nada obsta a que o Ministério Público (nas ações penais públicas) ou o ofendido (nas ações penais de iniciativa privada) deflagrem a persecução penal em juízo, contanto que disponham antcipadamente de um lastro probatório mínimo que seja idôneo a subsidiar a justa causa da ação penal (CPP, art. 39, § 5º, c/c art. 46, § 1º).
 
A função da notitia criminis na iniciação do inquérito policial 
 
Entretanto, posto que o inquérito não seja imprescindível ao oferecimento da denúncia ou da queixa-crime, é fato que ele constitui o mecanismo de investigação preliminar por excelência no processo penal brasileiro, tanto que será realizado pela polícia judiciária, a ser exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições, e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria (CPP, art. 4º, caput).
 
No tocante às formalidades que deflagram validamente as diligências em sede de inquérito policial, ganham importância os atos que dão início ao procedimento. Assim, estabelece o art. 5º do CPP:


Art. 5º  Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:
        I - de ofício;
        II - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
À luz do dispositivo acima, é possível afirmar, sumamente, que o inquérito policial pode iniciar-se a partir da atividade investigativa atribuída aos órgãos do aparelho estatal incumbido de salvaguardar a segurança pública. É o caso, por exemplo, da autoridade policial que toma conhecimento de notitia criminis dando conta de que teria havido uma prática delitiva na cincunscrição territorial de sua atuação, cabendo-lhe, ato contínuo, instaurar o inquérito policial ex officio, mediante a expedição da portaria, para apurar o crime de ação penal pública incondicionada.

É preciso ressaltar ainda que esse dever de ofício existe independentemente de condicionantes de ordem formal. Ou seja, sempre que tomar conhecimento da prática da ação criminosa, a autoridade policial deverá expedir a portaria e proceder à abertura do inquérito, pouco importanto a origem do seu conhecimento quanto à ocorrência do fato delituoso (se soube do crime pela televisão ou por boletim de ocorrência lavrado na delegacia, é indiferente do ponto de vista processual). 

Delatio criminis e notitia criminis inqualificada: pode a anonimidade da comunicação invalidar a instauração de inquérito policial?

Pode suceder, no entanto, de um cidadão qualquer tomar conhecimento da prática de uma infração penal. Que fazer nesse caso?

O Código de Processo Penal prevê, em tal hipótese, a chamada delatio criminis, que nada mais é quem uma das espécies de notitia criminis, com a peculiaridade de se tratar de uma faculdade consistente na comunicação à autoridade policial, feita por qualquer pessoa do povo, quanto à ocorrência da infração. É o que prevê o § 3º do art. 5º do CPP, senão vejamos:       

§ 3º  Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito. 
Interpretando o dispositivo acima, Aury Lopes Jr. (2010, p. 274) conclui que 

a regra é que qualquer pessoa pode (faculdade, e não um dever) comunicar a ocorrência de um delito de ação penal de iniciativa pública, cabendo à polícia verificar a procedência da delatio criminis e instaurar o inquérito policial, que, uma vez iniciado, não poderá ser arquivado (salvo quando assim o requerer o MP ao juiz competente).
Uma vez efetuada a notitia criminis pelo povo, é dever da autoridade policial instaurar o inquérito, a fim de apurar se as informações que noticiam ter havido um fato criminoso são efetivamente escorreitas. Caso não inicie as investigações, desprezando a delatio criminis, o delegado poderá ser responsabilizado disciplinarmente.

Esclarecido esse contexto, surge naturalmente a seguinte dúvida: se a pessoa do povo que tiver dado ciência do crime à autoridade policial for desconhecida? Para usar um termo vulgar correntio, se se tratar de "denúncia anônima", cabe iniciar-se um inquérito policial com fulcro nos informes da fonte ignorada?

O tema é polêmico na doutrina, havendo autores que, invocando o preceito constitucional que veda o anonimato (CF, art. 5º, IV, in fine), entendem incabível a iniciação de investigação preliminar com base em denúncia anônima. O próprio STF já teve oportunidade de decidir nesse sentido:

ANONIMATO - NOTÍCIA DE PRÁTICA CRIMINOSA - PERSECUÇÃO CRIMINAL - IMPROPRIEDADE. Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente. (STF, HC 84.827/TO, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 07/08/2007, p. DJe 23/11/2007).

