sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A GRAVIDADE DO DELITO COMO CRITÉRIO DE DETERMINAÇÃO DA COMPETÊNCIA POR CONEXÃO OU CONTINÊNCIA NO CONCURSO DE JURISDIÇÕES DA MESMA CATEGORIA NO PROCESSO PENAL: análise do HC 190.756/RS

Em destaque, Min. Laurita Vaz, relatora do HC 190.759/RS no STJ.

1 - Introdução
Quando estudamos processo penal, uma das primeiras lições a aprender diz respeito ao conceito de competência. Aprendemos que, embora a atividade jurisdicional oriente-se pelo princípio da unidade de jurisdição, o seu caráter uno não é absoluto, comportando repartições.

O Estado, assim, reparte a competência entre vários órgãos, de modo a racionalizar a prestação do serviço jurisdicional. Essa racionalização funda-se em regras, ditas regras de competência, que, por esse motivo, conceituam esse capítulo da doutrina processualista como sendo o que estabelece o limite da jurisdição. Portanto, se jurisdição, na terminologia processual, denota o  poder, mais precisamente o poder de determinar o direito aplicável ao caso concreto, competência é conceito que se reporta ao limite desse poder (competência é o limite da jurisdição).  

Como disse acima, a competência estatal de dizer o direito é repartida entre vários órgãos - todos igualmente dotados de jurisdição. Por razões históricas relacionadas ao federalismo, a Constituição é o locus privilegiado para efetuar essa repartição. As normas constitucionais são, consequentemente, a fonte primária das regras competenciais. Mas há regras de competência previstas também na legislação infraconstitucional, de modo a dar maior especificidade ao ideal de racionalização do exercício da atividade jurisdicional.

O importante é notar que há casos em que se dará a modificação da competência de um determinado órgão jurisdicional (desde que essa competência seja relativa, é claro, uma vez que a competência absoluta é inderrogável). Essa modificação é feita mediante os institutos da conexão e da continência. Ambos visam a assegurar o julgamento único desses feitos distintos (é o chamado simultaneus processus), pois, em razão de determinadas circunstâncias elencadas em lei (por exemplo: várias pessoas praticaram um mesmo crime, ou um fato delitusoso influi decisivamente na prova de outro), o legislador entende conveniente que se proceda ao seu julgamento conjunto. As razões são gritantes: economia processual, celeridade, maior facilidade na instrução probatória, até a salvaguarda da credibilidade da justiça (evita-se decisões conflitantes).

Conexão é, assim, o nexo que faz com que dois ou mais fatos delituosos, em princípio passíveis de julgamento por juízos distintos, sejam julgados no curso de um único processo (simultaneus processus). A continência, por seu turno, é a unicidade que decorre da circunstância de uma demanda estar contida em outra (exemplo é o que ocorre no concurso formal de delitos, quando há uma só conduta a gerar dois ou mais resultados lesivos, logo, é bastante racional supor que, dado o liame que os une, fundados que estão em uma mesma conduta, os fatos sejam julgados por um mesmo juízo).  

2 - A sistemática processual penal do foro prevalente

No Código de Processo Penal brasileiro, o art. 76 estabelece as hipóteses em que haverá modificação da competência pela conexão. In verbis

  Art. 76.  A competência será determinada pela conexão:
        I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
        II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
        III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.
Já ao art. 77 do mesmo diploma coube a tarefa de definir as hipóteses de continência.

  Art. 77.  A competência será determinada pela continência quando:
        I - duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração;
        II - no caso de infração cometida nas condições previstas nos arts. 51, § 1o, 53, segunda parte, e 54 do Código Penal.

Reproduzi esses dispositivos pela contextura do raciocínio que estou a desenvolver. Porém, mais importante mesmo, para os fins deste artigo, é a leitura do art. 78 do CPP. Colaciono:
 
 Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: 
        I - no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri; 
        Il - no concurso de jurisdições da mesma categoria: 
        a) preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave; 
        b) prevalecerá a do lugar em que houver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem de igual gravidade; 
        c) firmar-se-á a competência pela prevenção, nos outros casos; 
        III - no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação;
        IV - no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta. 

O art. 78 é dispositivo de relevo para a sistemática processual. Nele, como o leitor já notou, estão explicitadas as regras de fixação da competência para as hipóteses em que ocorrer conexão ou continência. Aí estão dispostas as regras que determinam o chamado "foro prevalente", que é aquele que, dentre juízos virtualmente competentes, há de concentrar o julgamento da causa (seja com base no critério das infrações ou dos acusados). Cabe a ele (foro prevalente) o julgamento único do feito, em razão de atrair para si a competência. É o que se chama em doutrina de vis attractiva, que outra coisa não quer dizer senão que o foro prevalente prorroga sua competência, para julgar um caso que, em princípio, não lhe competiria segundo as regras ordinárias de distribuição de feitos, de lugar da infração, de espécie de crime etc.

Ao ler o art. 78 do CPP, podemos facilmente depreender o sentido de algumas normas. Assim, há regra que determina que, se houver conexão entre crime de competência da justiça comum e crime de competência de justiça especial (especializada), prevalecerá a competência desta última (CPP. art. 78, IV). Ou seja, no concurso de jurisdições especial (militar, eleitoral) e comum (federal, estadual), cabe àquela, em tese, processar e julgar todos os delitos eventualmente conexos. Porém, se se tratar de crime de competência federal conexo a crime de competência estadual, o STJ afasta a aplicação do critério de preponderância da infração à qual for cominada a pena mais grave (CPP, art. 78, II, a), para firmar que o juízo federal exercerá a vis attractiva do simultaneus processus. É o que estipula o enunciado 122 da súmula de jurisprudência daquele tribunal superior:

STJ Súmula nº 122 - 01/12/1994 - DJ 07.12.1994.
Competência - Crimes Conexos - Federal e Estadual - Processo e Julgamento
    Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do Art. 78, II, "a", do Código de Processo Penal.

Outra conclusão fácil de se perceber à luz do art. 78 do Código de Processo Penal refere-se à conexão (ou continência) de crime comum com crime da competência do Tribunal do Júri (crimes dolosos contra a vida). Em tais hipóteses, a lei determina que caberá ao júri a vis attractiva, de modo que tanto o crime doloso contra a vida quanto o crime comum serão julgados pelo Tribunal do Júri (CPP, art. 78, I). Contudo, a regra da justiça especial permanece válida, de modo que, se o crime doloso contra a vida for conexo a crime militar ou eleitoral, haverá obrigatoriamente separação do julgamento dos processos (idêntico raciocínio aplica-se ao concurso da jurisdição comum com a do juízo de menores, a acarretar a separação obrigatória dos processos que envolvam coautoria entre agente maior de 18 anos e agente abaixo desse limite etário, nos termos do art. 79, II, do CPP). Ressalva parecida pode ser feita quanto à hipótese de a conexão envolver crime doloso contra a vida e crime de competência comum federal, caso em que a Justiça Federal exercerá a vis attractiva (realizar-se-á júri federal).  

