terça-feira, 30 de setembro de 2014

TRÁFICO DE DROGAS E UTILIZAÇÃO DE TRANSPORTE PÚBLICO: o novel posicionamento do STF e a revisão de entendimento do STJ quanto à incidência da causa de aumento do inc. III do art. 40 da Lei 11.343/06

Min. Néfi Cordeiro, relator do REsp 1.199.561/MS
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Na Teoria Geral da Pena, capítulo do estudo do Direito Penal, aprende-se que, encerrado o devido processo legal, compete exclusivamente ao juiz aplicar a sanção ao réu condenado por alguma infração. Deve proceder, portanto, à sua dosimetria, cujo pressuposto é a culpabilidade do agente.

Para o fim de autorizar a dosimetria, o Código Penal adotou o sistema trifásico - também conhecido como método Hungria - pelo qual “pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.” (CP, art. 68, caput).

Como se percebe, a fixação da pena no sistema trifásico está apoiada etapas sucessivas de raciocínio do magistrado, a saber: pena-base (1ª fase), pena intermediária (2ª fase) e pena definitiva (3ª fase). É nesta última que o juiz fará a aplicação das causas de aumento e diminuição de pena.

Logo, percebe-se que as causas de aumento (majorantes) e diminuição (minorantes) de pena auxiliam o magistrado no dever judicante de assegurar o direito fundamental do réu à individualização de sua pena (CF, art. 5º, XLVI). Elas podem ser encontradas tanto no texto codificada (Parte Geral e Parte Especial do Código Penal) quanto na legislação especial.

Exemplo de causa de aumento de pena prevista na legislação esparsa encontra-se na Lei de Drogas (Lei 11.343/06). Seu art. 40, III, traz a previsão seguinte:

Art. 40.  As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:
omissis
III - a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;
[...]

Ao interpretarem esse dispositivo, os tribunais brasileiros vinham controvertendo de maneira intensa quanto à incidência da majorante nos casos de tráfico de drogas praticado em transportes públicos. A disputa cuidava de saber se o percentual para a elevação da reprimenda aplicar-se-ia somente quando ficasse comprovada a intenção do agente de comercializar a droga no interior do veículo ou, ao contrário, seria suficiente à sua incidência a mera utilização do transporte público para carregar a prova material do tráfico.

A dissensão pretoriana intensificou-se de tal maneira que não tardou até que o Superior Tribunal de Justiça interviesse com o objetivo precípuo de uniformizar a a interpretação da lei federal. Com esse propósito, aos poucos, foi-se edificando no Tribunal o pensamento de que a incidência da majorante prevista no inc. III do art. 40 da Lei 11.343/06 dar-se-ia ante a mera utilização de transporte público pelo agente, que assim promove a circulação da droga.

Nesse sentido, colaciono os arestos a seguir:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS EM TRANSPORTE COLETIVO. ART. 40, III, DA LEI N. 11.343/2006. CAUSA DE AUMENTO. INCIDÊNCIA.
1. O Superior Tribunal de Justiça firmou a compreensão de que a mera utilização do transporte público como meio para realizar o tráfico de entorpecentes é suficiente à incidência da causa de aumento pertinente, que também se destinaria à repressão da conduta de quem se vale da maior dificuldade da fiscalização em tais circunstâncias para melhor conduzir a substância ilícita.
2. A aplicação do art. 40, III, da Lei n. 11.343/06, portanto, não se limita às hipóteses em que o agente oferece o entorpecente às pessoas que estejam se utilizando do transporte público.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STJ, T5 - Quinta Turma, AgRg no REsp 1.333.564/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 16/05/2013, p. DJe 23/05/2013).

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. TRANSPORTE PÚBLICO. INCIDÊNCIA DA MAJORANTE DO ART. 40, III, DA LEI Nº 11.343/06. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. Esta Corte firmou entendimento jurisprudência, no sentido de que a simples utilização de transporte público, para a circulação da substância entorpecente, é suficiente para a aplicação da causa de aumento de pena, prevista no art. 40, III, da Lei 11.343/06.
2. Agravo regimental não provido.
(STJ, T5 - Quinta Turma, AgRG no REsp 1.392.139/PR, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 19/08/2013, p. DJe 25/09/2013).

Tal pensamento, que ao final restou pacificado na Quinta Turma do STJ, refletia uma visão conservadora do Tribunal. Seu resultado prático era proporcionar um rigor mais elevado na aplicação da pena definitiva aos acusados de tráfico, mas incorria na atecnia de ignorar, para fins de autorizar a incidência da causa de aumento, o dolo do agente que se valia do transporte público no iter criminis de sua atividade delitiva. 