Em primeiro lugar, cumpre assinalar que, do ponto de vista técnico, a "denúncia anônima" recebe a denominação de notitia criminis inqualificada. Esse conceito doutrinário abrange todas as comunicações feitas à autoridade policial sob o signo da anonimidade. Assim, a notícia do crime anônima pode, por exemplo, dar-se mediante escritos sem assinatura de autor (notitia criminis inqualificada apócrifa). Pode ainda ser feita via sistemas de comunicação telefônica (notitia criminis inqualificada oral).

Nesse ponto, o importante é perceber que, ante a determinação constitucional que veda o anonimato, a jurisprudência, a fim de preservar a notitia criminis inqualificada qual relevante ferramenta de deflagração das investigações policiais, assentou as bases de entendimento segundo o qual a "denúncia anônima" é válida, contanto que a autoridade policial realize investigações previamente à instauração do inquérito policial.

Apesar de existirem algumas divergências e, não obstante o anonimato seja vedado até mesmo em nível constitucional (art. 5º, IV, da CF), a comunicação de um fato criminoso à autoridade policial não exige a identificação do denunciante como condição para a apuração do ilícito narrado. Evidentemente, nesses casos, a cautela recomenda que a autoridade policial, antes de proceder à instauração formal do inquérito mediante expedição de portaria, realize investigação preliminar com vistas a constatar a plausibilidade do relato. Encontrando, a partir desta apuração sumária, evidências no sentido de que não não se trata de de falsa notícia, deverá, então, proceder à instauração do inquérito visando à elucidação do fato. (AVENA, 2012, p. 157).
Esse mesmo ponto de vista é reforçado por Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 61):
 

Mas, no que respeita à fase investigatória, observa-se que, diante da gravidade do fato noticiado e da verossimilhança da informação, a autoridade policial deve encetar diligências informais, isto é, ainda no plano da apuração da existência do fato - e não da autoria - para comprovação da idoneidade da notícia. É dizer: o órgão percesutório deve promover diligências para apurar se foi ou não, ou se está ou não, sendo praticada a alegada infração penal. O que não se deve é determinar a imediata instauração de inquérito policial sem que se tenha demonstrada a infração penal nem mesmo qualquer indicativo idôneo de sua existência. Em duas palavras, (..) deve-se agir com prudência e discrição, sobretudo para evitar a devassa indevida do patrimônio moral de quem tenha sido, levianamente, apontado na delação anônima.


A ideia aqui é a de evitar indiciamentos descabidos, a acarretar consequências socialmente graves para aquele que é submetido à invstigação preliminar sem um mínimo de plausibilidade jurídica.  

Casuística dos tribunais superiores: denúncia anônima, instauração de inquérito policial e quebra de sigilo nas comunicações telefônicas (Lei 9.296/96) 

Essa discussão doutrinária e jurisprudencial tem ganhado contornos bem interessantes quando submetida às exigências da Lei 9.296/96. Afinal, seria possível fundamentar medida judicial que autoriza a interceptação telefônica com fuclo em "denúncia" anônima?  

Mais uma vez, também nessa seara, deve prevalecer o que já ponderei antes com arrimo doutrinário: antes de instaurar formalmente o inquérito, deve a autoridade policial proceder a investigações preliminares, de maneira a atestar a veracidade material dos fatos relatados. Assim agindo, preserva-se a importante participação popular no combate à criminalidade, noticiando a ocorrência de fatos criminosos, ainda que sob a égide da anonímia, ao passo que se evita o inconveniente indiciamento de pessoas quanto a fatos desapercebidos de um mínimo de lastro probatório. É como o STF vem decidindo (grifos meus):   

