domingo, 17 de junho de 2012

DA PROPORCIONALIDADE NA CONCESSÃO DE FIANÇA: o caso dos moradores de rua de São Paulo




Diferentemente do que muita gente andou dizendo por aí de maneira açodada, a Lei 12.403/11 não é a uma “nova lei de prisões”. Muito pelo contrário. Ela foi editada justamente para evitar o encarceramento dos acusados, restringindo-o ao máximo, de maneira que, somente em situações excepcionais, caberá a constrição antecipada da liberdade.

Não abordarei o móvel da lei, que remete à tema de política criminal, e entendo plenamente contextualizado com a Constituição GARANTISTA de 1988 (faço questão de colocar “garantista” em letras garrafais, pois, como sabemos, tem muita gente que sai por aí se anunciando “antigarantista” sem saber explicar minimamente esse conceito que, por sinal, é ínsito à CF/88). Adentrarei, isto sim, os aspectos diretamente processuais do tema.

Como é consabido, com a Lei 12.403/11 e o consequente rompimento com o tradicional paradigma bipolar limitador das cautelares no processo penal à cautela (prisão preventiva) e à contracautela (liberdade provisória), o juiz criminal teve ampliados os seus poderes para aferição em concreto da necessidade do encarceramento dos acusados.

Assim, a teor da atual configuração do CPP, o raciocínio do juiz que deseja decretar a prisão cautelar deve invariavelmente responder a três perguntas:

1)    Estão preenchidos os requisitos legais do art. 313 do CPP?

2)    Verifica-se EM CONCRETO algum (ou alguns) dos pressupostos do art. 312 que autorizam a cautelar da prisão?

3)    As medidas cautelares diversas da prisão (art. 319) são proporcionalmente inadequadas ou insuficientes à aplicação da lei penal, à investigação ou à instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (art. 282, I, c/c § 6º), mesmo que se pudesse atingir os mesmos desideratos processuais pela via da cautelar de prisão preventiva?   

Feito esse raciocínio, pelo qual se evidencia que a prisão preventiva é cautelar a ser aplicada apenas em “ultima ratio” pelo julgador, prestigia-se a regra da liberdade, protegida pela presunção de inocência, em detrimento a juízos antecipados de culpabilidade dos réus. Com isso, é evidente que há de se conferir prevalência às medidas cautelares diversas da prisão, porquanto figurem como providência menos gravosa aos direitos fundamentais e, em especial, à liberdade de locomoção do acusados em geral. 

Nos termos do art. 319 do CPP, são medidas cautelares diversas da prisão:

 I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; 

 II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; 

 III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; 

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; 

 V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; 

 VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; 

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; 

 IX - monitoração eletrônica. 

Dentre as medidas cautelares do art. 319, destaco a fiança. Esta, com efeito, consubstancia medida cautelar mediante a qual o Delegado (com atuação restrita aos casos de infrações cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 anos) ou o juiz pode condicionar a concessão da medida de contracautela, isto é, a liberdade provisória.

Casos há em que o próprio legislador cuidou de vedar a concessão de fiança. São exemplos disso as hipóteses de crime de racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos, além dos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (CPP, art. 323). Também não cabe fiança nas hipóteses de acusados que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 (comparecimento em juízo) e 328 (dever de manter atualizado o seu endereço e de não ausentar-se por mais de 8 dias de sua residência sem comunicar onde poderá ser encontrado), nos casos de prisão civil ou militar ou quando presentes os requisitos do art. 312, i. e., os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva (CPP art. 324), porque aí o fumus comissi delicti, conjugado com o periculum libertatis, impõe a segregação cautelar.

Ocorre que o condicionamento da liberdade provisória ao adimplemento de fiança que a lei permite ao magistrado e ao Delegado (em caráter mais restrito, como apontei acima) não está afastado de um necessário juízo de proporcionalidade. Colorário desse entendimento é que o próprio Código cuidou de firmar balizas legais à proporcionalidade da cautelar de fiança, associando-a ao quantum de pena privativa de liberdade cominada em abstrato nos seguintes termos:

1)    Pena privativa de liberdade de até 4 anos: cabe fiança de 1 a 100 salários mínimos;

2)    Pena privativa de liberdade superior a 4 anos: cabe fiança de 10 a 200 salários mínimos.

Há casos, entretanto, em que o princípio da proporcionalidade pode recomendar um raciocínio matemático distinto, sempre em homenagem à situação econômica do preso. Disso derivam pelo menos três consequências:

1)    Acusado com boas condições econômicas: a fiança pode ser aumentada em até 1000 vezes;

2)    Acusado com condição econômica precária: a fiança pode ser reduzida em até 2/3;

3)    Acusado hipossuficiente: a fiança pode ser dispensada.

Nesta última hipótese, a dispensa da fiança submete-se ao disposto no art. 350, nos termos do qual o juiz pode conceder a liberdade provisória sem fiança, sujeitando o acusado às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 do CPP, sempre que verificar proporcionalmente o descabimento da exigência pecuniária diante das condições econômicas pauperizadas do preso.

Nesse sentido, andou bem o STJ quando, julgando o HC 238956/SP (Rel. Min. Og Fernandes, j. 29.05.2012, p. 15.06.2012) entendeu como sendo manifestamente ilegal o constrangimento imposto por decisão judicial que condiciona a liberdade provisória ao pagamento de fiança em valor superior à capacidade de pagamento dos presos. No precedente, os acusados eram moradores de rua e foram presos em flagrante por furto qualificado, após levarem objetos de uma banca de jornais.

Parece claro que, se o julgador arbitra fiança ao preso hipossuficiente em valor superior às forças mitigadas (ou mesmo inexistentes) de sua capacidade econômica, ele está tão somente, pela via transversa, negando o direito de liberdade.

Ora, retomando o raciocínio supra, se o juiz pode proporcionalmente à situação econômica dos réus condicionar a liberdade provisória à observância de outras medidas cautelares (a exemplo do monitoramento eletrônico, comparecimento a todos os atos do processo, proibição de ausentar-se da comarca), que sentido haveria em exigir o pagamento de um salário mínimo de fiança a quem não tem sequer o que comer?

       Salta aos olhos a desproporcionalidade entre meios e fins. Logo, a concessão da ordem de habeas corpus é medida de rigor que se impõe.

      Bela decisão do STJ.

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