sexta-feira, 14 de junho de 2013

RT Comenta: PROCESSO CIVIL


Prova: Advogado BNDES 2013
Tipo: Objetiva
Banca:

Na postagem de hoje, comentarei uma questão de Processo Civil relacionada ao importante tema da competência, mais precisamente sobre competência internacional concorrente. O leitor notará novamente o meu cuidado em reproduzir a literalidade de cada um dos dispositivos citados. Com isso, poupo-o da consulta ao texto de lei, de modo a contribuir ainda mais para a didática do meu escrito.

1 - Questão 47

Um contrato de empreitada para a construção de quatro navios foi concluído, por razões fiscais e de captação de financiamentos, entre as subsidiárias estrangeiras da empresa brasileira e do estaleiro brasileiro que construirá os navios. O contrato, assinado em Londres, indica as leis brasileiras como aplicáveis e Londres como foro exclusivo do contrato. Em decorrência do atraso desmedido na entrega do primeiro navio, a empresa contratante rescinde o contrato e ingressa em juízo no Brasil, pleiteando do estaleiro, cuja sede é em Niterói, RJ, a devolução dos pagamentos já feitos.

O estaleiro pode requerer a extinção do feito, por incompetência da justiça brasileira?

(A)  Sim, em razão da existência de cláusula de foro exclusivo.

(B)   Sim, em razão do forum non conveniens.

(C)  Sim, porque o contrato foi assinado no exterior.

(D)  Não, porque o contrato seria cumprido no Brasil.

(E) Não, porque o contrato é regido pelo direito brasileiro.

No Direito Processual Civil, competência é tema de extrema importância. Isso se revela já pela constatação de sua qualidade de pressuposto processual, categoria conceitual utilizada pela doutrina para divisar as matérias preliminares sem as quais a relação jurídica processual não se aperfeiçoa, impedindo a apreciação do mérito pelo juiz. Tal é o caso da regra de competência absoluta, pressuposto processual de validade que, uma vez não observado, implica nulidade dos atos decisórios praticados pelo juiz incompetente, consoante prescreve o art. 113, § 2º, do CPC:

Art. 113. A incompetência absoluta deve ser declarada de ofício e pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de exceção.

§ 1º Não sendo, porém, deduzida no prazo da contestação, ou na primeira oportunidade em que Ihe couber falar nos autos, a parte responderá integralmente pelas custas.

§ 2º Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente.

Mas competência é um tema complexo, sobretudo pela possibilidade de uma mesma causa ser conhecida por vários foros, todos, em tese, igualmente competentes para a apreciação do feito. Nota-se que, muita vez, o Código de Processo Civil abriga regras que facultam ao autor a escolha do foro competente. Eis algumas delas:

a) ações fundadas em direito real sobre imóveis: em regra, é competente o foro da situação da coisa. Mas a lei faculta ao autor a escolha entre os foros de domicílio ou de eleição, caso o litígio não recaia sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova, conforme prevê o art. 95 do CPC:

Art. 95. Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova.

b) ações de reparação do dano sofrido em razão de delito ou acidente de veículos: a lei faculta ao autor a escolha entre o seu próprio domicílio (domicílio do autor) ou o do local do fato, ambos igualmente competentes para o conhecimento da causa. É o que se lê no parágrafo único do art. 100 do CPC:

Art. 100. omissis
Parágrafo único. Nas ações de reparação do dano sofrido em razão de delito ou acidente de veículos, será competente o foro do domicílio do autor ou do local do fato.

c) na fase de cumprimento de sentença: a lei faculta ao exequente optar pela execução do título judicial perante o juízo do local onde os bens se encontram sujeitos à expropriação ou perante o juízo do domicílio do executado, consoante a norma do parágrafo único do art. 475-P do CPC:

Art. 475-P. O cumprimento da sentença efetuar-se-á perante:

I – os tribunais, nas causas de sua competência originária; 

II – o juízo que processou a causa no primeiro grau de jurisdição; 

III – o juízo cível competente, quando se tratar de sentença penal condenatória, de sentença arbitral ou de sentença estrangeira. 