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. POSSIBILIDADE DE DENÚNCIA ANÔNIMA, DESDE QUE ACOMPANHADA DE DEMAIS ELEMENTOS COLHIDOS A PARTIR DELA. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO. DENÚNCIA RECEBIDA. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. O precedente referido pelo impetrante na inicial (HC nº 84.827/TO, Relator o Ministro Marco Aurélio, DJ de 23/11/07), de fato, assentou o entendimento de que é vedada a persecução penal iniciada com base, exclusivamente, em denúncia anônima. Firmou-se a orientação de que a autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa "denúncia" são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações. 2. No caso concreto, ainda sem instaurar inquérito policial, policiais federais diligenciaram no sentido de apurar as identidades dos investigados e a veracidade das respectivas ocupações funcionais, tendo eles confirmado tratar-se de oficiais de justiça lotados naquela comarca, cujos nomes eram os mesmos fornecidos pelos "denunciantes". Portanto, os procedimentos tomados pelos policiais federais estão em perfeita consonância com o entendimento firmado no precedente supracitado, no que tange à realização de diligências preliminares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e, então, instaurar o procedimento investigatório propriamente dito. 3. Habeas corpus denegado. (STF, HC 95.244/PE, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 23/03/2010, p. DJe 30/04/2010).

HABEAS CORPUS. “DENÚNCIA ANÔNIMA” SEGUIDA DE INVESTIGAÇÕES EM INQUÉRITO POLICIAL. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS E AÇÕES PENAIS NÃO DECORRENTES DE “DENÚNCIA ANÔNIMA”. LICITUDE DA PROVA COLHIDA E DAS AÇÕES PENAIS INICIADAS. ORDEM DENEGADA. Segundo precedentes do Supremo Tribunal Federal, nada impede a deflagração da persecução penal pela chamada “denúncia anônima”, desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados (86.082, rel. min. Ellen Gracie, DJe de 22.08.2008; 90.178, rel. min. Cezar Peluso, DJe de 26.03.2010; e HC 95.244, rel. min. Dias Toffoli, DJe de 30.04.2010). No caso, tanto as interceptações telefônicas, quanto as ações penais que se pretende trancar decorreram não da alegada “notícia anônima”, mas de investigações levadas a efeito pela autoridade policial. A alegação de que o deferimento da interceptação telefônica teria violado o disposto no art. 2º, I e II, da Lei 9.296/1996 não se sustenta, uma vez que a decisão da magistrada de primeiro grau refere-se à existência de indícios razoáveis de autoria e à imprescindibilidade do monitoramento telefônico. Ordem denegada. (STF, HC 99.490/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 23/11/2010, p. DJe 01/02/2011).
O STJ, como não poderia deixar de ser, tem seguido idêntico entendimento ao esposado pela Corte Suprema brasileira. Colaciono (grifo meu):  

