quinta-feira, 21 de junho de 2012

NOTAS SOBRE A COBRANÇA DE ICMS NAS OPERAÇÕES INTERESTADUAIS DE COMÉRCIO ELETRÔNICO: novo capítulo da "guerra fiscal" brasileira


A Constituição de 1988 cuidou de disciplinar os impostos passíveis de cobrança pelos Estados e pelo DF (no exercício da competência estadual). Assim, temos que são impostos estaduais aqueles elencados no art. 156 do texto constitucional, a saber: ITCMD, ICMS e IPVA. Dentre estes, destaca-se o ICMS, por ser a mais importante fonte de receitas derivadas que carreiam recursos aos cofres dos Estados (é tributo de finalidade principalmente fiscal, portanto). Eis sua previsão constitucional:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; 

O ICMS, assim, segundo a matriz constitucional (ressalto que a LC 87/96 explicitou mais detidamente o conceito no seu art. 2º), apresenta como fatos geradores:

1) operações relativas à circulação (aqui entendidas como “circulação jurídica”, i. e., que implicam transferência do direito de propriedade, tanto que o STF afastou a incidência do imposto nos contratos de comodato, vide enunciado 573 da sua súmula) de mercadorias;

2) serviço de transporte interestadual e intermunicipal;

3) serviço de comunicação.   

Em se tratando de ICMS, dada a finalidade precipuamente arrecadatória que o cerca, e da qual se valem as Fazendas Públicas estaduais para sustentar em grande parte suas contas, o Brasil assiste ao desenvolvimento de uma crescente “guerra fiscal”, que, sumamente, representa movimento político-tributário com dupla face: de um lado, a disputa entre as unidades federativas quanto à sua capacidade de determinação na alocação de novos investimentos oriundos do setor privado; de outro, “a latere” da ingerência alocativa, também se presta a interferir no processo concorrencial entre sociedades empresárias instaladas numa determinada região, prejudicando determinadores setores da economia cujas unidades produtivas estão sediadas em Estado diverso daquele que “guerreia por meio do Fisco”.

O mais recente capítulo da guerra fiscal tupiniquim, como mencionei acima, diz respeito à cobrança do ICMS nas operações interestaduais de comércio eletrônico.

Nas operações interestaduais, lembro o leitor que a grande dificuldade consiste em determinar o seguinte: se o ICMS é imposto estadual e os contribuintes do tributo estiverem situados em Estados diferentes, a quem cabe a cobrança da alíquota do gravame? Se o leitor recordar-se comigo que o ICMS é a principal fonte de arrecadação dos entes federativos estaduais, a questão toma proporções grandiosas.

Debruçando-se sobre o assunto, o povo constituinte, ao promulgar a CF/88, claramente optou em garantir aos Estados produtores (ou seja, aqueles que, por serem mais industrializados, produzem a mercadoria que o alienante põe sob circulação jurídica) a arrecadação do ICMS nas operações interestaduais, embora não desconheça a existência de regras na própria Carta que visam a minorar o prejuízo dos Estados adquirentes dos bens tributáveis que foram produzidos fora do seu território competencial tributário.

É nessa toada que vão as regras que encontramos no art. 155, § 2º, inc. VII e VIII da Constituição. Senão vejamos:

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
VII - em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:
a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;
b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;
VIII - na hipótese da alínea "a" do inciso anterior, caberá ao Estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual;

Em resumo, o texto constitucional estipula duas hipóteses aplicáveis ao fato gerador do ICMS nas operações interestaduais (há ainda uma terceira hipótese, resolvível pela aplicação do princípio da não cumulatividade, mas não disciplinada expressamente), ambas se referindo ao caso de o destinatário do bem ou do serviço ser classificado como consumidor final:

1) se o destinatário for contribuinte do imposto (é o comerciante, mas que adquire bem como consumidor final, não tendo o intento de o revender no mercado como parte de sua empresa), aplica-se a alíquota interestadual, cabendo ao Estado em que se situa o adquirente recolher a diferença que resulta da operação matemática entre as alíquotas interna e interestadual;

2) se o destinatário não for contribuinte do imposto (se ele não for comerciante), aplica-se tão somente a alíquota interna.