No caso de infração cometida por agente que detenha foro privilegiado (ou foro por prerrogativa de função) com coautor sem o mesmo foro, será o caso de aplicar-se a regra do art. 78, III, do CPP, nos termos da qual é competente o órgão de maior graduação (hierarquicamente superior). Logo, por exemplo, se um senador da República pratica peculato com auxílio de um assessor (cidadão comum, sem foro privilegiado), ambos serão julgados perante o STF, que é detentor de competência originária (ratione personae) para o processo e julgamento dos membros do Congresso Nacional nas infrações penais comuns (CF, art. 102, I, b). Inclusive, não há que se falar em violação ao princípio do juiz natural nessas hipóteses, consoante entendimento consagrado no enunciado 704 da súmula de jurisprudência do STF:

STF, Súmula nº 704 - 24/09/2003 - DJ de 9/10/2003, p. 6; DJ de 10/10/2003, p. 6; DJ de 13/10/2003, p. 6.
Garantias do Juiz Natural - Ampla Defesa - Devido Processo Legal - Atração por Continência ou Conexão - Prerrogativa de Função
    Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.
 
Entretanto, exsurge a pergunta: se as jurisdições forem todas de mesma categoria? Isto é, se os juízos pertencerem ao mesmo grau hierárquico? Resolver-se-á em favor de quem o conflito?

Para dirimir essa dúvida, o leitor deve socorrer-se do art. 78 do CPP. Ali logo se notará que, em havendo concurso de jurisdições de mesmo grau hierárquico, "preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave" (art. 78, II, a). O exemplo clássico dado pela doutrina é o dos crimes de receptação (CP, art. 180) e de roubo (CP, art. 157). Aquele tem pena de 1 a 4 anos de reclusão, já este tem pena de 4 a 10 anos de reclusão. Segundo esse raciocíno, se receptação foi praticada na cidade "X", mas com produto de roubo perpetrado na cidade "Y", então, o foro prevalente para o julgamento do feito será o da cidade "Y", que exercerá a vis attractiva diante do fato de que o art. 157 tem pena privativa de liberdade, cominada em abstrato, mais elevada (entre roubo e receptação estabelecer-se-ia a conexão probatória ou instrumental, em face de a prova do primeiro influir na prova do segundo, tudo nos termos do que dispõe o art. 76, III, do CPP).

Jurisprudencialmente, o STJ acaba de reiterar esse raciocínio no julgamento do HC 190.756/RS. Nesse precedente, um réu impetrou habeas corpus com vistas a que o juízo de Porto Alegre fosse declarado competente para o processamento de feito que fora remetido para o juízo de Santa Maria. A concorrência de jurisdições envolvia fatos que apontavam para a prática dos delitos de extorsão (CP, art. 158), supostamente cometido em Porto Alegre, e de peculato-desvio (CP, art. 312, caput), corrupção passiva (CP, art. 317, caput), corrupção ativa (CP, art. 333, caput). Vejamos como a Quinta Turma do STJ decidiu o HC (grifos meus):

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DESCABIMENTO.  COMPETÊNCIA  DO  SUPREMO  TRIBUNAL FEDERAL E DESTE SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO DO STJ, EM CONSONÂNCIA COM O DO STF. DIREITO PROCESSUAL PENAL. ART. 78, INCISO II, ALÍNEA A, DO CÓDIGO DE  PROCESSO  PENAL. CONCURSO DE JURISDIÇÕES DE MESMA  CATEGORIA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DO LUGAR ONDE  PRATICADA  A INFRAÇÃO  A  QUE  FOR  COMINADA,  ABSTRATAMENTE,  A  PENA MÁXIMA  MAIS  ALTA. IMPOSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
1.  O Excelso Supremo Tribunal  Federal,  em  recente  alteração jurisprudencial,  retomou  o  curso  regular  do  processo  penal,  ao  não  mais admitir  o  habeas  corpus  substitutivo  do  recurso  ordinário.  Precedentes:  HC 109.956/PR, 1.ª Turma, Rel.  Min.  MARCO  AURÉLIO,  julgado  em 07/08/2012, DJe de 10/09/2012; HC 104.045/RJ, 1.ª Turma, Rel. Min. ROSA WEBER, julgado em 28/08/2012, DJe de 05/09/2012. Decisões monocráticas dos  ministros  LUIZ  FUX  e  DIAS  TOFFOLI, respectivamente,  nos  autos  do HC 114.550/AC (DJe de 27/08/2012) e HC 114.924/RJ (DJe de 27/08/2012).
2.  Sem embargo, mostra-se precisa a ponderação lançada pelo Ministro  MARCO  AURÉLIO,  no  sentido  de  que,  "no  tocante  a  habeas já formalizado  sob  a  óptica  da  substituição  do  recurso  constitucional,  não ocorrerá  prejuízo  para  o  paciente,  ante  a  possibilidade  de  vir-se  a  conceder, se for o caso, a ordem  de ofício. “
3. Não é o que ocorre no caso. Na hipótese, em que há concurso entre jurisdições de mesma categoria, discute-se o local do Juízo em que praticada a conduta  mais  grave.  Em  Porto  Alegre/RS foi  cometido  o  delito  de  extorsão (art.  158,  do  Estatuto  Repressor),  cuja  pena  cominada  em  abstrato  é  de  4 (quatro)  a  10  (dez)  anos  de  reclusão  e,  em  Santa  Maria/RS,  os  delitos  de
peculato  desvio  (art.  312,  caput),  corrupção  passiva  (art. 317,  caput)  e corrupção  ativa (art.  333, caput),  todos  punidos  com reclusão  2  (dois)  a  12 (doze) anos, conforme o Código Penal.
4.  No  concurso  de  jurisdições  de mesma  categoria,  prevê  o  art.  78, inciso II, alínea a, do Código de Processo Penal, que "preponderará  a do lugar da infração,  à qual for cominada  a pena mais grave ".
5.  A gravidade do delito,  para  fins  penais,  é  estabelecida  pelo Legislador. Por isso, tem-se por mais grave o delito para o qual está prevista a possibilidade de, abstratamente, ser conferida pena maior. Doutrina.
6. Ora, o Legislador permitiu cominar sanção mais alta a determinado delito porque previu hipóteses em que a conduta ocorre sob particularidades de maior reprovabilidade, razão  pela  qual  essa  deve,  em  abstrato, ser  entendida como a mais grave.
7.  É competente o juízo  do  lugar  do  crime  em  que  a  pena máxima cominada é a mais alta, e não o daquele em que a pena mínima é maior.
8.  Ausência de ilegalidade flagrante que permita a concessão  da ordem de ofício.
9. Habeas corpus não conhecido.
(STJ, Quinta Turma, HC 190.756/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 23/10/2012, p. DJe 31/10/2012).
 
Com a ementa desse acórdão, o STJ explicita bem a exegese do art. 78, II, a, do CPP. Porém, a matéria relativa à fixação de competência por conexão ou continência no concurso de jurisdições de mesma categoria não se esgota nesse ponto. Basta pensar que pode suceder de os crimes conexos possuírem mesma pena máxima cominada em abstrato. Nesse ponto, há insuficiência notória do critério da gravidade do delito. Dessa maneira, será preciso recorrer à regra seguinte, nos termos da qual, em se tratando de infrações com a mesma gravidade, o foro prevalente determinar-se-á em favor do juízo do lugar em que tenha ocorrido a consumação do maior número de  crimes (CPP, art. 78, II, b). Por fim, se suceder de os crimes terem igual gravidade, tendo sido praticados em diferentes lugares com o mesmo número de infrações, a lei se socorre de um critério subsidiário de fixação da competência, atribuindo a vis attractiva ao juízo prevento (CPP, art. 78, II, c), isto é, o juízo que tiver antecedido aos demais na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia (CPP, art. 83).