Parágrafo único. No caso do inciso II do caput deste artigo, o exequente poderá optar pelo juízo do local onde se encontram bens sujeitos à expropriação ou pelo do atual domicílio do executado, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao juízo de origem.

Em se tratando de Processo Civil Coletivo, nas ações ajuizadas para a tutela de direitos individuais homogêneos, há regra específica para a fixação do foro competente, adotando-se o critério do âmbito do dano. Temos então:

a) dano de âmbito local: é competente a justiça local do foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano;

b) dano de âmbito nacional ou regional: é competente a justiça local do foro da capital do Estado ou o do Distrito Federal.

Nesse sentido, dispõe o art. 93 do CDC:

Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:

I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;

II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.

Todas essas observações revelam a já natural complexidade da matéria. Não obstante, ainda é possível piorá-la. Basta pensar nas causas oriundas de relações privadas, a envolver pessoas naturais e jurídicas, com conexão internacional, para o deslinde das quais haja a concorrência de foros internacionais - todos, em princípio, igualmente competentes. Aí a dificuldade é tamanha que o Direito desenvolveu uma disciplina autônoma para lidar com o assunto: trata-se do Direito Internacional Privado, que não é ramo do Direito Internacional Público, mas se presta a regular determinados aspectos das relações internacionais, especialmente aqueles que envolvam conflitos de leis no espaço. Nessa matéria, o que importa é a definição da norma de direito aplicável (se a nacional ou a estrangeira) às relações jurídicas cujos efeitos ultrapassam as fronteiras dos países envolvidos.

Para todos esses casos, vige, no Direito Processual, o chamado princípio da territorialidade. Isto é, o Estado está autorizado a aplicar, nos limites do seu próprio território, o direito nacional. Trata-se de vetor ligado à soberania estatal, mas que deve comportar temperamentos, máxime no cenário de um mundo globalizado.

É nesse contexto que devem ser compreendidas as regras de competência internacional estabelecidas no Código de Processo Civil brasileiro. São normas que subtraem dos países estrangeiros a jurisdição, tomada no prisma de julgar determinadas demandas em caráter definitivo (aptidão para a formação da coisa julgada material, com força de lei, imutável e indiscutível, que é corolário do ideal de segurança jurídica).

Basicamente, o art. 88 do CPC estipula as regras aplicáveis a relações jurídicas com conexão internacional, no bojo das quais é admissível pensar em foros concorrentes (ou cumulativos) para o conhecimento da causa. Fala-se em competência concorrente, na medida em que tanto o juiz brasileiro quanto o juiz alienígena são competentes para o julgamento da demanda. Eis a norma:          

Art. 88. É competente a autoridade judiciária brasileira quando:

I - o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;

II - no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;

III - a ação se originar de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil.

Parágrafo único. Para o fim do disposto no nº I, reputa-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver agência, filial ou sucursal.

Já no art. 89, o legislador aduz as regras do CPC aplicáveis às situações em que somente o juiz brasileiro é competente para o conhecimento da causa, daí a doutrina falar que se trata de regra de competência exclusiva. Vamos dar uma olhada nesse dispositivo também:

Art. 89. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:

I - conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil;

II - proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional.

Por fim, o regramento da competência internacional, no âmbito do Processo Civil brasileiro, encerra-se com a norma do art. 90 do CPC. Vejamo-la: 

Art. 90. A ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que Ihe são conexas.

A regra do art. 90 claramente afasta a eficácia da litispendência, que é pressuposto processual objetivo extrínseco, atrelado à validade da relação jurídica. A litispendência é um fenômeno do processo que ocorre nas hipóteses de coexistência de demandas em curso e com elementos idênticos (mesmas partes, mesma causa de pedir, mesmo pedido), de acordo com o §§ 2º e 3º do art. 301 do CPC:   

Art. 301. omissis
 
§ 2º Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. 

§ 3º Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.

