quinta-feira, 27 de junho de 2013

A TEORIA DO "STARE DECISIS" NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO: considerações sobre o efeito vinculante dos precedentes judiciais no direito jurisprudencial contemporâneo


 
1 - Introdução

A teoria do stare decisis relaciona-se com o brocardo latino stare decisis et non quieta movere ("mantenha-se a decisão e não ofenda o que foi decidido"). Juridicamente, o emprego da expressão denota que os precedentes firmados por um tribunal superior são vinculantes para todos os órgãos jurisdicionais inferiores dentro de uma mesma jurisdição. Trata-se de uma teoria típica dos sistemas judiciais que valorizam sobremaneira a força dos precedentes. Assim, por exemplo, pelo stare decisis, uma decisão da Corte Suprema tem capacidade de vincular todos os demais juízes e tribunais. Essa é a regra geral, mas que não impede a existência de exceções dentro do próprio sistema de precedentes.

No plano da técnica do controle de constitucionalidade, o stare decisis remete ao peso que os precedentes devem assumir quando da prolação de decisões pelas cortes constitucionais. A ideia é fomentar a consciência de que o direito é carecedor de segurança jurídica, cabendo à Constituição servir como pedra fundamental do edifício normativo. Logo, é razoável supor que tanto mais segurança haverá quanto menos divergentes forem as decisões entre um e outro juízo relativamente à interpretação do texto constitucional acerca de fatos assemelhados. Numa palavra: o stare decisis representa o rechaço à arbitrariedade dos juízes na interpretação da Constituição.  

2 - A teoria do stare decisis no controle de constitucionalidade do Brasil e dos Estados Unidos

No controle de constitucionalidade dos Estados Unidos da América, a adoção da teoria do stare decisis acarreta algumas consequências peculiares. A mais relevante delas consiste no fato de que eventual declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no caso concreto, será capaz de vincular os demais juízes e tribunais ao decidido, ainda que a decisão tenha sido tomada em apreciação de um litígio específico.

Disso resulta que a decisão proferida pela Suprema Corte é obrigatória para todos os juízes e tribunais. E, portanto, a declaração de inconstitucionalidade em um caso concreto traz como consequência a não aplicação daquela lei a qualquer outra situação, porque todos os tribunais estarão subordinados à tese jurídica estabelecida. De modo que a decisão, não obstante referir-se a um litígio específico, produz efeitos gerais, em face de todos (erga omnes). (BARROSO, 2012, p. 71). 

Dessa maneira, o stare decisis afirma-se, no controle de constitucionalidade estadunidense, como meio destinado a garantir a segurança jurídica do sistema normativo ao forçar a coerência entre o pensamento dos juízes e dos tribunais (com destaque especial para a Corte Suprema). Acorde com essa teoria, é conveniente evitar decisões conflitantes diante de casos análogos, de modo que a atividade judicial, em princípio, fica subordinada à ratio decidendi (tese jurídica) consubstanciada no núcleo do precedente vinculante.

Em se tratando de lei que tenha sido considerada inválida no controle de constitucionalidade brasileiro, o stare decisis teria a função de garantir a autoridade da ratio decidendi do julgado em matéria constitucional. Com isso, ampliar-se-ia a paralisia da eficácia normativa do ato inconstitucional para abranger situações análogas que, indo de encontro à tese jurídica consolidada, eventualmente demandassem a incidência da norma eivada de vício.  

Comparando o controle difuso de constitucionalidade no Brasil e nos Estados Unidos, Marcelo Novelino (2012, p. 265) escreve que  

Nos Estados Unidos, onde surgiu essa espécie de controle de constitucionalidade, atribui-se o devido peso aos precedentes dos tribunais superiores (stare decisis), considerados vinculantes para os tribunais inferiores (binding effect). Diferente, portanto, do que ocorre no Brasil, onde as decisões proferidas no controle difuso, em tese, têm apenas efeitos inter partes e não vinculam os juízes e tribunais inferiores.