HABEAS CORPUS.  E-MAIL ANÔNIMO IMPUTANDO  A PRÁTICA DE CRIMES. ÓRGÃO MINISTERIAL QUE REALIZA DILIGÊNCIAS  PRÉVIAS  PARA  A  APURAÇÃO  DA VERACIDADE DAS INFORMAÇÕES.  COLHEITA  DE INDÍCIOS  QUE  PERMITEM  INSTAURAÇÃO  DE PERSECUÇÃO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.
1.  Esta Corte Superior de Justiça, com supedâneo em entendimento adotado por  maioria  pelo  Plenário  do  Pretório Excelso nos autos do Inquérito n. 1957/PR, tem entendido que a notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não  é  idônea  para  a  instauração  de  inquérito  policial  ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos  investigatórios  preliminares  em  busca  de indícios que corroborem as informações da fonte anônima, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal.
2. Infere-se dos autos que o membro do Parquet  que recebeu a denúncia anônima, tendo em vista a gravidade dos fatos nela contidos,  teve  a  necessária  cautela  de  efetuar  diligências preliminares,  consistentes  na  averiguação  da  veracidade  das informações,  oficiando  aos  órgãos  competentes  com  a finalidade de confirmar os dados fornecidos no e-mail enviado à  Ouvidoria,  razão  pela  qual  não  se  constata  nenhuma ilegalidade sanável pela via do habeas  corpus.
INTERCEPTAÇÃO  TELEFÔNICA.  ALEGAÇÃO  DE  NÃO EXAURIMENTO  DE  OUTROS  MEIOS  DE  PROVA DISPONÍVEIS. VIOLAÇÃO AO INCISO II DO ARTIGO 2º DA LEI  9.296/1996  NÃO  CONFIGURADA.  INTERCEPTAÇÃO AUTORIZADA  APÓS  A  REALIZAÇÃO  DE  DIVERSAS DILIGÊNCIAS COM O OBJETIVO DE APURAR A EVENTUAL PRÁTICA  DE  ILÍCITOS  NOTICIADA.  DENEGAÇÃO  DA ORDEM.
1.  A interceptação das comunicações  telefônicas  dos envolvidos  não  decorreu  da  denúncia  anônima  feita  à Ouvidoria  Geral  do  Ministério  Público,  sendo  pleiteada  pelo Parquet e  autorizada  judicialmente  apenas  depois  do aprofundamento  das  investigações  iniciais,  quando  foram constatados indícios suficientes da prática de ilícitos penais por parte  dos  envolvidos,  tendo  o  magistrado  responsável  pelo feito destacado a indispensabilidade da medida, não havendo que  se  falar,  portanto,  em  violação  ao  princípio da proporcionalidade,  tampouco  ao  artigo  2º,  inciso  II,  da  Lei 9.296/1996.
3. Ordem denegada. (STJ, HC 104.005/RJ, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 08/11/2011, p. DJe 05/12/2011.)

A mais recente decisão do STJ, nesse sentido, foi dada no deferimento da ordem de ofício no HC 204.778/SP (Rel. Min. Og Fernandes, j. 04/10/2012, acórdão ainda não publicado).  Nesse precedente, a Sexta Turma daquele tribunal superior consignou que a denúncia anônima pode ser usada para desencadear procedimentos preliminares de investigação, mas não pode servir, por si só, como fundamento para autorização de interceptação telefônica. Para o STJ, consoante foi firmado no julgamento desse habeas corpus, há nulidade absoluta nas provas colhidas em decorrência de interceptações telefônicas oriundas exclusivamente de denúncia anônima, uma vez evidenciado que a autoridade policial não diligenciou no sentido de estabelecer providências anteriores menos invasivas que aquela consubstanciada na quebra do sigilo das comunicações telefônicas.  

Conclusão

Em se tratando de denúncia anônima (rectius: notitia criminis inqualificada), tanto STJ quanto STF entendem-na válida tão somente para o fim de autorizar investigações preliminares que possam vir a corroborar a veracidade material das informações decorrentes da fonte protegida pela anonímia e, ao fim e ao cabo, dar início a um inquérito policial. A denúncia anônima não é, por si só, suficiente para embasar a instauração de procedimento inquisitorial de investigação, tampouco para efeito de autorizar interceptações telefônicas sem que haja qualquer dado empírico a atestar, à luz de um raciocínio lógico, a impossibilidade de providência alternativa à quebra do sigilo das comunicações telefônicas, ainda que em sede de investigação preliminar.


REFERÊNCIAS

AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012. 1317 f.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. 5ª ed. rev. e atual. até janeiro de 2010. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 729 f.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processual penal. 13ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 949 f.

sábado, 6 de outubro de 2012

CRIME DE EXTERMÍNIO DE SERES HUMANOS NO CÓDIGO PENAL? Crítica à falta de técnica e displicência do legislador brasileiro em breves comentários à Lei 12.720/12.

 
A presidente Dilma sancionou recentemente a Lei 12.720/12 - a mais nova das leis do "pacote" de reformas pontuais que a Parte Especial do Código Penal tem experimentado nos últimos anos. Isso demonstra que, diferentemente do que alguns comentaristas açodados andaram anunciando nos últimos meses, o projeto de lei com o texto do novo Código Penal demorará a sair (com o Congresso Nacional que o País possui, alguém tinha dúvidas?). Logo, só resta ao estudioso da dogmática jurídico-penal no Brasil deitar seus olhos atentos ao atual diploma normativo, tentando "salvar", por meio de uma interpretação constitucionalizada e contextualizada com o Estado Democrático de Direito, a legislação fascista de 1940.
 