É justamente nesse último caso que a disputa acirrou-se de uns tempos para cá no Brasil, especificamente em relação à cobrança de ICMS nas operações de comércio eletrônico. Sim, pois as vendas pela internet cresceram substancialmente nos últimos anos no Brasil e os Fiscos estaduais querem sua parcela do bolo de arrecadação do imposto que lhes garante a sua principal fonte de receitas derivadas. Logo, alguns Estados editaram leis estaduais a exigir o recolhimento do ICMS nas operações de comércio eletrônico nos Estados de destino da venda. E qual o problema nisso? Simples: quando alguém que compra produto pela internet é consumidor final não contribuinte desse tributo, não incide ICMS no Estado de destino, mas apenas no de origem (foi o que analisei à luz da alínea b do inc. VII do § 2º do art. 155 da CF/88).

A guerra fiscal tem um novo capítulo de sua história no Brasil por este motivo: os Estados querem abocanhar parte do volume arrecadatório que fica exclusivamente com os Estados mais industrializados, em razão de que é neles que se situam as maiores sociedades empresárias com atuação no comércio varejista eletrônico.  

A situação não é tão grave, como vimos acima, nas operações interestaduais cujo adquirente seja contribuinte do imposto, caso em que, mesmo sendo consumidor final, a CF/88 estabelece uma regra de partilha na arrecadação, reservando ao Estado de destino do bem/serviço o valor que resulta da diferença entre as alíquotas interna e interestadual.

O mesmo não ocorre em relação ao consumidor final não contribuinte, que, como vimos, não gera divisão do montante arrecadado entre os Estados de origem e de destino, cabendo tão somente ao primeiro o recolhimento da exação mediante a aplicação da alíquota interna.  

Obviamente, a questão já chegou à pauta de julgamentos do STF. E o Pretório Excelso tem, de modo reiterado, rechaçado a possibilidade de que leis estaduais venham a exigir o pagamento do ICMS cobrado sobre produtos oriundos de outros Estados nas operações de compra e venda feitas pela internet cujo destino seja consumidor final não contribuinte do imposto. Foi o que aconteceu nos precedentes ADI 4705/PB, ADI 4712/CE, ADI 4565/PI – nenhuma delas, no entanto, já julgadas em caráter definitivo pelo Plenário, ressalto.  

O STJ também já se manifestou sobre o tema no AgRg na SS 2450/BA (Rel. Min. Ari Pargendler, j. 12.05.2011, p. DJe 02.08.2011), oportunidade em que se consignou o entendimento de que só cabe cobrança de ICMS nas vendas realizadas a consumidor final por meio eletrônico no Estado de origem. Colaciono o voto elucidativo do Ministro Relator:

 “Ora, o texto constitucional é claro quando delimita a tributação no caso de operação interestadual destinada a consumidor final, ou seja, a não contribuinte do ICMS, em que só se aplica uma vez a alíquota interna, a ser recolhida no estado de origem da operação. Ademais, com o advento da Lei Complementar 87/96, o assunto foi devidamente regulamentado...

Assim, conforme disposição constitucional, em caso de venda de mercadoria destinada a consumidor final em Estado diverso do vendedor, este deverá recolher unicamente o ICMS ao Estado de origem, ao local onde se gerou o fato gerador, o local onde se deu saída ao bem, calculado pela alíquota interna do Estado de origem.

O grande problema, de fato, para o ente fiscal é que quando as vendas eram realizadas por lojas, ainda que a indústria fosse fora do Estado, os Estados e os consumidores nos quais estavam situados os estabelecimentos comerciais, era quem recebiam parcela significativa do ICMS. E a grande questão aqui é que as vendas virtuais, no caso da impetrante, o imposto na operação realizada diretamente como o consumidor final é devido aos estados que estão localizados os centros de distribuição, dos quais saem as mercadorias fisicamente.