A questão naturalmente foi submetida ao Supremo Tribunal Federal. A Corte Suprema, todavia, interpretou a norma de maneira oposta àquela encampada nos julgados da Quinta Turma do STJ. Para o STF, é indispensável atentar para o fato de que a causa de aumento de pena prescrita no art. 40, III, da Lei 11.343/06 visa a punir com maior rigor a atividade de mercancia da droga no interior do veículo público. Desse modo, é insuficiente a sua mera utilização como via de deslocamento.

Nesse sentido, os precedentes abaixo são induvidosos:

EMENTA HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA DA PENA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 40, INCISO III, DA LEI 11.343/2006. ORDEM CONCEDIDA. 1. A aplicação da causa de aumento de pena prevista no inciso III do artigo 40 da Lei 11.343/2006 visa a punir com maior rigor a comercialização de drogas nas dependências ou imediações de determinados locais, como escolas, hospitais, teatros e unidades detratamento de dependentes, entre outros. 2. A mera utilização de transporte público para o carregamento da droga não leva à aplicação da causa de aumento do inciso III do art. 40 da Lei 11.343/2006. 3. Ordem concedida. (STF, Primeira Turma, HC 119.782/MS, Rel. Min. Rosa Weber, j. 10/12/2013, p. DJe 03/02/2014).

EMENTA HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA DA PENA. CAUSA DE AUMENTO DE PENA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 40, INCISO III, DA LEI 11.343/2006. ORDEM CONCEDIDA. 1. A aplicação da causa de aumento de pena prevista no inciso III do artigo 40 da Lei 11.343/2006 visa a punir com maior rigor a distribuição de drogas nas dependências ou imediações de determinados locais, como escolas, hospitais, teatros, unidades de tratamento de dependentes e transportes públicos, entre outros. 2. A mera utilização de transporte público para o carregamento da droga não induz à aplicação da causa de aumento do inciso III do artigo 40 da Lei 11.343/2006. 3. Ordem de habeas corpus concedida para afastar a majorante prevista no artigo 40, III, da Lei 11.343/2006, com o restabelecimento do acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região no tópico. (STF, Primeira Turma, HC 122.258/MS, Rel. Min. Rosa Weber, j. 19/08/2014, p. DJe 02/09/2014).

É preciso observar que referido entendimento não se restringe à Primeira Turma, mas acabou abraçado também pela Segunda Turma do Tribunal, como revela o julgado seguinte (grifo meu):

Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA DE AUMENTO DE PENA PREVISTA NO ART. 40, III, DA LEI DE DROGAS (TRANSPORTE PÚBLICO). NÃO INCIDÊNCIA NO CASO. PENA INFERIOR A QUATRO ANOS. FIXAÇÃO DE REGIME INICIAL FECHADO. VIABILIDADE. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DEDIREITOS. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. QUANTIDADE DA DROGA APREENDIDA. NÃO CUMPRIMENTO DO REQUISITO SUBJETIVO PREVISTO NO ART. 44, III, DO CP. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. O entendimento de ambas as Turmas do STF é no sentido de que a causa de aumento de pena para o delito de tráfico de droga cometido em transporte público (art. 40, III, da Lei 11.343/2006) somente incidirá quando demonstrada a intenção de o agente praticar a mercancia do entorpecente em seu interior. Fica afastada, portanto, na hipótese em que o veículo público é utilizado unicamente para transportar a droga. Precedentes. 2. O acórdão impugnado restabeleceu o regime inicial fechado imposto pelo magistrado de primeiro grau em razão da presença de circunstâncias judiciais desfavoráveis do art. 59 do CP (quantidade de droga). Assim, não há razão para reformar a decisão, já que, na linha de precedentes desta Corte, os fundamentos utilizados são idôneos para impedir a fixação de um regime prisional mais brando do que o fixado no acórdão atacado. 3. Não é viável proceder à substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito, pois, embora preenchido o requisito objetivo previsto no inciso I do art. 44 do Código Penal (= pena não superior a 4 anos), as instâncias ordinárias concluíram que a conversão da pena não se revela adequada ao caso, ante a existência decircunstâncias judiciais desfavoráveis (= quantidade da droga apreendida). Precedentes. 4. Ordem concedida, em parte, apenas para afastar a incidência da majorante prevista no art. 40, III, da Lei 11.343/2006. (STF, Primeira Turma, HC 119.811/MS, Rel. Min. Teori Zavaski, j. 10/06/2014, p. DJe 01/07/2014).

Portanto, é correto hoje se afirmar que a interpretação que condiciona a incidência da causa de aumento insculpida no inc. III do art. 40 da Lei 11.343/06 ao tráfico perpetrado no interior do veículo está pacificada no STF.