3 - Conclusão

Embora a competência seja fixada de conformidade com regras previstas ora na Constituição, ora na lei, há hipóteses de modificação dessa mesma competência. Seja pela conexão, seja pela continência, um juízo que, em princípio não julgaria a causa, pode vir a fazê-lo. É que o CPP estabelece regras de foro prevalente, onde se dará, por razões de economia processual, e também para evitar decisões contraditórias, o simultaneus processus, isto é, o julgamento dos feitos distintos em um mesmo processo, perante um mesmo juízo.

As regras de foro prevalente do CPP, que determinam a fixação da competência em casos de crimes conexos, situam-se no art. 78. É nesse dispositivo que se pode encontrar as regras da vis attractiva, as quais incidem para fixar a competência em um ou outro juízo.

No precedente analisado neste artigo, busquei evidenciar de que maneira a jurisprudência posicionou-se em relação a uma dessas regras, mais precisamente àquela insculpida no art. 78, II, a, do código, segundo a qual, no concurso de jurisdições da mesma categoria (mesmo grau hierárquico), a vis attractiva preponderará em favor do juízo do local onde se tenha consumado a infração com a pena mais grave.   

Nesse sentido, a ementa do acórdão do HC 190.756/RS evidencia a interpretação que o STJ faz sobre a regra do art. 78, II, a, do CPP. Para aquele tribunal superior, na hipótese de concurso de jurisdições de mesma categoria, deve-se repelir a argumentação segundo a qual a fixação da competência dar-se-ia com base no delito que tivesse pena mínima, cominada em abstrato, mais elevada. Logicamente, o tirocínio do STJ seguiu a lição já consagrada em sede doutrinária e jurisprudencial, a dar conta de que, para efeito do que dispõe o art. 78, II, a, do CPP, o julgador deverá observar a pena máxima cominada em abstrato aos delitos conexos, a fim de resolver eventual conflito de competência manifesto  entre juízos concorrentes de mesma categoria.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2012.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 190.756/RS, da Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 23/10/2012, publicado no DJE em 31/10/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 28 dez. 2012.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

RESUMO RT - CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE - Parte V: Classificação das Formas de Controle de Constitucionalidade


Recapitulação

Na quarta parte deste resumo, abordei a classificação das espécies de inconstitucionalidade. Esse é um tema que diz respeito diretamente ao caráter multifário com que se apresenta o fenômeno da inconstitucionalidade nos mais distintos sistemas normativos. Nesse prisma, procurei aduzir conceitos importantes para o leitor, como o são os de inconstitucionalidade por ação e omissão, formal e material. É daí que a doutrina extrai uma proposta de classificação das espécies de inconstitucionalidades.

Mas as propostas de classificações doutrinárias relativas ao controle de constitucionalidade não se esgotam no fenômeno das inconstitucionalidades. Há também a já tradicional classificação das formas, ou modalidades, de controle. É esse o assunto, portanto, sobre o qual versará a quinta parte deste nosso humilde resumo de controle de constitucionalidade para concursos.

1 - Introdução 

No estudo de qualquer teoria, as classificações ocupam papel importante pelo viés didático que proporcionam na abordagem do tema. Com o controle de constitucionalidade não é diferente. Assim, essa especial forma de teoria da doutrina do direito constitucional apresenta algumas classificações, seja quanto ao fenômeno das inconstitucionalidades, seja quanto às formas de exercício do controle.

Na doutrina constitucionalista, as classificações das formas, ou modalidades, de controle de constitucionalidade apresentam-se de forma variada. Têm em comum, todavia, a remissão necessária aos sistemas ou modelos de controle, de onde buscam extrair os pilares teóricos que hão de sustentar os critérios classificadores.

Os modelos de controle de constitucionalidade a que se faz referência na doutrina são de três ordens, nomeados de conformidade com o país de onde se originaram no decurso da experiência histórica: o estadunidense (ou norte-americano, termo que é inclusive o mais difundido na literatura jurídica), o austríaco (ou kelseniano) e o francês. O primeiro surgiu nos Estados Unidos da América, em 1803, impulsionado pelo voto do juiz John Marshall no famoso caso Marbury v. Madison, caracterizando-se pelo defesa da supremacia da Constituição ante a atribuição generalizada, a todos os juízes e tribunais, do poder de controlar a constitucionalidade das leis. O segundo, embora tenha surgido na Constituição austríaca de 1920 - cujo texto teve como mentor intelectual o maior dos gênios da iusfilosofia no século XX, o jurista Hans Kelsen (1881-1971) - ganhou expressiva adesão por parte das constituições europeias após a Segunda Guerra Mundial, forte na criação das Cortes Constitucionais, que seriam órgãos de Estado especificamente dedicados ao exercício do controle de constitucionalidade das leis (um controle, portanto, concentrado, que não admite a divisão dessa competência com os demais órgãos jurisdicionais, os quais, em princípio, devem suspender os processos em trâmite nos quais sejam identificadas arguições relevantes de inconstitucionalidade, levando-as à Corte Constitucional do país para que seja dada a interpretação autorizada da Constituição). O terceiro, obviamente, teve origem na França, onde o Conselho Constitucional francês funciona como um órgão de caráter político (não jurisdicional), idôneo a controlar a constitucionalidade dos atos antes de seu ingresso no ordenamento jurídico (controle prévio, embora também já se admita na França que o Conselho promova o de tipo repressivo).

Didaticamente, é possível visualizar a classificação das formas/modalidades de controle de constitucionalidade no seguinte esquema:

1) Quanto à natureza do órgão: o controle pode ser político ou judicial;

2) Quanto ao momento: o controle pode ser preventivo ou repressivo;

3) Quanto à competência do órgão: o controle pode ser difuso ou concentrado;

4) Quanto à finalidade ou modo: o controle pode ser concreto (por via incidental) ou abstrato (por via principal ou por via de ação direta).

A partir desse esquema, hei de abordar a seguir os característicos principais das formas de controle de constitucionalidade, tal como são apresentados doutrinariamente.

2 - Quanto à natureza do órgão: controle político x controle judicial

Diz-se político o controle de constitucionalidade quando a verificação da compatibilidade do ato normativo com a Constituição é feita por um órgão de caráter não judicial. Isto é, o órgão que assume a incumbência de fiscalizar a supremacia do texto constitucional não integra o Poder Judiciário; não exerce, portanto, função jurisdicional. No direito comparado, a exemplificação mais frequente dessa modalidade de controle dá-se pela experiência do direito francês, onde, à luz da Constituição francesa de 1958, ora vigente naquele país, o Conselho Constitucional (Conseil Constitutionnel) - que é órgão ligado ao Poder Legislativo, composto por conselheiros escolhidos pelo Presidente da República e pelo Parlamento, além dos ex-Presidentes como membros natos - é o responsável pelo controle de constitucionalidade.  