Ora, se estas instituições vendedoras, pagam o imposto no local do fato gerador e se passam a pagar também quando chega a mercadoria em outro Estado para entrega ao consumidor final, eles estariam a pagar em duplicidade, o mesmo imposto, pois pagariam na origem e no destino, além de se submeterem as fiscalizações nos postos fiscais de barreira, repercutindo em atraso na entrega de mercadoria, ou até mesmo, em ter mercadorias apreendidas. O fato é, a legislação constitucional vigente, não deixa dúvidas, em que no imposto do ICMS, nestes casos, é devido ao Estado de origem, ao local do fato gerador.”

É fato que a guerra fiscal não se pode perpetuar nos moldes como todo o povo brasileiro tem assistido em relação ao ICMS incidente nas operações de comércio eletrônico. Se o texto constitucional de 1988 não mais comporta a realidade mutante do mundo contemporâneo, onde a internet eliminou em grande parte a figura do lojista intermediário, permitindo ao consumidor, com um só clique, adquirir o produto diretamente do produtor situado noutro Estado, trata-se de problema a ser resolvido pelo Poder Constituído Derivado Reformador (tramita, nesse sentido, a PEC 103/2011 do senador Delcídio Amaral, já tendo sido inclusive aprovada na CCJ do Senado), e não pelos legisladores estaduais, incompetentes, haja vista a resolução do busílis demandar alteração do art. 155, § 2º, VII, b, da Constituição.  

domingo, 17 de junho de 2012

DA PROPORCIONALIDADE NA CONCESSÃO DE FIANÇA: o caso dos moradores de rua de São Paulo




Diferentemente do que muita gente andou dizendo por aí de maneira açodada, a Lei 12.403/11 não é a uma “nova lei de prisões”. Muito pelo contrário. Ela foi editada justamente para evitar o encarceramento dos acusados, restringindo-o ao máximo, de maneira que, somente em situações excepcionais, caberá a constrição antecipada da liberdade.

Não abordarei o móvel da lei, que remete à tema de política criminal, e entendo plenamente contextualizado com a Constituição GARANTISTA de 1988 (faço questão de colocar “garantista” em letras garrafais, pois, como sabemos, tem muita gente que sai por aí se anunciando “antigarantista” sem saber explicar minimamente esse conceito que, por sinal, é ínsito à CF/88). Adentrarei, isto sim, os aspectos diretamente processuais do tema.

Como é consabido, com a Lei 12.403/11 e o consequente rompimento com o tradicional paradigma bipolar limitador das cautelares no processo penal à cautela (prisão preventiva) e à contracautela (liberdade provisória), o juiz criminal teve ampliados os seus poderes para aferição em concreto da necessidade do encarceramento dos acusados.

Assim, a teor da atual configuração do CPP, o raciocínio do juiz que deseja decretar a prisão cautelar deve invariavelmente responder a três perguntas:

1)    Estão preenchidos os requisitos legais do art. 313 do CPP?

2)    Verifica-se EM CONCRETO algum (ou alguns) dos pressupostos do art. 312 que autorizam a cautelar da prisão?

3)    As medidas cautelares diversas da prisão (art. 319) são proporcionalmente inadequadas ou insuficientes à aplicação da lei penal, à investigação ou à instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (art. 282, I, c/c § 6º), mesmo que se pudesse atingir os mesmos desideratos processuais pela via da cautelar de prisão preventiva?   

Feito esse raciocínio, pelo qual se evidencia que a prisão preventiva é cautelar a ser aplicada apenas em “ultima ratio” pelo julgador, prestigia-se a regra da liberdade, protegida pela presunção de inocência, em detrimento a juízos antecipados de culpabilidade dos réus. Com isso, é evidente que há de se conferir prevalência às medidas cautelares diversas da prisão, porquanto figurem como providência menos gravosa aos direitos fundamentais e, em especial, à liberdade de locomoção do acusados em geral. 