Sobre a nova lei, cumpre assinalar os aspectos da reforma:

1) Nova majorante do art. 121 do CP (Homicídio):
Art. 2º  O art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte § 6o: 
Art.121.  ..............................................................
§ 6º  A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio.” (NR)
 
Comentários RT: a lei em comento inseriu um parágrafo (§ 6º) no art. 121, de modo que o tipo de homicídio passou a contar com novel causa de aumento de pena. O legislador, portanto, decidiu apenar mais gravemente a ação do agente que perpetra o homicídio em contexto de ação miliciana ou de grupo de extermínio. O problema é que a definição de grupo de extermínio, bem como a de milícia privada, restou em aberto. Não há conceituação legal, especialmente quanto ao número de agentes para efeito de caracterizar o "grupo" ou a "milícia". E daí verifico ao menos um problema gerador de fundada insegurança jurídica: o intérprete da lei penal ficou com uma margem amplíssima de aferição quando do juízo de tipicidade - algo totalmente desaconselhável em se tratando de norma penal. Consoante o princípio da taxatividade, aplicável à técnica redacional legislativa, a norma incriminadora deve buscar a maior precisão possível na fixação da conduta punível, minorando, dessa maneira, exegeses variegadas e decisões conflitantes - sempre prejudiciais ao conhecimento profano dos comportamentos proibidos. Houvesse lembrado desse princípio básico do direito penal e o legislador se teria ocupado em definir o número de agentes necessários para efeito de autorizar a invocação da novel majorante. E agora? A tendência, como sói acontecer diante da falta de técnica do legislador brasileiro - fato, por sinal, recorrente -, é que a jurisprudência divida-se em pelo menos duas correntes:

1ª Corrente: o conceito de "grupo" ou de "milícia" ou de "esquadrão" deve tomar por base o tipo do art. 288 do CP, o qual exige, para sua caracterização in concreto, que a ação haja sido perpetrada por, no mínimo, 4 agentes ("associarem-se mais de três pessoas...").

2ª Corrente: a "Lei do Juiz Sem Rosto" (Lei 12.694/12), ao dispor sobre o processo e julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas, trouxe, no seu art. 2º, conceito legal de "organização criminosa", o qual deve ser aproveitado pelo intérprete quando da análise da majorante do § 6º do art. 121, isto é, bastando haver 3 agentes. In verbis:  

Art. 2o  Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.  
 
Vamos aguardar, obviamente, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no exercício do seu dever constitucional de órgão responsável pela uniformização da interpretação das leis federais no Brasil.

2) Nova majorante do art. 129 do CP (Lesão Corporal):

Art. 3º  O § 7º do art. 129 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação: 
 
“Art.129.  ....................................................

§ 7º  Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121 deste Código.
....................................................” (NR) 

Comentários RT: coube à legislação reformista ainda alterar o tipo da lesão corporal. Especificamente, a lei em apreço ampliou a causa de aumento de pena do antigo § 7º do art. 129. A esse respeito, vale lembrar que a redação do § 7º, oriunda da Lei 8.069/90, dispunha que a pena da lesão corporal aumentar-se-ia se ocorressem quaisquer das hipóteses do § 4º do art. 121 ["No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos."]. A partir de agora, não apenas a ocorrência da hipótese do § 4º autoriza a majoração, mas também a do § 6º do art. 121 (“§ 7º  Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121 deste Código.”). Ou seja, o legislador quis apenas mais gravemente a lesão corporal praticada por milícia privada ou por grupo de extermínio. Parece-me coerente a inclusão dessa majorante, haja vista o emprego da violência intimidatória (nem sempre resultando em supressão do bem jurídico vida a atrair o tipo de homicício do art. 121) estar diretamente relacionada ao modus operandi de grupos de extermínio e de milícias privadas.
 
3) Novo tipo penal (CP, art. 288-A):
 
Constituição de milícia privada 
Art. 288-A.  Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código: 
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos.
 