A menção feita pelo autor ao binding effect reporta-se à classificação dicotômica dos efeitos do stare decisis. Com efeito, segundo essa vertente do pensamento doutrinário, a vinculação obrigatória aos precedentes judiciais apresenta-se de duas formas:

a) stare decisis horizontal: a ratio decidendi firmada no precedente é de observância obrigatória pelo tribunal que a formulou, isto é, o tribunal deve obediência aos seus próprios precedentes; 
     
b) stare decisis vertical (binding effect): a ratio decidendi firmada no precedente é de observância obrigatória pelos tribunais hierarquicamente inferiores.

É preciso salientar que a classificação dicotômica - que separa o stare decisis em horizontal e vertical - é apenas uma das possíveis correntes do pensamento doutrinário sobre o assunto. Posto que a mais conhecida, há juristas que dela divergem, buscando diferenciar o conceito de stare decisis do de precedent, como anota Marinoni (2011, p. 27):

De regra, o termo stare decisis significa tanto a vinculação, por meio do precedente, em ordem vertical (ou seja, como representação da necessidade de uma Corte inferior respeitar decisão pretérita de Corte superior), como horizontal (a Corte respeitar decisão anterior proferida no seu interior, ainda que a constituição dos juízes seja alterada). Esta é a posição adotada, entre outros, por Neil Duxbury e Melvin Aron Eisenberg. Em outra senda, há aqueles que optam por distinguir o termo stare decisis de precedent, como Frederik Schauer, para quem, "tecnicamente, a obrigação de uma corte de seguir decisões prévias da mesma corte é dita como sendo stare decisis (...), e o termo mais abrangente precedent é usado para se referir tanto à stare decisis, quanto à obrigação de uma corte inferior de seguir decisões de uma superior."  

Adaptando-se o stare decisis anglo-saxão ao Brasil, é possível identificar, mutatis mutandis, alguns elementos da doutrina que advoga a vinculação obrigatória dos precedentes judiciais no controle de constitucionalidade brasileiro. A título de exemplo, o stare decisis em sentido horizontal corresponderia à coisa julgada erga omnes em matéria constitucional, na medida em que impede a rediscussão da matéria pelo Supremo Tribunal Federal (MARINONI, 2007). Já o stare decisis em sentido vertical (ou binding effect) corresponderia ao efeito vinculante que emana das decisões prolatadas pelo STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade, o que permitiria indicar sua previsão no § 2º do art. 102 da Constituição:

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Seja como for, no Brasil ou nos Estados Unidos, o mote inspirador do stare decisis não muda: é preciso respeitar a autoridade das decisões pretéritas, isto é, do direito jurisprudencial.  

3 - A influência da teoria do stare decisis nas tradições da common law e da civil law

É relevante assinalar que a teoria do stare decisis é uma construção doutrinária tipicamente associada aos modelos judiciais adeptos da tradição da common law. A associação é correta, uma vez que tais sistemas jurídicos estruturam-se derredor do respeito à eficácia vinculante (e não meramente persuasiva, isto é, que não obriga os juízes) dos precedentes judiciais. Contudo, tal constatação não pode conduzir ao equívoco de se considerar que o funcionamento da common law depende integralmente do stare decisis. Na verdade, a pesquisa histórica revela que a tradição da common law é bem anterior à doutrina dos precedentes. Como anota Luiz Guilherme Marinoni (2011, p. 33),

[...] não há que se confundir common law com stare decisis. Ora, o common law, compreendido como os costumes gerais que determinavam o comportamento dos Englishmen, existiu, por vários séculos, sem stare decisis e rule of precedent.
 
Como escreve Simpson, qualquer identificação entre o sistema do common law e a doutrina dos precedentes, qualquer tentativa de explicar a natureza do common law em termos de stare decisis, certamente será insatisfatória, uma vez que a elaboração de regras e princípios regulando o uso dos precedentes e a determinação e aceitação da sua autoridade são relativamente recentes, para não se falar da noção de precedentes vinculantes (binding precedents), que é mais recente ainda. Além de o common law ter nascido séculos antes de alguém se preocupar com tais questões, ele funcionou muito bem como sistema de direito sem os fundamentos e conceitos próprios da teoria dos precedentes, como, por exemplo, o conceito de ratio decidendi.       
 