Note o leitor que minha alusão às regras do CPC é proposital. Isso porque o tema da competência internacional não se esgota nas disposições do códex. Há regras alhures, como no caso do Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), cujo art. 12 prescreve o seguinte:    

Art. 12.  É competente a autoridade judiciária brasileira, quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação.

§ 1º  Só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis situados no Brasil.
 
§ 2º A autoridade judiciária brasileira cumprirá, concedido o exequatur e segundo a forma estabelecida pele lei brasileira, as diligências deprecadas por autoridade estrangeira competente, observando a lei desta, quanto ao objeto das diligências.
 
Essas são premissas que dão embasamento teórico à matéria objeto de cobrança na questão 47 reproduzida no início deste escrito. Retomemos uma vez mais o seu texto:

47
Um contrato de empreitada para a construção de quatro navios foi concluído, por razões fiscais e de captação de financiamentos, entre as subsidiárias estrangeiras da empresa brasileira e do estaleiro brasileiro que construirá os navios. O contrato, assinado em Londres, indica as leis brasileiras como aplicáveis e Londres como foro exclusivo do contrato. Em decorrência do atraso desmedido na entrega do primeiro navio, a empresa contratante rescinde o contrato e ingressa em juízo no Brasil, pleiteando do estaleiro, cuja sede é em Niterói, RJ, a devolução dos pagamentos já feitos.

O estaleiro pode requerer a extinção do feito, por incompetência da justiça brasileira?

(A)  Sim, em razão da existência de cláusula de foro exclusivo.

(B)   Sim, em razão do forum non conveniens.

(C)  Sim, porque o contrato foi assinado no exterior.

(D)  Não, porque o contrato seria cumprido no Brasil.

(E) Não, porque o contrato é regido pelo direito brasileiro.

O leitor pode observar que a questão trata sobre competência internacional, tendo como pano de fundo caso hipotético de conflito de leis no espaço, havendo divergências sobre a competência do juízo brasileiro frente ao inglês. A pergunta versa sobre as formalidades necessárias para o prosseguimento do processo, pois pressupõe dúvida quanto à competência absoluta - que, como vimos antes, é pressuposto processual subjetivo (ou requisito de validade). Trocando em miúdos, a pergunta poderia ser assim formulada: o réu, em sua contestação, antes de discutir o mérito, pode alegar preliminar de incompetência absoluta (CPC, art. 301, II), objetivando a declaração de nulidade de todos os atos decisórios do juízo absolutamente incompetente (CPC, art. 113, § 2º)?

A resposta é negativa.

O fundamento dessa conclusão extrai-se do regramento aplicável às hipóteses de competência internacional concorrente ou cumulativa, previstos no art. 88 do CPC. Nesse dispositivo, que já citei anteriormente, há norma específica, a dar conta de que o juízo brasileiro é competente sempre que a obrigação tiver de ser cumprida no Brasil (CPC, art. 88, II), independentemente do lugar onde tiver sido celebrado o contrato.

Tal é o caso hipotético apresentado na questão, onde se verifica existir um pacto contratual, firmado em Londres, que elegeu a capital inglesa como foro exclusivo do contrato. Ora, à luz do direito interno brasileiro, a cláusula de foro exclusivo não pode prevalecer, dado que a empreitada seria cumprida no Brasil (construção, pelo estaleiro, dos navios). Essa circunstância atrai a regra competencial que permite à autoridade brasileira conhecer da ação em casos nos quais a obrigação tiver de ser cumprida no Brasil (CPC, art. 88, II c/c art. 12, caput, in fine, da LINDB). Tampouco há que se falar em aplicação da teoria escocesa do forum non conveniens, já que não se cuida de hipótese permissiva de autocontrole de competência (o juiz não pode, a pretexto de controlar a própria competência, deixar de conhecer da causa, sob a alegação de abuso no exercício do direito potestativo de escolha do foro, reputado, assim, por motivos fáticos ou de direito, o foro estrangeiro como o mais adequado ao julgamento da lide).

Conclusão: a alternativa correta é a letra D.   

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