Já o controle judicial, ou sistema jurisdicional, decorre da experiência do constitucionalismo estadunidense, mais precisamente dos fundamentos com que o juiz John Marshall decidiu o caso Marbury v. Madison (1803). Segundo ficou consignado no voto do então Chief Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, haveria que se reconhecer o princípio da supremacia da Constituição, tendo o Poder Judiciário a missão precípua de assegurá-lo, mediante a fiscalização da compatibilidade das leis infraconstitucionais editadas sob a égide do texto supremo (judicial review). Significa concluir que, no controle judicial da constitucionalidade, tal como concebido nos Estados Unidos, rejeita-se a supremacia do Parlamento, característiva do constitucionalismo inglês, para declarar o Poder Judiciário como o intérprete autorizado da Constituição.

Aqui é preciso assinalar o desenvolvimento do controle de constitucionalidade nos marcos da experiência europeia. Na Europa continental, a Constituição da Áustria, de 1920, sob a influência direta do pensamento do iusfilósofo Hans Kelsen, foi pioneira no estabelecimento do chamado controle concentrado da constitucionalidade, modelo que se caracteriza por atribuir a um órgão específico (em geral, tribunais constitucionais) o poder de verificar a compatibilidade dos atos normativos com o texto (supremo) da Constituição. Não por outra razão, na história do direito constitucional, esse modelo seria alcunhado de "austríaco". 

Parece-me oportuno mencionar, ainda, o controle misto, que é resultado da fusão das duas orientações acima sublinhadas. Nos países adeptos do sistema misto, a Constituição divide as leis, determinando que algumas espécies delas sejam fiscalizadas pelo Poder Judiciário, ao passo que outras permanecem sob o controle do Poder Legislativo. 

Vale ressaltar que, no Brasil, a Constituição de 1988 adotou o modelo judicial (ou sistema juridicional) de controle da constitucionalidade, pois cabe ao Poder Judiciário fundamentalmente a tarefa de fiscalizar a compatibilidade das leis com a Constituição. Apesar disso, o próprio texto constitucional prevê hipóteses nas quais os Poderes Legislativo e Executivo podem imiscuir-se no controle de constitucionalidade. Por exemplo, no veto jurídico, que é o veto por inconstitucionalidade, levado a efeito pelo Chefe do Poder Executivo na fase da sanção de projeto de lei (CF, art. 66, § 1º), bem assim na atuação das Comissões de Constituição e Justiça junto às Casas do Parlamento, temos hipóteses claras de controle de constitucionalidade protagonizado por Poderes republicanos distintos do Judiciário.         

3 - Quanto ao momento: controle preventivo x controle repressivo

Há casos em que a simples elaboração de uma lei com um determinado conteúdo já transparece uma flagante violação do texto constitucional. Para tais hipóteses é que existe o chamado controle preventivo (ou prévio) de constitucionalidade. Trata-se da fiscalização que visa a se antecipar à violação da Constituição, de maneira a não permitir que projetos de lei ou propostas de emenda, de teor inconstitucional, venham a ingressar no ordenamento jurídico, passando a produzir efeitos. Ou seja, o que se objetiva, com essa especial modalidade de controle, não é propriamente a declaração de inconstitucionalidade da lei (que, a rigor, só passa a existir enquanto lei após a sanção ou, se se tratar de emenda, após a promulgação), mas sim de depurar o conteúdo que conflita com a lei maior. 

Estudando a Constituição brasileira de 1988, constata-se haver hipóteses de controle preventivo peculiarizadas de acordo com o Poder de que se esteja a tratar. Assim, no âmbito do Poder Legislativo, incumbe às Comissões de Constituição e Justiça, que têm caráter permanente (CF, art. 58, caput), a missão de exercitar o controle preventivo de constitucionalidade, para tanto analisando os projetos de leis e propostas de emendas constitucionais antes que sejam levados à votação em Plenário. No âmbito do Poder Executivo, assegura-se ao Presidente da República que se utilize do veto jurídico (CF, art. 66, § 1º), a fim de impedir que projeto de lei inconstitucional venha a ser convertido em lei. Por fim, de maneira mais restrita, o Poder Judiciário também pode vir a atuar preventivamente no controle de constitucionalidade, como na hipótese de mandado de segurança, impetrado por membro do Parlamento, sob a alegação de que o seu direito líquido e certo ao devido processo legislativo constitucional restou desrespeitado. A jurisprudência do STF já se assentou nesse sentido (grifo meu):

EMENTA: CONSTITUCIONAL. PODER LEGISLATIVO: ATOS: CONTROLE JUDICIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. PARLAMENTARES. I. - O Supremo Tribunal Federal admite a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo. II. - Precedentes do STF: MS 20.257/DF, Ministro Moreira Alves (leading case) (RTJ 99/1031); MS 20.452/DF, Ministro Aldir Passarinho (RTJ 116/47); MS 21.642/DF, Ministro Celso de Mello (RDA 191/200); MS 24.645/DF, Ministro Celso de Mello, "D.J." de 15.9.2003; MS 24.593/DF, Ministro Maurício Corrêa, "D.J." de 08.8.2003; MS 24.576/DF, Ministra Ellen Gracie, "D.J." de 12.9.2003; MS 24.356/DF, Ministro Carlos Velloso, "D.J." de 12.9.2003. III. - Agravo não provido. (STF, Plenário, MS 24.667/DF-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 04/12/2003, DJ 23/04/2004).   

Porém, pode ocorrer de o ato normativo viciado ingressar no ordenamento jurídico, uma vez concluído o processo legislativo. Nesses casos, a verificação da constitucionalidade dar-se-á mediante o controle repressivo. Dessa maneira, o controle repressivo, também chamado de típico ou a posteriori, manifesta-se quando o órgão responsável pela fiscalização visa a analisar, à luz das normas da Constituição, a compatibilidade de lei ou ato normativo já em vigor no ordenamento. A finalidade do controle de tipo repressivo é declarar a inconstitucionalidade da lei contrastante com o texto supremo, paralisando sua eficácia normativa.

De acordo com o sistema de controle de constitucionalidade instituído pela Constituição brasileira de 1988, esse é o tipo de controle atribuído preponderantemente ao Poder Judiciário. No entanto, existem certas hipóteses em que os demais Poderes republicanos estão autorizados a intervir de modo repressivo, para assegurar a supremacia do texto constitucional. Por exemplo: há controle de constitucionalidade repressivo na competência do Congresso Nacional que lhe autoriza a "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa" (CF, art. 49, V). Também é repressivo o controle que o mesmo Congresso Nacional exercita por meio da rejeição de medida provisória editada em desacordo com as determinações estabelecidas na Constituição, seja porque a MP versa sobre matéria vedada a esses atos do Poder Executivo (CF, art. 62, § 1º), seja porque a MP não atendeu aos pressupostos constitucionais de "relevância e urgência" (CF, art. 62, § 5º), seja porque a MP foi reeditada na mesma sessão legislativa em que tenha sido rejeitada ou em que tenha perdido a sua eficácia por decurso do prazo (CF, art. 62, § 10). Finalmente, a doutrina costuma apontar que a recusa de cumprimento a uma lei, considerada inconstitucional por parte do Chefe do Poder Executivo, é demonstração de controle de constitucionalidade repressivo no âmbito daquele Poder.

4 - Quanto à competência do órgão: controle difuso x controle concentrado

O controle difuso de constitucionalidade é aquele atribuído a todo e qualquer juiz ou tribunal no exercício da jurisdição. É a modalidade de controle que nasceu com a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos (caso Marbury v. Madison, de 1803) que reconheceu que os juízes, independentemente do grau hierárquico em que se situassem, tinham o dever de zelar pela inteireza do princípio da supremacia da Constituição. Portanto, estavam autorizados a negar, no caso concreto, aplicação a uma lei inconstitucional. Por isso, é chamado também de sistema  ou modelo estadunidense.