A observação de Marinoni, com apoio na doutrina estrangeira, permite concluir que o direito inglês, fundado no sistema da common law, não dependeu historicamente do stare decisis para regular as relações sociais. Em consequência disso, é aceitável compreender a doutrina dos precedentes, especialmente os de caráter obrigatório, qual uma técnica discernível e assimilável até mesmo pelo sistema da civil law.  

Essa aproximação entre as tradições anglo-saxã (common law) e romano-germânica (civil law), a permitir a aplicação do stare decisis em sistemas nos quais a eficácia do precedente sempre foi eminentemente persuasiva (não vinculante), tem influenciado incontestavelmente o direito brasileiro. A impressão é a de que o legislador, no afã de realizar a distribuição eficiente da justiça em prazo razoável, tem optado cada vez mais pela adoção de técnicas que estimulem o efeito vinculante dos precedentes. Dessa maneira, evita-se um duplo inconveniente: o da insegurança jurídica (potencialidade de decisões conflitantes) e o da perda da força normativa da Constituição (consequência do vitupério às teses jurídicas consolidadas no STF).

Nesse sentido, Didier (2012, p. 393) exemplifica hipóteses em que o legislador brasileiro dá sinais claros de sua progressiva simpatia pela teoria do stare decisis:

No Brasil, há algumas hipóteses em que os precedentes têm força vinculante - é dizer, em que a ratio decidendi contida na fundamentação de um julgado tem força vinculante: (i) a "súmula vinculante" em matéria constitucional, editada pelo Supremo Tribunal Federal na forma do art. 103-A, da Constituição Federal, e da Lei Federal 11.417/2006, tem eficácia vinculante em relação ao próprio STF, a todos os demais órgãos jurisdicionais do país e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal; [...] (ii) o entendimento consolidado na súmula de cada um dos tribunais tem força vinculante em relação ao próprio tribunal; (iii) em função da "objetivação" do controle difuso de constitucionalidade, pensamos que os precedentes oriundos do Pleno do Supremo Tribunal Federal, em matéria de controle difuso de constitucionalidade, ainda que não submetidos ao procedimento de consolidação em súmula vinculante, têm força vinculante em relação ao próprio STF e a todos os demais órgãos jurisdicionais do país; (iv) decisão que fixa a tese para os recursos extraordinários ou especiais repetitivos (arts. 543-B e 543-C, CPC).  

Sobre a estreita relação que há entre o stare decisis e a eficácia vinculante das súmulas do STF, André Ramos Tavares (2007 apud LENZA, 2012, p. 799) leciona que 

o chamado precedente (stare decisis) utilizado no modelo judicialista, é o caso já decidido, cuja decisão primeira sobre o tema (leading case) atua como fonte para o estabelecimento (indutivo) de diretrizes para os demais casos a serem julgados. Esse precedente, como o princípio jurídico que lhe servia de pano de fundo, haverá de ser seguido nas posteriores decisões como paradigma (ocorrendo, aqui, portanto, uma aproximação com a ideia de súmula vinculante brasileira).

Logo se percebe que não são poucos os instrumentos disponíveis no ordenamento jurídico do País para assegurar a prevalência das decisões tomadas pela Suprema Corte.

4 - Conclusão

Todas essas observações ilustram o que parece ser uma tendência irrefreável do direito  jurisprudencial contemporâneo: o reconhecimento do efeito vinculante dos precedentes judiciais. É por esse motivo que há cada vez mais uma aproximação, no sentido de uma influência recíproca, dos modelos da common law e da civil law. Este último deixa-se influenciar acentuadamente pela doutrina que preconiza que seja dado o devido peso aos precedentes judiciais (doutrina dos precedentes), a impor um ideal de segurança jurídica identificado com a necessidade de congruência do direto jurisprudencial como um todo. Nessa toada, a teoria do stare decisis, que pressupõe o efeito vinculante (obrigatório) dos precedentes judiciais, é perfeitamente aplicável no Brasil. 