As consequências práticas desse novel posicionamento do STF na matéria podem ser dimensionadas a partir deste exemplo: uma mulher, a portar drogas nas suas partes íntimas, utiliza-se de ônibus com vistas a chegar até determinado destino. Acorde com a posição do STJ, tal ação seria suficiente para autorizar a incidência da majorante no tráfico. Porém, segundo o STF, se a ré não se utilizou do transporte coletivo com o objetivo de disseminar, usar ou comercializar o produto ilícito, a aproveitar-se de sua posição no interior do veículo, não é possível aplicar a causa de aumento, porquanto a mera conduta de levar a droga escondida não vai ao encontro da vontade do legislador. É o que se pode depreender deste aresto (grifos meus):

Ementa: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. ART. 40, INCISO III, DA LEI 11.343/06. INAPLICABILIDADE. ART. 2º, § 1º, DA LEI 8.072/90, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.464/07, E ART. 44 DA LEI 11.343/06. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. A aplicação da causa de aumento de pena prevista no artigo 40, inciso III, da Lei 11.343/06, tem como objetivo punir com mais rigor a comercialização de drogas em determinados locais onde se verifique uma maior aglomeração de pessoas, de modo a facilitar a disseminação da mercancia, tais como escolas, hospitais, teatros, unidades de tratamento de dependentes, entre outros. 2. A aplicação da majorante do inciso III exige a comercialização da droga no próprio transporte público, sendo insuficiente a mera utilização do transporte para o carregamento do entorpecente. Precedentes: HC 119.782, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe de 03.02.14 e HC 109.538, Primeira Turma, Redatora para o acórdão a Ministra Rosa Weber, DJe de 26.10.12. 3. In casu, a Corte Estadual, em sede de apelação, afirmou que “no caso em apreço, verifica-se que a recorrida não se utilizou do transporte coletivo para disseminar entorpecentes, mas tão somente para levar a droga escondida em suas partes íntimas até o destino final. Ou seja, não tinha a intenção de difundir, usar e/ou comercializar a referida droga, aproveitando-se do fato de estar no interior do veículo público”. 4. O artigo 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, na redação conferida pela Lei 11.464/07 – que determina que o condenado pela prática de crime hediondo inicie o cumprimento da pena privativa de liberdade, necessariamente, no regime fechado – foi declarado inconstitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada em 27.06.12, ao julgar o HC 11.840, Relator o Ministro Dias Toffoli. 5. O artigo 44 da Lei 11.343/06 foi declarado inconstitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 97.256, Relator o Ministro Ayres Britto, sob o fundamento de que afronta os princípios da presunção de não culpabilidade e da dignidade humana. 6. In casu, a paciente foi flagrada transportando 100 (cem) gramas de cocaína dentro de um ônibus, tendo sido condenada a 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão e ao pagamento de 180 (cento e oitenta) dias-multa, pela prática do crime de tráfico de entorpecentes. O juiz singular fixou o regime inicial fechado, com fundamento apenas no artigo 2º, caput, e § 1º, da Lei 8.072/90, bem vedou a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas dedireito, com respaldo no artigo 44 da Lei 11.343/06. 7. Ordem concedida a fim de afastar a aplicação da causa de aumento de pena prevista no artigo 40, inciso III, do Código Penal, restabelecendo o quantum da pena privativa de liberdade fixado na sentença condenatória (um ano e oito meses de reclusão). Ordem concedida de ofício para fixar o regime aberto para o início do cumprimento da pena, nos termos do artigo 33, § 2º, b, do Código Penal e também para remover o óbice da parte final do art. 44 da Lei 11.343/2006, determinando ao Juízo processante ou, se for o caso, ao Juízo da execução penal, que avalie os requisitos necessários à substituição da pena privativa de liberdade por outra restritiva de direitos. (STF, Primeira Turma, HC 118.676/MS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 11/03/2014, p. DJe 28/03/2014).

Em face da pacificação da tese supracitada no STF, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça viu-se na obrigação de revisar o entendimento jurisprudencial até então esposado pela Corte. Colaciono (grifos meus):