Por seu turno, o controle de constitucionalidade concentrado é aquele que atribui a competência para a fiscalização das leis infraconstitucionais exclusivamente a um órgão especializado (ou a um grupo deles). Esse órgão, que desempenha atividade jurisdicional, apresenta-se comumente sob a forma de um tribunal ou corte constitucional, cujo círculo competencial circunscreve-se a interpretar, de forma autorizada e final, a validade das leis e atos normativos diante do texto constitucional. É o modelo que veio à lume com a Constituição da Áustria de 1920. Por isso, também é conhecido como sistema ou modelo austríaco.     

Analisando a experiência brasileira à luz da Constituição de 1988, é forçoso concluir que o texto consitucional vigente incorporou características de ambos os modelos, difuso e concentrado, haja vista se permitir a qualquer juiz ou tribunal que efetue o juízo de compatibilidade das leis e atos normativos infraconstitucionais, bem como ao STF foi atribuída, precipuamente, a missão de garantir a higidez do princípio da supremacia da Constituição. Para esse fim, a Suprema Corte brasileira pode vir a ser instada a manifestar-se mediante o ajuizamento de quaisquer das ações constitucionais do controle concentrado, a saber: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e RI (Representação Interventiva).    

5 - Quanto à finalidade ou modo: controle concreto (por via incidental) x controle abstrato (por via principal ou por via de ação direta)

Há casos em que, no curso de um processo, uma das partes alega a inconstitucionalidade de uma determinada lei ou ato normativo como pressuposto para a certificação do seu direito. Aí a inconstitucionalidade alegada não é a questão principal do processo, mas sim uma questão incidental (prejudicial), suscitada porque pode conduzir ao desfecho de uma controvérsia a envolver direitos subjetivos.

Nesse contexto, aplica-se o controle de constitucionalidade incidental, que pode ser definido como um modo de fiscalizar a compatibilidade do objeto (lei) com o parâmetro (Constituição) em um processo subjetivo, portanto, um processo de partes. Diz-se em doutrina que esse é um controle incidental justamente porque a alegação de vício de inconstitucionalidade é feita incidenter tantum, isto é, como causa de pedir, como uma questão prejudicial, que o juiz ou tribunal, quando da análise do caso concreto, há de resolver como etapa necessária à prolação da sentença. Ou seja, o juiz, para aplicar a lei à controvérsia submetida ao crivo judicial, necessita, antes de qualquer outra atitude, verificar se o objeto normativo é válido à luz da Constituição, para, só então, decidir quanto à certificação de um dado direito. Daí por que esse modo de controle é dito controle concreto: a fiscalização é feita no bojo de um caso concreto, um caso da vida qualquer em que a questão da inconstitucionalidade seja prejudicial à obtenção do direito. O exemplo clássico da doutrina é o do tributo: se a lei que instituiu o gravame é inválida (inconstitucional), o pleito do contribuinte em ver-se protegido da exigência de adimplemento da obrigação tributária é plausível e merece ser acolhido pelo Judiciário. A questão principal (principaliter tantum) não é a inconstitucionalidade da lei instituidora do tributo, mas sim o direito subjetivo da parte em não ser obrigada a pagar aos cofres fazendários valores decorrentes da exigência de tributo criado em desacordo com o princípio da legalidade tributária.

Parte da doutrina costuma referir-se ao controle concreto como sendo o controle "por via de exceção" ou "por via de defesa". Essa é uma terminologia que se originou na praxe forense, onde é notória a constatação de que é o demandado, na maioria das vezes, quem alega a inconstitucionalidade como questão prejudicial do mérito, a fim de não ser compelido ao cumprimento de lei ou ato normativo com vício de validade (eivado à luz do texto supremo). Entretanto, essa terminologia deve ser abandonada, porquanto o fato de ser comum o emprego da alegação de inconstitucionalidade como tese de defesa não impede que a parte demandante faça uso do mesmo argumento. Logo, não apenas o réu, mas o autor também pode ajuizar uma demanda que tenha como argumentação incidenter tantum a tese da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Ele (o autor) pode, inclusive, lançar mão, nesse sentido, das muitas açõs constitucionais disponíveis no arsenal jurídico do ordenamento brasileiro (mandado de segurança, mandado de injunção, habeas corpus, habeas data etc). 

Ainda com relação à via incidental, parece-me salutar efetuar uma diferenciação: acorde com a técnica do controle de constitucionalidade, o modelo de controle difuso não é sinônimo de controle incidental ou incidenter tantum. Aquele ocorre quanto se autoriza a qualquer juiz ou tribunal proceder à fiscalização da validade das leis e atos normativos diante das normas da Constituição. Este é tão somente o modus operandi do controle, que se desenvolve incidentalmente na apreciação de um caso concreto. O problema é que o sistema jurisdicional misto (difuso e concentrado), em que se encontra fundado o controle de constitucionalidade brasileiro, estimulou a confusão (ou superposição) desses conceitos (que, repito, são distintos na teoria). Em grande medida, isso é consequência da tradição das constituições republicanas do País, que incorporaram a prática de um controle difuso que se exercita incidentalmente. No entanto, tal não pode conduzir ao raciocínio, por certo equivocado, de que o controle incidental só se exercita de modo difuso. A prova maior é que, no atual cipoal normativo do Brasil, a regra do controle difuso incidental comporta uma exceção: trata-se da ADPF incidental, prevista no parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/99. A ADPF incidental é aquela que se origina de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental que tem por base uma controvérsia constitucional relevante. Ora, a controvérsia constitucional relevante é um requisito de admissibilidade da ação que só se pode demonstrar à luz dos casos concretos levados ao crivo do Poder Judiciário, de modo que é forçoso reconhecer que se está diante de uma hipótese de controle concentrado incidental de constitucionalidade, em face de a arguição surgir no bojo de um caso concreto. Por isso, a essa especial modalidade de controle concentrado, que se exercita incidentalmente, a doutrina costuma designar de ADPF por arguição incidental, de maneira a distingui-la da ADPF por arguição autônoma, prevista no art. 1º, caput, da Lei 9.882/99.

Diverso do incidental é o controle por via de ação principal ou por via de ação direta. Este, que se origina da tradição europeia, na qual é grande o apreço pela figura das cortes constitucionais, revela um um modo de controle que se operacionaliza independentemente de qualquer caso concreto, para o qual é irrelevante a existência de disputa de partes quanto a um direito subjetivo. O controle por via principal é aquele no qual o objeto da ação é a discussão derredor da compatibilidade da lei com a Constituição. À diferença do que sucede com o controle por via incidental, onde a alegação de inconstitucionalidade é feita incidenter tantum, no controle por via principal a dúvida quanto à validade de lei ou ato normativo é o objeto da ação, isto é, trata-se de uma questão principaliter tantum, veiculada em um processo objetivo, sem partes, cuja finalidade maior é assegurar a força normativa do princípio da supremacia da Constituição, ao preservar a integridade hierárquica do ordenamento jurídico por meio da expurgação das leis incompatíveis com o texto constitucional supremo. Disso resulta que esse será, em regra, um controle abstrato, isto é, de pronunciamentos em tese, que versam exclusivamente sobre a aferição da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo em eventual confronto com o texto da Constituição (a exceção fica por conta da Representação Interventiva - RI, regulamentada pela Lei 12.562/11, sendo uma ação direta usada pelo Procurador-Geral da República com vistas a obter autorização judicial para a intervenção federal, sob alegada violação dos princípios constitucionais sensiveis do art. 34, VII, da Constituição, ou de recusa, por parte do Estado-Membro, à execução de lei federal, caso em que o STF há de pronunciar-se à luz de um caso concreto, e não em tese, como sói acontecer em sede de controle por via principal).       