Em relação à sua aplicação ao controle de constitucionalidade brasileiro, a teoria do stare decisis coaduna-se com o ideário neoconstitucionalista, que inclui entre suas diretrizes o reconhecimento da força normativa da Constituição, ao não permitir que os fundamentos inspiradores das decisões do Supremo Tribunal Federal sejam desrespeitados pelos órgãos jurisdicionais hierarquicamente inferiores. Desse modo, creio seja correto associar a supremacia do texto constitucional, entre outros fatores, à estabilidade das decisões que o interpretam - o que quer dizer que a teoria do stare decisis, quando aplicada ao controle de constitucionalidade, cumpre ainda a relevante função de incentivar uma desejável uniformidade interpretativa da Constituição tendo por parâmetro a jurisprudência do STF.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 27 de jun. 2013.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 5º ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. 452 p.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16º ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. 1312 p.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2º ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 542 p.

______. Ações repetitivas e julgamento liminar. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 96, v. 858, p. 11-18, abr. 2007.  

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6º ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012. 1134 p.  

sexta-feira, 14 de junho de 2013

RT Comenta: PROCESSO CIVIL


Prova: Advogado BNDES 2013
Tipo: Objetiva
Banca:

Na postagem de hoje, comentarei uma questão de Processo Civil relacionada ao importante tema da competência, mais precisamente sobre competência internacional concorrente. O leitor notará novamente o meu cuidado em reproduzir a literalidade de cada um dos dispositivos citados. Com isso, poupo-o da consulta ao texto de lei, de modo a contribuir ainda mais para a didática do meu escrito.

1 - Questão 47

Um contrato de empreitada para a construção de quatro navios foi concluído, por razões fiscais e de captação de financiamentos, entre as subsidiárias estrangeiras da empresa brasileira e do estaleiro brasileiro que construirá os navios. O contrato, assinado em Londres, indica as leis brasileiras como aplicáveis e Londres como foro exclusivo do contrato. Em decorrência do atraso desmedido na entrega do primeiro navio, a empresa contratante rescinde o contrato e ingressa em juízo no Brasil, pleiteando do estaleiro, cuja sede é em Niterói, RJ, a devolução dos pagamentos já feitos.

O estaleiro pode requerer a extinção do feito, por incompetência da justiça brasileira?

(A)  Sim, em razão da existência de cláusula de foro exclusivo.

(B)   Sim, em razão do forum non conveniens.

(C)  Sim, porque o contrato foi assinado no exterior.

(D)  Não, porque o contrato seria cumprido no Brasil.

(E) Não, porque o contrato é regido pelo direito brasileiro.

No Direito Processual Civil, competência é tema de extrema importância. Isso se revela já pela constatação de sua qualidade de pressuposto processual, categoria conceitual utilizada pela doutrina para divisar as matérias preliminares sem as quais a relação jurídica processual não se aperfeiçoa, impedindo a apreciação do mérito pelo juiz. Tal é o caso da regra de competência absoluta, pressuposto processual de validade que, uma vez não observado, implica nulidade dos atos decisórios praticados pelo juiz incompetente, consoante prescreve o art. 113, § 2º, do CPC:

Art. 113. A incompetência absoluta deve ser declarada de ofício e pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de exceção.

§ 1º Não sendo, porém, deduzida no prazo da contestação, ou na primeira oportunidade em que Ihe couber falar nos autos, a parte responderá integralmente pelas custas.

§ 2º Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente.

Mas competência é um tema complexo, sobretudo pela possibilidade de uma mesma causa ser conhecida por vários foros, todos, em tese, igualmente competentes para a apreciação do feito. Nota-se que, muita vez, o Código de Processo Civil abriga regras que facultam ao autor a escolha do foro competente. Eis algumas delas:

a) ações fundadas em direito real sobre imóveis: em regra, é competente o foro da situação da coisa. Mas a lei faculta ao autor a escolha entre os foros de domicílio ou de eleição, caso o litígio não recaia sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova, conforme prevê o art. 95 do CPC:

Art. 95. Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova.

b) ações de reparação do dano sofrido em razão de delito ou acidente de veículos: a lei faculta ao autor a escolha entre o seu próprio domicílio (domicílio do autor) ou o do local do fato, ambos igualmente competentes para o conhecimento da causa. É o que se lê no parágrafo único do art. 100 do CPC:

Art. 100. omissis
Parágrafo único. Nas ações de reparação do dano sofrido em razão de delito ou acidente de veículos, será competente o foro do domicílio do autor ou do local do fato.

c) na fase de cumprimento de sentença: a lei faculta ao exequente optar pela execução do título judicial perante o juízo do local onde os bens se encontram sujeitos à expropriação ou perante o juízo do domicílio do executado, consoante a norma do parágrafo único do art. 475-P do CPC:

Art. 475-P. O cumprimento da sentença efetuar-se-á perante:

I – os tribunais, nas causas de sua competência originária; 

II – o juízo que processou a causa no primeiro grau de jurisdição; 

III – o juízo cível competente, quando se tratar de sentença penal condenatória, de sentença arbitral ou de sentença estrangeira. 