1. DIREITO PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ADMISSÃO PARCIAL DO RECURSO. INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA DE AGRAVO. NÃO CABIMENTO. SÚMULAS 292/STF E 528/STF. AGRAVO NÃO CONHECIDO.
2. DIREITO PENAL. RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 40, III, DA LEI N. 11.343/06. NÃO OCORRÊNCIA. UTILIZAÇÃO DE TRANSPORTE PÚBLICO. DIFICULDADE DE FISCALIZAÇÃO. DESNECESSIDADE DE OFERECER A DROGA. REVISÃO DE ENTENDIMENTO.
3. IMPRESCINDIBILIDADE DE MAIOR VULNERAÇÃO DO BEM JURÍDICO TUTELADO. PROTEÇÃO A LOCAIS COM MAIOR NÚMERO DE PESSOAS. NECESSIDADE DE COMERCIALIZAÇÃO. PRECEDENTES DO STF.
4. UTILIZAÇÃO DE TÁXI. TRANSPORTE PÚBLICO INDIVIDUAL. SIMILAR A CARRO PRIVADO.  SITUAÇÃO QUE NÃO SE INSERE NA INCIDÊNCIA DA CAUSA DE AUMENTO.
5. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. Não é cabível a interposição de agravo em recurso especial contra decisão que admite parcialmente o recurso especial, porquanto a controvérsia é encaminhada por inteiro à Corte Superior, que realizará, inevitavelmente, segundo juízo de admissibilidade sobre todos os temas apresentados no apelo especial. Não há, portanto, interesse recursal, incidindo, no caso os verbetes ns. 292 e 528 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
2. Entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a simples utilização de transporte público como meio para concretizar o tráfico de drogas, por si só, já caracteriza a causa de aumento, que não merece prevalecer.
3. As causas de aumento da pena estão relacionadas à maior vulneração do bem jurídico tutelado, devendo, portanto, ser levada em consideração a maior reprovabilidade da conduta, o que apenas se verifica quando o transporte público é utilizado para difundir drogas ilícitas a um número maior de pessoas. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.
4. A conduta consistente na utilização de veículo táxi para transporte de droga, sem a comercialização para terceiros, não enseja a incidência de causa de aumento de pena do inciso III do art. 40 da Lei n. 11.434/2006, seja em razão de inexistência de aglomeração de pessoas a facilitar a dispersão da droga, seja porque a fiscalização de tal veículo é equiparada à do veículo particular, tratando-se, em regra, de transporte não simultâneo de pessoas.
5. Agravo não conhecido e recurso especial a que se nega provimento.
(STJ, T5 - Quinta Turma, REsp 1.345.827/AC, Rel. Min. Mauro Aurélio Belizze, j. 18/03/2014, p. DJe 27/03/2014).

Mais recentemente, a Sexta Turma do STJ, em respeito ao sistema brasileiro de organização do Poder Judiciário, que posiciona o STF como intérprete altaneiro do ordenamento jurídico, adotou o mesmo posicionamento no acórdão infra (grifo meu):

RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. VIOLAÇÃO AO ART. 40, III, DA LEI N. 11.343/2006. UTILIZAÇÃO DE TRANSPORTE PÚBLICO. NECESSIDADE DE COMERCIALIZAÇÃO DA DROGA. PRECEDENTES DO STF E DA 5ª TURMA DO STJ.
1. Embora essa Eg. Turma entenda que a mera utilização de transporte público para a circulação da droga é suficiente para a incidência da majorante prevista no art. 40, III, da Lei de Drogas, a Quinta Turma desta Corte, acolhendo o posicionamento do STF, alterou o entendimento no sentido de ser necessária a efetiva comercialização do entorpecente.
2. Além de um critério de segurança jurídica recomendar ao Colegiado Superior adotar a compreensão dada pela Suprema Corte, garantindo a estabilidade e previsibilidade das decisões judiciais, efetivamente o desvalor maior penalizado se dá na transferência da droga a terceiros em transporte público, o que não ocorreria pela ocasional descoberta de que neste meio transitava agente portando de modo escondido a substância entorpecente.
3. Recurso a que se nega provimento. (STJ, T6 – Sexta Turma, REsp 1.199.561/MS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 16/09/2014, p. DJe 29/09/2014).

Dessa forma, fica evidente que o posicionamento atual dos Tribunais Superiores (STF e STJ) restringiu a aplicação da causa de aumento de pena prevista no inc. III do art. 40, in fine, da Lei 11.343/06. Nessa toada, a incidência do percentual fracionário só é válida quando tiver ficado comprovado o dolo do agente de utilizar-se do veículo público com o propósito de difundir ou comercializar a droga. Justifica-se essa posição no maior desvalor do resultado que advém da conduta daquele que transfere a droga a terceiros no interior do transporte público. Assim, restou superada a exegese anterior, de índole notadamente conservadora, que autorizava a incidência da majorante na última fase da dosimetria da pena ante o simples trânsito do agente do tráfico, mesmo que inexistente a intenção de mercanciar o produto ilícito no interior do transporte coletivo.    
 
REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Lei de Drogas. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T5 - Quinta Turma, AgRg no REsp 1.333.564/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 16/05/2013, p. DJe 23/05/2013. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T5 - Quinta Turma, REsp 1.345.827/AC, Rel. Min. Mauro Aurélio Belizze, j. 18/03/2014, p. DJe 27/03/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T5 - Quinta Turma, AgRG no REsp 1.392.139/PR, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 19/08/2013, p. DJe 25/09/2013. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T6 – Sexta Turma, REsp 1.199.561/MS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 16/09/2014, p. DJe 29/09/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, HC 119.782/MS, Rel. Min. Rosa Weber, j. 10/12/2013, p. DJe 03/02/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 30 de set. 2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, HC 118.676/MS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 11/03/2014, p. DJe 28/03/2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, HC 122.258/MS, Rel. Min. Rosa Weber, j. 19/08/2014, p. DJe 02/09/2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 30 de set. 2014.

domingo, 28 de setembro de 2014

DA POSSIBILIDADE DE ACRÉSCIMO DO SOBRENOME DE COMPANHEIRO NAS RELAÇÕES DE UNIÃO ESTÁVEL: fundamentos constitucionais da aplicação analógica do art. 1.565, § 1º, do Código Civil como mecanismo de superação do óbice legal do art. 57, § 2º, da Lei de Registros Públicos

Min. Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.206.656/GO no STJ
Este artigo é dedicado à acadêmica de Direito Tayssa Tavares Vasconcelos,
que me escreveu, a sugerir a abordagem de tema no blogue 
relativo à inclusão de patronímico no Direito Civil.

            Quando duas pessoas decidem celebrar um casamento, tem-se a consolidação do propósito de constituição de uma entidade familiar de notória importância para a vida em sociedade. Tão grande é essa importância que o Poder Constituinte Originário fez questão de discipliná-lo no art. 226 da Constituição de 1988, a destacar, por exemplo, sua natureza civil e a gratuidade de sua celebração. 

No entanto, é no Código Civil que se encontra a regulamentação exaustiva desse negócio jurídico solene e complexo. Nesse sentido é que o art. 1.511 do CC anuncia que “O casamento estabelece a comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”.

A ideia de comunhão de vida, referida no texto legal, reforça que a união formal decorrente do casamento baseia-se em um vínculo de afeto. É desse afeto que une o casal que advém o objetivo de constituição de uma família. Por esse motivo, “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família” (CC, art. 1.513).

Como o próprio texto constitucional indica, dada a relevância do casamento para a vida civil, importa ao Estado não só o reconhecer como também o regulamentar. Tal necessidade de regulamentação estatal advém dos muitos efeitos que a convolação de núpcias acarreta na órbita jurídico-civilística, sejam eles de ordem social (constituição de uma entidade familiar, p. ex.), pessoal (comunhão de vida com base igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges) ou patrimonial (regime de bens).     

Entre os efeitos pessoais decorrentes do casamento, destaca-se a possibilidade de acréscimo do sobrenome do cônjuge, tal como previsto no art. 1.565, § 1º, do CC. In verbis:

Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
§ 1º Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro.
omissis

O fundamento legal que orienta a norma acima é a modificação que o casamento implica no estado civil de cada pessoa. Assim sendo, o legislador autoriza a inclusão do sobrenome do cônjuge, de tal arte a reforçar a perpetuidade do vínculo conjugal estabelecido. Nos termos da lei, esse elo civil é tão forte que é capaz até mesmo de alterar o nome da pessoa, que é o direito da personalidade que permite sua identificação em sociedade.

A proposta de comunhão plena de vida pelo casamento também se revela na inexistência de baliza legal para a troca de sobrenomes. Logo, em não havendo limitação expressa, nada impede que qualquer dos cônjuges troque seu sobrenome pelo do outro, ou mesmo que um deles suprima patronímico, acrescentando em seu lugar sobrenome do seu consorte.

O problema é que o regramento legal aplicável à mudança de sobrenomes pelo casamento não se estende, em princípio, à união estável. Ao menos é o que se extrai do teor do art. 57, § 2º, da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos - LRP):

        Art. 57.  omissis
        § 1º omissis
        § 2º A mulher solteira, desquitada ou viúva, que viva com homem solteiro, desquitado ou viúvo, excepcionalmente e havendo motivo ponderável, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o patronímico de seu companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, de família, desde que haja impedimento legal para o casamento, decorrente do estado civil de qualquer das partes ou de ambas. 
        [...]

À luz do texto supracitado, fica evidente que a inclusão do sobrenome do companheiro não se submete aos mesmos requisitos inscritos no art. 1.565, § 1º, do CC. Pelo contrário. Nos termos do texto de lei, somente se admite a possibilidade de alteração de patronímico naqueles casos em que haja impedimento legal para a celebração do casamento. Por outras palavras, se os companheiros puderem casar, não poderão requerer esse efeito pessoal no regime de união estável. 