Por se tratar de um processo objetivo, onde não há lide (conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida), tampouco há partes, o sistema jurídico restringe a participação dos agentes que podem agitar o controle por via da ação direta. Para isso, estabelece um rol de legitimados, em geral optando por órgãos e entidades de reconhecido compromisso com a defesa da ordem constitucional. No Brasil, o art. 103 da Constituição elenca os agentes que estão legitimados à propositura da ADI e da ADC, sendo que o art. 2º da Lei 9.882/99 estendeu esse mesmo rol à sistemática da ADPF. Em movimento legiferante idêntico, a Lei 12.063/09, que alterou  Lei 9.868/99 (Lei da ADI), estatuiu que o rol de legitimados do art. 103 da CF/88 aplica-se também à propositura da ADO (art. 12-A).   

Por fim, cabe relembrar que o controle que se faz pela via principal não se confunde com o controle concentrado, pois aquele é conceito extraível de um critério classificatório baseado no modo do controle, enquanto este é conceito aferido com base no critério da competência do órgão. Além disso, embora, no Brasil, o controle concentrado seja feito pela via da ação direta e, em geral, tenha como resultado um pronunciamento em abstrato (em tese) por parte do STF, não se pode ignorar a exceção supracitada da RI, nos termos da qual, apesar de se cuidar de espécie de ação do controle concentrado, o pronunciamento da Corte Suprema, quanto à admissibilidade da intervenção federal, dar-se-á in concreto.      

sábado, 8 de dezembro de 2012

BOA-FÉ OBJETIVA E A DOUTRINA DO "CONTEMPT OF COURT" NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: esclarecendo a interpretação do STF quanto à aplicabilidade, aos advogados públicos e privados, da multa por ato atentatório ao exercício da jurisdição


1 - Introdução

É tradicional no estudo do processo a divisão doutrinária que se faz entre os modelos dispositivo, também chamado adversarial, e inquisitorial. Naquele se acentua a inércia do órgão jurisdicional perante a relação de disputa que as partes travam entre si na defesa dos seus respectivos interesses. Neste se enfatiza o papel do juiz-protagonista, admitindo-se que o órgão julgador disponha de uma gama ampla de poderes de ofício, a fim de conferir-lhe ingerência espontânea mais significativa na busca pela "verdade" processual.

Esses modelos, que visam a identificar critérios de organização do processo, prestam-se a permitir uma distribuição racional das funções dos sujeitos processuais. Isso se evidencia com clareza no tema relativo ao direito probatório. Aqui é comum alegar-se em doutrina que os modelos dispositivo e inquisitorial geram, respectivamente, os princípios dispositivo e inquisitivo, os quais servem como fundamento, por exemplo, para a maior ou menor participação do Estado-juiz na formação da prova. Pelo princípio dispositivo, o juiz é espectador da atividade probatória, cabendo às partes, essencialmente, postularem os meios pelos quais hão de desenvolver a atividade probante. Já segundo o princípio inquisitivo, o juiz tem poderes de instrução probatória. Ele pode, assim, agir ex officio no curso da instrução processual, para o fim de colher, independentemente da vontade das partes, elementos que auxiliem a resolução da lide. 

É claro que esses modelos - de que o legislador lança mão para estruturar o processo - interpenetram-se com frequência. Nesse sentido, salvo na teoria pura, não há sistema processual que não guarde aspetos de um ou de outro modelo, ora tendendo para a orientação inquisitiva, ora para a dispositiva. Modernamente, há inclusive autores que defendem um terceiro modelo de organização processual - o chamado processo cooperativo, onde o juiz assumiria um papel de constante diálogo com as demais personagens que intervêm na relação processual, intensificando sua atuação, de modo a assegurar a legitimidadade do processo. Esse terceiro modelo sustentar-se-ia nos princípios do devido processo legal, da boa-fé processual e do contraditório (DIDIER JUNIOR, 2012, p. 88).  

A partir dos princípio da boa-fé e lealdade processuais, é que pretendo, neste artigo, introduzir o tema dos deveres das partes, bem como de todos aqueles que atuam no curso da relação jurídica processual. Hei de destacar especialmente o inc. V do art. 14 do CPC, porque é dele que se extrai o comando que sustenta a sanção prescrita no parágrafo único do mesmo dispositivo: a multa por ato atentatório ao exercício da jurisdição (contempt of court).

Estudar a jurisprudência do STF sobre essa espécie de sanção processual, que assume, na prática, a forma de uma multa de natureza administrativa, é o objetivo que me anima na redação deste artigo.

2 - Conteúdo ético do processo e os princípios da boa-fé e da lealdade processuais

Parece indiscutível que as partes que litigam em juízo disputam entre si, com vistas a que prevaleça o entendimento mais favorável aos seus respectivos interesses. Trata-se de uma "guerra", mas não de uma peleja selvagem (desregrada). É preciso impor limites ao desenvolvimento do conflito. E o devido processo legal é a garantia de um método racional e previsível sobre o modus operandi de exercício do poder dirimente do Estado-juiz.

A funcionar como um anteparo especialmente digno ao desejo arrivista de vitória das partes, a doutrina costuma elencar o princípio da boa-fé nas relações processuais. Quase que concomitantemente a esse importante vetor principiológico, parcela significativa das codificações processuais invoca também o princípio da lealdade processual. A lógica é plausível: age de boa-fé todo aquele que evita comportamento desleal. Portanto, cuida-se de acrescentar um sentido ético à marcha do processo, retirando-a do livre talante das partes, que não podem "agir como bem entenderem" a pretexto de salvaguardar seus interesses em juízo.
  
Nesse ponto, é importante frisar que a boa-fé aludida impõe-se como uma norma de conduta (boa-fé objetiva), e não como propósito bem intencionado (boa-fé subjetiva). As normas do direito processual ocupam-se de determinar comportamentos, exigindo a abstenção de tantos outros. Em geral, não se prendem à intencionalidade do agente. Daí por que é possível, no caso concreto, verificar-se que a parte agiu de maneira desleal, posto que movida por boas intenções.

Não se pode confundir o princípio (norma) da boa-fé com a exigência de boa-fé (elemento subjetivo) para a configuração de alguns atos ilícitos processuais, como o manifesto propósito protelatório, apto a permitir a antecipação dos efeitos da tutela prevista no inciso II do art. 273 do CPC. A boa-fé subjetiva é elemento do suporte fático de alguns fatos jurídicos; é fato, portanto. A boa-fé objetiva é uma norma de conduta: impõe e proíbe condutas, além de criar situações jurídicas ativas e passivas. Não existe princípio da boa-fé subjetiva. (DIDIER JUNIOR, 2012, p. 72).
 