Comentários RT: o aspecto mais relevante da nova lei, todavia foi mesmo a criação de um novel tipo penal. Trata-se do art. 288-A - acima reproduzido in verbis. Analisando a topologia normativa, verifica-se que o novo tipo encontra-se situado no Título IX da Parte Especial do CP ("Dos Crimes Contra a Paz Pública"). Consequentemente, já se pode concluir que os objetos material e jurídico, tutelados pela normal penal, são a paz pública.

Acerca desse tipo, pode-se ponderar de imediato que sua pena (4-8 anos) gera dosimetria bem mais elevada que a do tipo correlato de quadrilha ou bando do art. 288 do CP (pena de 1-3 anos). Também se nota que, à diferença do art. 288 (que exige o mínimo de 4 agentes para caracterização do delito), o novíssimo art. 288-A não estipulou o quantitativo de agentes necessário para a constituição da milícia/organização paramilitar/grupo/esquadrão, o que certamente dará margem a muita insegurança jurídica, sobretudo pela possibilidade, sempre desaconselhável, de interpretações demasiado abertas na seara penal - como, aliás, explicitei supra nos comentários relativos à majorante nova do art. 121. Ainda, é de se notar que o art. 288-A, na sua conformação redacional, restringiu INEXPLICAVELMENTE a conduta de constituição de milícia privada à prática de crimes previstos no CP (“com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código:”), o que me permite afirmar que, se a intenção era punir mais gravosamente os milicianos, o legislador andou mal em ignorar que estes podem perpetrar crimes previstos na legislação extravagante. Assim, se agentes vierem a constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com o fim, por exemplo, de praticarem crimes contra a economia popular (Lei 1.521/51), descabe falar-se em tipificação do delito do art. 288-A, podendo-se, entretanto, reconhecer na espécie o crime de quadrilha ou bando (art. 288), contanto que presentes seus elementos objetivos e subjetivos.  

3) Atecnia na redação da ementa da lei: de todos os possíveis comentários a fazer sobre o novel diploma penal, o que me chama mesmo a atenção é o teor da ementa da Lei 12.720/12:

Dispõe sobre o crime de extermínio de seres humanos; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências.
 

Grifei propositalmente a expressão "crime de extermínio de seres humanos". É daí que se extrai a pergunta que não quer calar: ONDE está o crime de extermínio de seres humanos? Sim, pois, da leitura do diploma, tudo o que vi foi a inclusão de novas majorantes nos arts. 121 e 129, além da criação do tipo do art. 288-A, nada dispondo a legislação alteradora quanto à criação de um tipo penal específico de "extermínio de seres humanos". Tampouco me parece aceitável, ad argumentandum tantum, a comiseração do intérprete em defender o legislador, supondo que este estaria a referir-se ao delito de "Constituição de milícia privada", pois salta aos olhos que esse tipo não tutela a vida humana (seu bem jurídico é a paz pública).

Portanto, está mais do que evidente que o legislador incorreu em mais uma das suas conhecidas atecnias. Ou seja, não satisfeito em capitanear um dos mais elevados índices de inflação legislativa no direito comparado mundial, agora o legislador penal brasileiro simplesmente decidiu ignorar preceitos básicos concernentes à técnica redacional de cunho legislativo. A impressão que fica ao exegeta mais rigoroso é a de que, no Congresso Nacional, estão a legislar "a toque de caixa" quando se cuida das reformas operadas no Código Penal. Seria a urgência do direito penal simbólico com vistas a dar uma "satisfação" à sociedade (rectius: aos eleitores)? Ou seria apenas a mesma displicência e falta de preparo técnico que fez com que, em 2008, pretextando tornar mais rigorosa a legislação relativa aos crimes de trânsito, os parlamentares do País conseguiram resultado diametralmente inverso: alteraram a redação do art. 306 do CTB de uma maneira tão tosca que permitiram a generalização da impunidade de quem dirige embriagado, colocando em risco a segurança viária no trânsito? 

Furtar-me-ei a responder essa interrogante. Suscitei a dúvida. Deixo-a, agora, para a reflexão do leitor estimado que prestigia este blog.