Essa restrição não se justifica. O § 2º do art. 57 da LRP, com redação dada pela Lei 6.216/75, foi notadamente concebido sob inspiração de uma carta constitucional não democrática. É evidente assim que não se harmoniza com a Constituição de 1988, que elevou a união estável à condição de entidade familiar, equiparando-a, em muitos casos, ao próprio casamento. Nesse prisma é que prescreve o art. 226, § 3º, do texto constitucional vigente:

 Art. 226 omissis

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

[...]

É preciso observar ainda que, no plano de uma interpretação histórica, a norma do § 2º do art. 57 da LRP reporta-se a um momento da história do Direito Civil brasileiro no qual era reconhecida a indissolubilidade do casamento. Como é sabido, a Lei do Divórcio (Lei 6.515) só surgiria dois anos depois (ela data de 26 de dezembro de 1977). Portanto, o impedimento legal aludido reportava-se sobremodo às relações concubinárias, que não permitiam, a toda evidência, a convolação válida das núpcias. Para agravar o quadro discriminatório, o texto legal da LRP facultava a inclusão do patronímico tão somente à mulher, não se cogitando da possibilidade de o companheiro proceder de maneira idêntica.    
 
Valendo-se dessa exegese constitucionalizada e histórica, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.206.656, reformou decisão que, com base no óbice legal inscrito no art. 57, § 2º, da LRP, não permitira que companheiros procedessem à alteração de certidão de nascimento, porquanto não houvessem comprovado a ausência de impedimento legal.

No caso concreto, uma mulher mantinha união estável há mais de 30 anos com um homem. Diante disso, ajuizou ação para a mudança do seu registro civil, a solicitar ao juízo a inclusão do sobrenome do seu companheiro. Todavia, o TJGO manteve a sentença do juízo de primeiro grau, que havia entendido pela inadmissibilidade da alteração no regime de união estável senão quando houve comprovado impedimento legal para a celebração do casamento. Como o casal não tinha feito prova do impedimento, o juízo goiano aplicara integralmente o texto vetusto da LRP.

Foi precisamente esse posicionamento do TJGO, de indiscutível índole conservadora e positivista, que veio a ser reformado pelo STJ. Eis o acórdão (grifos meus):

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL. ALTERAÇÃO DO ASSENTO REGISTRAL DE NASCIMENTO.  INCLUSÃO DO PATRONÍMICO DO COMPANHEIRO. POSSIBILIDADE.
I. Pedido de alteração do registro de nascimento para a adoção, pela companheira, do sobrenome de companheiro, com quem mantém união estável há mais de 30 anos.
II. A redação do o art. 57, § 2º, da Lei 6.015/73 outorgava, nas situações de concubinato, tão somente à mulher, a possibilidade de averbação do patronímico do companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, desde que houvesse impedimento legal para o casamento, situação explicada pela indissolubilidade do casamento, então vigente.
III. A imprestabilidade desse dispositivo legal para balizar os pedidos de adoção de sobrenome dentro de uma união estável, situação completamente distinta daquela para qual foi destinada a referida norma, reclama a aplicação analógica das disposições específicas do Código Civil relativas à adoção de sobrenome dentro do casamento, porquanto se mostra claro o elemento de identidade entre os institutos e a parelha ratio legis relativa à união estável, com aquela que orientou o legislador na fixação, dentro do casamento, da possibilidade de acréscimo do sobrenome de um dos cônjuges, pelo outro.
IV. Assim, possível o pleito de adoção do sobrenome dentro de uma união estável, em aplicação analógica do art. 1.565, § 1º, do CC-02, devendo-se, contudo, em atenção às peculiaridades dessa relação familiar, ser feita sua prova documental, por instrumento público, com anuência do companheiro cujo nome será adotado.
V. Recurso especial provido.
(STJ, T3 – Terceira Turma, REsp 1.206.656/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16/10/2012, p. DJe 11/12/2012).

Pela leitura do acórdão, é possível perceber que o STJ aplicou analogicamente o § 1º do art. 1.565 do CC. Afastou, assim, o texto legal do art. 57, § 2º, que entendeu “imprestável” para balizar o pedido manejado originalmente pela recorrente na ação de alteração de registro civil de nascimento, a saber, a inclusão do sobrenome do companheiro.