Portanto, em regra, as partes que vão a juízo encontram-se no terreno da disputa de interesses. Há conflito, oposição. Acreditar em cooperação "desinteressada, sempre na busca da melhor tutela jurisdicional possível, ainda que contrária aos seus interesses, é pensamento ingênuo e muito distante da realidade." (NEVES, 2011, p. 81). Logo, impõe-se identificar de que maneira o direito positivo brasileiro tratou de disciplinar o conflito de interesses, caracterizador da lide, sob o influxo dos princípios da boa-fé e lealdade processuais. 

3 - Deveres processuais no Código de Processo Civil e a doutrina brasileira do "contempt of court"

Ao examinar o direito positivo brasileiro, nota-se que o legislador, atento ao núcleo ético do processo, corolário dos princípios da boa-fé e da lealdade, optou por estabelecer um rol de obrigações impostas àqueles que, de qualquer modo, participam da marcha processual. Sendo assim, coube ao art. 14 do Código de Processo Civil a previsão dos chamados "deveres processuais". Ei-lo in verbis:


Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:

 I - expor os fatos em juízo conforme a verdade;

II - proceder com lealdade e boa-fé;

III - não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento;

IV - não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.

V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.
 
Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.

Observa-se, já de início, que a cabeça do artigo entra em choque com o nome do capítulo onde se insere no Código ("Dos deveres das partes e dos procuradores"). O motivo é que a sua redação original foi alterada pela Lei 10.358/01, quando o legislador houve por bem não mais restringir os deveres elencados no art. 14 às partes e aos seus procuradores, ampliando-os de maneira a abranger "todos aqueles que de qualquer forma participam do processo". Significa dizer que, hodiernamente, além das partes e dos seus procuradores, também os terceiros intervenientes, os membros do Ministério Público, os peritos, testemunhas, servidores do Poder Judiciário etc. estão submetidos aos compromissos éticos expostos naquele dispositivo de lei (o nome do capítulo II do Título II do CPC perdeu sua referência na sistemática organizacional da codificação).   

Dentre os deveres elencados no art. 14 do CPC, quero recortar o inc. V, inserido pela mesma lei que alterou o caput do dispositivo. Nos termos desse inciso, são deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo "cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final".

Da leitura do inc. V do art. 14 do CPC, é possível notar que o legislador impôs um duplo dever às personagens atuantes no processo: de um lado, exige-se que as ordens emitidas pelo Estado-juiz (provimentos mandamentais) sejam observadas em sua inteireza; de outro, determina-se erga omnes a abstenção de quaisquer atos que possam inviabilizar o cumprimento das decisões judiciais, sejas elas finais ou meramente antecipatórias. 

Debruçando-se sobre o conteúdo do inc. V do art. 14 do CPC, Marcos Vinícius Rios Gonçalves (2011, p. 179, grifo do autor) ensina que
     
Os provimentos mandamentais são aqueles em que o juiz emite uma ordem, determinando a alguém que faça ou deixe de fazer alguma coisa. Por isso, a determinação do art. 14, V, do CPC mantém estreita correlação com os arts. 461 e 461-A, que tratam das ações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa. A sentença condenatória, nesse tipo de ação, tem caráter mandamental, pois impõe ao réu uma ordem. A obrigação de cumprir os provimentos mandamentais é dirigida apenas às partes, porque o provimento jurisdicional diz respeito apenas a elas.
 
A segunda obrigação é de não criar embaraço aos provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Ela não é dirigida apenas às partes, mas a todos quantos possam, de alguma maneira, dificultar ou retardar o cumprimento dos provimentos. Mesmo aqueles que não participam do processo podem violar essa obrigação

Interpretando a finalidade que orientou a inclusão do inc. V ao art. 14 do CPC, parece-me crível conceber que o legislador tenha querido acrescentar um plus aos mecanismos que circundam a efetividade da tutela jurisdicional. Até porque um processo que não é efetivo não é um processo devido e, consequentemente, não se encontra nucleado junto aos direitos fundamentais. Sendo assim, como o inc. V está a resguardar a efetividade do processo, há de se concluir que ele haveria de punir os procedimentos atentatórios ao exercício da jurisdição. 

É justamente aí que se materializa a doutrina do contempt of court no Brasil. Trata-se de pensamento importado do direito alienígena, mais precisamente dos sistemas adeptos do common law, onde o desacato a decisões judiciais é objeto de reprimendas processuais, na medida em que fulmina, a um só tempo, tanto o direito à tutela jurisdicional efetiva, que o devido processo legal quer assegurar à parte vencedora, como também a própria autoridade do Estado-juiz no tocante à sua capacidade heterônoma.

Trata-se o instituto, em sua essência, de microssistema normativo composto por regras e princípios que vêm a garantir a boa administração da justiça e o prestígio do Poder Judiciário. Tem o condão de regrar os atos tidos por contempt of court, os quais representam, literalmente, o "desprezo à corte, ou ainda desacato ao tribunal, conduta que constitui ofensa púnível de diversas maneiras". (BRAGA, [ca. 2010], p.3).

Nesse contexto, a doutrina do contempt of court desenvolveu-se no direito comparado, objetivando não deixar o Estado-juiz desapercebido de mecanismos assecuratórios do funcionamento regular do Poder Judiciário, sobretudo ante a necessidade de que seja prestada uma tutela jurisdicional efetiva. Disso resulta a previsão da multa por ato atentatório ao exercício da jurisdição, prevista expressamente no parágrafo único do art. 14 do CPC. Com isso, quer-se evitar a ruína da credibilidade das instituições de justiça perante os jurisdicionados, o que poderia engendrar perigoso retrocesso social às priscas eras da vindita privada
       
4 - Multa por contempt of court: o caso dos advogados privados

A exegese do art. 14 do CPC apresenta ainda outra característica curiosa na sistemática dos deveres processuais estipulados no direito positivo brasileiro. Refiro-me a uma diferença de sanção processual. Entenda-se: enquanto a inobservância dos deveres inscritos nos inc. I a IV importarão a responsabilidade do infrator à luz das normas dos arts. 16 a 18 do Código - regras que se reportam ao dano processual, como na hipótese do litigante de ma-fé -, a violação do inc. V do art. 14 do CPC, isto é, o contempt of court implica, ao seu turno, uma sanção específica, que é aquela insculpida no parágrafo único. Interpretando-o, hemos de concluir que, no direito processual civil brasileiro, a prática de ato atentatório ao exercício da jurisdição faculta ao juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa. Por outras palavras, a sanção processual específica reservada ao contempt of court brasileiro consubstancia-se em uma multa, de natureza administrativa, imputável às partes, bem como a todos aqueles que, no curso do processo, portam-se de maneira a atentar contra a dignidade da jurisdição.

Relevante consequência desse raciocínio é a determinação de ser o Estado o credor do valor da multa e não a parte contrária, como ocorre com todas as demais multas previstas pelo Código de Processo Civil por atos de deslealdade e má-fé processual. (NEVES; FREIRE; 2012, p. 42-43).