Parágrafo único. No caso do inciso II do caput deste artigo, o exequente poderá optar pelo juízo do local onde se encontram bens sujeitos à expropriação ou pelo do atual domicílio do executado, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao juízo de origem.

Em se tratando de Processo Civil Coletivo, nas ações ajuizadas para a tutela de direitos individuais homogêneos, há regra específica para a fixação do foro competente, adotando-se o critério do âmbito do dano. Temos então:

a) dano de âmbito local: é competente a justiça local do foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano;

b) dano de âmbito nacional ou regional: é competente a justiça local do foro da capital do Estado ou o do Distrito Federal.

Nesse sentido, dispõe o art. 93 do CDC:

Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:

I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;

II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.

Todas essas observações revelam a já natural complexidade da matéria. Não obstante, ainda é possível piorá-la. Basta pensar nas causas oriundas de relações privadas, a envolver pessoas naturais e jurídicas, com conexão internacional, para o deslinde das quais haja a concorrência de foros internacionais - todos, em princípio, igualmente competentes. Aí a dificuldade é tamanha que o Direito desenvolveu uma disciplina autônoma para lidar com o assunto: trata-se do Direito Internacional Privado, que não é ramo do Direito Internacional Público, mas se presta a regular determinados aspectos das relações internacionais, especialmente aqueles que envolvam conflitos de leis no espaço. Nessa matéria, o que importa é a definição da norma de direito aplicável (se a nacional ou a estrangeira) às relações jurídicas cujos efeitos ultrapassam as fronteiras dos países envolvidos.

Para todos esses casos, vige, no Direito Processual, o chamado princípio da territorialidade. Isto é, o Estado está autorizado a aplicar, nos limites do seu próprio território, o direito nacional. Trata-se de vetor ligado à soberania estatal, mas que deve comportar temperamentos, máxime no cenário de um mundo globalizado.

É nesse contexto que devem ser compreendidas as regras de competência internacional estabelecidas no Código de Processo Civil brasileiro. São normas que subtraem dos países estrangeiros a jurisdição, tomada no prisma de julgar determinadas demandas em caráter definitivo (aptidão para a formação da coisa julgada material, com força de lei, imutável e indiscutível, que é corolário do ideal de segurança jurídica).

Basicamente, o art. 88 do CPC estipula as regras aplicáveis a relações jurídicas com conexão internacional, no bojo das quais é admissível pensar em foros concorrentes (ou cumulativos) para o conhecimento da causa. Fala-se em competência concorrente, na medida em que tanto o juiz brasileiro quanto o juiz alienígena são competentes para o julgamento da demanda. Eis a norma:          

Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:

I - o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;

II - no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;

III - a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil.

Parágrafo único. Para o fim do disposto no nº I, reputa-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver agência, filial ou sucursal.

Já no art. 89, o legislador aduz as regras do CPC aplicáveis às situações em que somente o juiz brasileiro é competente para o conhecimento da causa, daí a doutrina falar que se trata de regra de competência exclusiva. Vamos dar uma olhada nesse dispositivo também:

Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:

I - conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil;

II - proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional.

Por fim, o regramento da competência internacional, no âmbito do Processo Civil brasileiro, encerra-se com a norma do art. 90 do CPC. Vejamo-la: 

Art. 90. A ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que Ihe são conexas.

A regra do art. 90 claramente afasta a eficácia da litispendência, que é pressuposto processual objetivo extrínseco, atrelado à validade da relação jurídica. A litispendência é um fenômeno do processo que ocorre nas hipóteses de coexistência de demandas em curso e com elementos idênticos (mesmas partes, mesma causa de pedir, mesmo pedido), de acordo com o §§ 2º e 3º do art. 301 do CPC:   

Art. 301. omissis
 
§ 2º Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. 