Posteriormente, já em outubro de 2013, a Terceira Turma do Tribunal tornou a reiterar o posicionamento favorável à superação do óbice legal previsto na LRP. Colaciono (grifos meus):

ALTERAÇÃO DE REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. INCLUSÃO. PATRONÍMICO. COMPANHEIRO. IMPEDIMENTO PARA CASAMENTO. AUSENTE. CAUSA SUSPENSIVA. APLICAÇÃO ANÁLOGICA DAS DISPOSIÇÕES RELATIVAS AO CASAMENTO. ANUÊNCIA EXPRESSA. COMPROVAÇÃO POR DOCUMENTO PÚBLICO. AUSENTE. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 57 DA LEI 6.015/73; 1.523, III; E PARÁGRAFO ÚNICO; E 1.565, § 1º, DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação de alteração de registro civil, ajuizada em 24.09.2008. Recurso especial concluso ao Gabinete em 12.03.2012. 2. Discussão relativa à necessidade de prévia declaração judicial da existência de união estável para que a mulher possa requerer o acréscimo do patronímico do seu companheiro. 3. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o tribunal de origem pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a questão posta nos autos. 4. Não há impedimento matrimonial na hipótese, mas apenas causa suspensiva para o casamento, nos temos do art. 1.523, III, do Código Civil. 5. Além de não configurar impedimento para o casamento, a existência de pendência relativa à partilha de bens de casamento anterior também não impede a caracterização da união estável, nos termos do art. 1.723, § 2º, do Código Civil. 6. O art. 57, § 2º, da Lei 6.015/73 não se presta para balizar os pedidos de adoção de sobrenome dentro de uma união estável, situação completamente distinta daquela para qual foi destinada a referida norma. Devem ter aplicação analógica as disposições específicas do Código Civil, relativas à adoção de sobrenome dentro do casamento, porquanto se mostra claro o elemento de identidade entre os institutos. 7. Em atenção às peculiaridades da união estável, a única ressalva é que seja feita prova documental da relação, por instrumento público, e nela haja anuência do companheiro que terá o nome adotado, cautelas dispensáveis dentro do casamento, pelas formalidades legais que envolvem esse tipo de relacionamento, mas que não inviabilizam a aplicação analógica das disposições constantes no Código Civil, à espécie. 8. Primazia da segurança jurídica que deve permear os registros públicos, exigindo-se um mínimo de certeza da existência da união estável, por intermédio de uma documentação de caráter público, que poderá ser judicial ou extrajudicial, além da anuência do companheiro quanto à adoção do seu patronímico. 9. Recurso especial desprovido.
(STJ, T3 – Terceira Turma, REsp 1.306.196/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22/10/2013, p. DJe 28/10/2013).

As únicas ressalvas feitas pelo Tribunal Superior, no intuito de legitimar a alteração do sobrenome na união estável, dizem respeito ao reconhecimento formal da relação: impõe-se que os companheiros façam prova documental da entidade familiar, por instrumento público, anotando-se ainda a anuência daquele cujo patronímico será adotado no registro de nascimento. Nenhuma dessas ressalvas, como se nota, refere-se à comprovação de existência de impedimento para o casamento, tal como preconizado na Lei de Registros Públicos (art. 57, § 2º).   

Esses acórdãos do STJ são exemplares, na medida em que revelam a disposição do Tribunal em proceder a uma interpretação constitucionalizada do Direito Civil brasileiro. Ao fazê-lo, evidencia-se a injustiça da restrição prevista na LRP, que em nada coaduna com uma ordem constitucional democrática, claramente voltada à proteção da união estável, reconhecida qual entidade familiar tanto quanto o casamento.

            Nessa medida, qualquer outra interpretação, que não aquela favorável à aplicação analógica do dispositivo do Código Civil que regula a possibilidade de acréscimo de sobrenome pelos cônjuges (art. 1.565, § 1º), em situação fática idêntica àquela ocorrente no regime da união estável, seria inaceitável (e inconstitucional) discriminação dos companheiros que experienciam a comunhão de vida e de afeto em relação familiar diversa do tradicional e solene vínculo casamentário.  

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 27 de set. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 27 de set. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira Turma, REsp 1.206.656/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16/10/2012, p. DJe 11/12/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 27 de set. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, T3 – Terceira Turma, REsp 1.306.196/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22/10/2013, p. DJe 28/10/2013. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 27 de set. 2014.

COMPETÊNCIA TERRITORIAL DA JUSTIÇA FEDERAL E POSSIBILIDADE DE ESCOLHA DE FORO NAS CAUSAS INTENTADAS CONTRA A UNIÃO: anotações sobre a interpretação do STF quanto à aplicabilidade do § 2º do art. 109 da Constituição às autarquias federais e fundações

Min. Ricardo Lewandoski, relator do RE 627.709/DF no STF.
 