Logicamente, o legislador instituiu o parágrafo único do art. 14 do CPC na condição de sanção à improbidade de conduta, resultado da inobservância dos princípios da boa-fé e da lealdade processuais, que se materializam na ação de todos aqueles que participam da marcha processual e vêm a prejudicar a efetividade na entrega da tutela pleiteada perante o Estado-juiz. Porém, é preciso tomar cuidado: a generalização do “contempt of court”, levada a efeito pela Lei 10.358/01, alterando o caput art. 14 do CPC, não é absoluta. A própria redação do dispositivo consigna que não se sujeitam à multa punitiva os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB. Essa exclusão, por sinal, decorre de longa tradição no direito brasileiro, onde o controle disciplinar dos advogados dá-se mediante a intervenção da Ordem dos Advogados do Brasil, e não do Estado-juiz. Logo após a reforma da Lei 10.358/01, o magistério doutrinário já era preponderante nesse sentido:
 
 Insta anotar, destarte, que o advogado ou advogados de um dos litigantes não poderão ser atingidos pela sanção aí preconizada. Não obstante, o juiz poderá entender serem eles responsáveis pelo descumprimento dos provimentos mandamentais ou pelo entrave colocado à efetivação de decisão de natureza antecipatória ou final.
 
Machado Guimarães, exortando os juízes para a sobriedade no trato com os advogados, aconselha evitar qualquer espécie explícita de censura na fundamentação dos atos decisórios. A falta profissional grave, inclusive aquela passível de ser emoldurada nos quadrantes do novo art. 14, quando detectada pelo magistrado, deve ser comunicada à Ordem dos Advogados do Brasil para as devidas providências. (CRUZ E TUCCI, 2002, p. 65).  
 
Há doutrinadores, todavia, que, divergindo do pensamento majoritário, sustentam haver inconstitucionalidade, por violação à isonomia, na ressalva contida na parte inicial da redação do parágrafo único do art. 14 do CPC. Marcos Vinícius Rios Gonçalves (2011, p. 179-180) exemplifica bem esse raciocínio:

A obrigação de cumprir o provimento mandamental só é imposta às partes; a de não criar embaraço aos provimentos judiciais é dirigida às partes, ao Ministério Público, aos intervenientes, e a eventuais terceiros a quem sejam impostas as determinações judiciais. Só não pode ser aplicada ao advogado, por força de ressalva expressa no dispositivo legal, acrescentada ao projto originário, por força de pressão de entidades de classe dos advogados, ressalva de duvidosa constitucionalidade, já que, por eximir tão somente a eles das sanções por descumprimento de determinações judiciais, ofende o princípio da isonomia.  

Independentemente das divergências, o fato é que a lei previu a inaplicabilidade da multa por contempt of court aos advogados. Por coseguinte, essa classe específica de profissionais está excluída das penas oriundas do preceito sancionatório inscrito no parágrafo único do art. 14 do CPC.

5 - Multa por contempt of court: o caso dos advogados públicos

Mas a discussão doutrinária não se encerrou por aí. A péssima redação empregada pelo legislador na ressalva contida na parte inicial do parágrafo único do art. 14 do CPC suscitou funda divergência quanto aos limites a que estaria adstrita a regra que imunizou os profissionais da advocacia quanto à sanção por contempt of court. O motivo foi o uso do advérbio "exclusivamente", o qual permite, em uma primeira leitura, concluir que apenas os advogados cujo exercício profissional fosse unicamente regido pelo Estatuto da OAB (Lei 8.906/94) estariam excluídos da multa por atentado à dignidade da jurisdição.

Essa interpretação - perfeitamente defensável à luz da letra da lei, aliás - gerou o risco de discrepância inconteste quanto ao tratamento a ser dispensado aos advogados públicos. Estes, como é cediço, no exercício da profissão,  não se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, pois devem obediência funcional também às normas de conduta própria dos servidores públicos - incluindo os respectivos estatutos funcionais da carreira.
 
Naturalmente, o busílis foi bater na porta do principal tribunal do País, tendo sido levada ao STF por meio do ajuizamento da ADI 2.652/DF. Nessa oportunidade, a Corte Suprema firmou o entendimento que abaixo reproduzo:
 
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO AO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 14 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, NA REDAÇÁO DADA PELA LEI 10358/2001. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1. Impugnação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil, na parte em que ressalva "os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB" da imposição de multa por obstrução à Justiça. Discriminação em relação aos advogados vinculados a entes estatais, que estão submetidos a regime estatutário próprio da entidade. Violação ao princípio da isonomia e ao da inviolabilidade no exercício da profissão. Interpretação adequada, para afastar o injustificado discrímen.
2. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente para, sem redução de texto, dar interpretação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil conforme a Constituição Federal e declarar que a ressalva contida na parte inicial desse artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também a outros regimes jurídicos.” (ADI nº 2.652/DF, Relator o Ministro Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ de 14/11/2003).


Portanto, o STF, utilizando-se de interpretação conforme - que é técnica de controle de constitucionalidade empregada para conferir à norma um sentido compatível com a Constituição, de modo a reduzir o âmbito de sua aplicação sem que se altere o respectivo texto -, entendeu que não só advogados privados estão abrangidos pela ressalva da parte inicial do parágrafo único do art. 14 do CPC, mas também os advogados públicos estão excluídos da multa por “contempt of court”. Ou seja, para a Corte Suprema brasileira, todos os advogados, sejam eles públicos ou privados, não se encontram submetidos, na condução do processo, ao poder sancionador do juiz baseado no desacato ao Poder Judiciário.

Logo, eventual prática de ato atentatório ao exercício da jurisdição, que venha a ser constatada na conduta de profissional da advocacia, deverá ser comunicada ao respectivo órgão de classe (OAB), a fim de que este apure a prática de infração disciplinar. Mas não cabe impor multa ao causídico que age de modo ímprobo, em face de o advogado estar, consoante a decisão supracitada, expressamente excluído da sanção processual por contempt of court prevista no parágrafo único do art. 14 do CPC.

6 - Conclusão

No fundo, o que o STF declarou, ao dar interpretação conforme ao parágrafo único do art. 14 do CPC, é que o legislador brasileiro "esqueceu", na redação do dispositivo em comento, de que, além dos advogados privados, há também os públicos, que não se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB. Mas o fato de não se submeterem, de modo exclusivo, aos regramentos do respectivo órgão de classe, devendo obediência igualmente aos estatutos do serviço público, não os exclui da norma processual que imunizou a advocacia da multa por "contempt of court".

Desse modo, consoante o entendimento esposado pelo STF, é preciso interpretar a ressalva "os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB", contida na redação do parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil, de maneira ampla, para abranger todos os advogados, estejam eles a atuar na advocacia privada ou na pública  independentemente de estes últimos se sujeitarem a estatutos funcionais próprios de suas respectivas carreiras no serviço público.     

REFERÊNCIAS
BRAGA, Paula Sarno. O parágrafo único do art. 14 do CPC e a multa punitiva imputada aos infratores do dever processual previsto no inciso V: um contempt of court à brasileira. Salvador, [ca. 2010]. Disponível em: www.didiersodrerosa.com.br. Acesso em: 04 dez. 2012.

CRUZ E TUCCI, José Roberto. Repressão ao dolo processual: o novo art. 14 do CPC. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 91, n. 798, p. 65-77, abr. 2012.

DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento, vol. 1. 14ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 643 p.

GONÇALVES, Marcos Vinícius Rios. Direito processual civil esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. 880 p.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção; FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Código de Processo Civil para concursos: doutrina, jurisprudência e questões de concursos. De acordo com a Lei 12.398/2011. 3ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. 1101 p.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil: volume único. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. 1484 p.