Nos termos do art. 319 do CPP, são medidas cautelares diversas da prisão:

 I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; 

 II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; 

 III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; 

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; 

 V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; 

 VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; 

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; 

 IX - monitoração eletrônica. 

Dentre as medidas cautelares do art. 319, destaco a fiança. Esta, com efeito, consubstancia medida cautelar mediante a qual o Delegado (com atuação restrita aos casos de infrações cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 anos) ou o juiz pode condicionar a concessão da medida de contracautela, isto é, a liberdade provisória.

Casos há em que o próprio legislador cuidou de vedar a concessão de fiança. São exemplos disso as hipóteses de crime de racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos, além dos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (CPP, art. 323). Também não cabe fiança nas hipóteses de acusados que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 (comparecimento em juízo) e 328 (dever de manter atualizado o seu endereço e de não ausentar-se por mais de 8 dias de sua residência sem comunicar onde poderá ser encontrado), nos casos de prisão civil ou militar ou quando presentes os requisitos do art. 312, i. e., os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva (CPP art. 324), porque aí o fumus comissi delicti, conjugado com o periculum libertatis, impõe a segregação cautelar.

Ocorre que o condicionamento da liberdade provisória ao adimplemento de fiança que a lei permite ao magistrado e ao Delegado (em caráter mais restrito, como apontei acima) não está afastado de um necessário juízo de proporcionalidade. Colorário desse entendimento é que o próprio Código cuidou de firmar balizas legais à proporcionalidade da cautelar de fiança, associando-a ao quantum de pena privativa de liberdade cominada em abstrato nos seguintes termos:

1)    Pena privativa de liberdade de até 4 anos: cabe fiança de 1 a 100 salários mínimos;

2)    Pena privativa de liberdade superior a 4 anos: cabe fiança de 10 a 200 salários mínimos.

Há casos, entretanto, em que o princípio da proporcionalidade pode recomendar um raciocínio matemático distinto, sempre em homenagem à situação econômica do preso. Disso derivam pelo menos três consequências:

1)    Acusado com boas condições econômicas: a fiança pode ser aumentada em até 1000 vezes;

2)    Acusado com condição econômica precária: a fiança pode ser reduzida em até 2/3;

3)    Acusado hipossuficiente: a fiança pode ser dispensada.

Nesta última hipótese, a dispensa da fiança submete-se ao disposto no art. 350, nos termos do qual o juiz pode conceder a liberdade provisória sem fiança, sujeitando o acusado às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 do CPP, sempre que verificar proporcionalmente o descabimento da exigência pecuniária diante das condições econômicas pauperizadas do preso.

Nesse sentido, andou bem o STJ quando, julgando o HC 238956/SP (Rel. Min. Og Fernandes, j. 29.05.2012, p. 15.06.2012) entendeu como sendo manifestamente ilegal o constrangimento imposto por decisão judicial que condiciona a liberdade provisória ao pagamento de fiança em valor superior à capacidade de pagamento dos presos. No precedente, os acusados eram moradores de rua e foram presos em flagrante por furto qualificado, após levarem objetos de uma banca de jornais.

Parece claro que, se o julgador arbitra fiança ao preso hipossuficiente em valor superior às forças mitigadas (ou mesmo inexistentes) de sua capacidade econômica, ele está tão somente, pela via transversa, negando o direito de liberdade.

Ora, retomando o raciocínio supra, se o juiz pode proporcionalmente à situação econômica dos réus condicionar a liberdade provisória à observância de outras medidas cautelares (a exemplo do monitoramento eletrônico, comparecimento a todos os atos do processo, proibição de ausentar-se da comarca), que sentido haveria em exigir o pagamento de um salário mínimo de fiança a quem não tem sequer o que comer?

       Salta aos olhos a desproporcionalidade entre meios e fins. Logo, a concessão da ordem de habeas corpus é medida de rigor que se impõe.

      Bela decisão do STJ.