§ 3º Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.

Note o leitor que minha alusão às regras do CPC é proposital. Isso porque o tema da competência internacional não se esgota nas disposições do códex. Há regras alhures, como no caso do Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), cujo art. 12 prescreve o seguinte:    

Art. 12.  É competente a autoridade judiciária brasileira, quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação.

§ 1º  Só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis situados no Brasil.
 
§ 2º A autoridade judiciária brasileira cumprirá, concedido o exequatur e segundo a forma estabelecida pele lei brasileira, as diligências deprecadas por autoridade estrangeira competente, observando a lei desta, quanto ao objeto das diligências.
 
Essas são premissas que dão embasamento teórico à matéria objeto de cobrança na questão 47 reproduzida no início deste escrito. Retomemos uma vez mais o seu texto:

47
Um contrato de empreitada para a construção de quatro navios foi concluído, por razões fiscais e de captação de financiamentos, entre as subsidiárias estrangeiras da empresa brasileira e do estaleiro brasileiro que construirá os navios. O contrato, assinado em Londres, indica as leis brasileiras como aplicáveis e Londres como foro exclusivo do contrato. Em decorrência do atraso desmedido na entrega do primeiro navio, a empresa contratante rescinde o contrato e ingressa em juízo no Brasil, pleiteando do estaleiro, cuja sede é em Niterói, RJ, a devolução dos pagamentos já feitos.

O estaleiro pode requerer a extinção do feito, por incompetência da justiça brasileira?

(A)  Sim, em razão da existência de cláusula de foro exclusivo.

(B)   Sim, em razão do forum non conveniens.

(C)  Sim, porque o contrato foi assinado no exterior.

(D)  Não, porque o contrato seria cumprido no Brasil.

(E) Não, porque o contrato é regido pelo direito brasileiro.

O leitor pode observar que a questão trata sobre competência internacional, tendo como pano de fundo caso hipotético de conflito de leis no espaço, havendo divergências sobre a competência do juízo brasileiro frente ao inglês. A pergunta versa sobre as formalidades necessárias para o prosseguimento do processo, pois pressupõe dúvida quanto à competência absoluta - que, como vimos antes, é pressuposto processual subjetivo (ou requisito de validade). Trocando em miúdos, a pergunta poderia ser assim formulada: o réu, em sua contestação, antes de discutir o mérito, pode alegar preliminar de incompetência absoluta (CPC, art. 301, II), objetivando a declaração de nulidade de todos os atos decisórios do juízo absolutamente incompetente (CPC, art. 113, § 2º)?

A resposta é negativa.

O fundamento dessa conclusão extrai-se do regramento aplicável às hipóteses de competência internacional concorrente ou cumulativa, previstos no art. 88 do CPC. Nesse dispositivo, que já citei anteriormente, há norma específica, a dar conta de que o juízo brasileiro é competente sempre que a obrigação tiver de ser cumprida no Brasil (CPC, art. 88, II), independentemente do lugar onde tiver sido celebrado o contrato.

Tal é o caso hipotético apresentado na questão, onde se verifica existir um pacto contratual, firmado em Londres, que elegeu a capital inglesa como foro exclusivo do contrato. Ora, à luz do direito interno brasileiro, a cláusula de foro exclusivo não pode prevalecer, dado que a empreitada seria cumprida no Brasil (construção, pelo estaleiro, dos navios). Essa circunstância atrai a regra competencial que permite à autoridade brasileira conhecer da ação em casos nos quais a obrigação tiver de ser cumprida no Brasil (CPC, art. 88, II c/c art. 12, caput, in fine, da LINDB). Tampouco há que se falar em aplicação da teoria escocesa do forum non conveniens, já que não se cuida de hipótese permissiva de autocontrole de competência (o juiz não pode, a pretexto de controlar a própria competência, deixar de conhecer da causa, sob a alegação de abuso no exercício do direito potestativo de escolha do foro, reputado, assim, por motivos fáticos ou de direito, o foro estrangeiro como o mais adequado ao julgamento da lide).

Conclusão: a alternativa correta é a letra D.