Na tradicional distribuição de competências operada pelo Código de Processo Civil, alguns critérios orientam a atividade do legislador. Segundo os processualistas, tais critérios reportam-se ora a elementos objetivos da demanda deduzida em juízo (em razão da matéria, em razão da pessoa ou do valor da causa em algumas hipóteses, como nos Juizados Especiais), ora a elementos funcionais (graus de jurisdição, fases do procedimento, objetivos do juízo etc), ora a elementos territoriais.  

No caso da competência territorial, o critério determinante para a distribuição do poder jurisdicional relaciona-se com aspectos eminentemente geográficos. Importa, sobretudo, o lugar para a fixação do juízo onde se desenvolverá a atividade judicante. Assim, é nesse lugar (nesse território) que se admite o processamento da causa.

Apesar disso, a distribuição da atividade jurisdicional em razão do lugar não é absoluta. Diferentemente de outros critérios competenciais, como o funcional ou o firmado em razão da matéria, o CPC previu que, de ordinário, a competência territorial admite modificação, nos termos do estatuído no art. 102 do diploma codificado:

Art. 102. A competência, em razão do valor e do território, poderá modificar-se pela conexão ou continência, observado o disposto nos artigos seguintes.  

Como a competência territorial pode ser modificada, diz-se em doutrina que se trata de hipótese de competência relativa, a autorizar sua derrogação pela vontade das partes. Isto é, a sua inobservância pela parte autora gera tão somente nulidade relativa, a acarretar a obrigação de o réu argui-la mediante o oferecimento de exceção no prazo de 15 dias, contado do fato que ocasionou a incompetência (CPC, art. 112 c/c arts. 304 e 305). Caso o réu não argua a incompetência relativa no prazo da resposta, dar-se-á a preclusão do seu direito. Nessa hipótese, prorroga-se (amplia-se) a competência do juízo que, não obstante não fosse originariamente competente para o conhecimento da causa e consequente julgamento da lide, agora passa a sê-lo pela modificação da regra competencial-territorial não arguida pelo réu legitimado a fazê-lo.       

Ainda nesse plano, é de rigor anotar que o Código de Processo Civil cuidou de estipular algumas regras de determinação da competência baseadas no lugar em que a causa deve ser processada. Elas estão elencadas, em linhas gerais, nos arts. 94 e 95 do CPC, que adotam a regra geral, respectivamente, do foro do domicílio do réu nas demandas que envolvam direitos pessoais e direitos reais mobiliários e do foro da situação da coisa nas demandas reais imobiliárias. In verbis:

Art. 94. A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu.

§ 1º Tendo mais de um domicílio, o réu será demandado no foro de qualquer deles.

§ 2º Sendo incerto ou desconhecido o domicílio do réu, ele será demandado onde for encontrado ou no foro do domicílio do autor.

§ 3º Quando o réu não tiver domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor. Se este também residir fora do Brasil, a ação será proposta em qualquer foro.

§ 4º Havendo dois ou mais réus, com diferentes domicílios, serão demandados no foro de qualquer deles, à escolha do autor.

Art. 95. Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova.

É evidente que a previsão de regras gerais determinantes da distribuição da competência territorial nos arts. 94 e 95 do CPC não exclui a possibilidade de outros diplomas legais estabelecerem regramentos próprios de fixação da atividade jurisdicional em razão do lugar. É o que sucede, por exemplo, com o Código de Defesa do Consumidor, que no seu art. 101, I, especifica o seguinte:

       Art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:

        I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor;

A expressão “pode” quer demonstrar que, de ordinário, a ação intentada com fundamento nas relações jurídico-processuais consumeristas admite sua propositura no domicílio do autor. Contudo, não se trata de regra de competência absoluta, senão de mera faculdade que visa a beneficiar a parte mais fraca da relação de consumo, isto é, o consumidor demandante. Logo, a regra geral inscrita no caput do art. 94 do CPC, a sinalizar a competência territorial no domicílio do réu (demandado), pode vir a ser validamente observada.   

Mas não é só o legislador subalterno que se propõe a discriminar a competência dos órgãos jurisdicionais com fundamento no território. Essas regras algumas vezes também são estipuladas no próprio texto constitucional. Nesse sentido é que devemos interpretar os parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 109 da Constituição. Vejamo-los:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

(omissis)

§ 1º - As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte.

§ 2º - As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal.

§ 3º - Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.

(...)

A leitura desses parágrafos revela que o legislador constituinte criou regras de competência territorial da Justiça Federal no bojo da própria Constituição. Dessa maneira, assumiu a incumbência de delimitar a competência geográfica do órgão judicante, em detrimento às regras inscritas nos diplomas hierarquicamente inferiores.     

No caso da regra estabelecida no § 2º do art. 109, por exemplo, a intenção do legislador constituinte foi a mais nobre possível: facilitar o acesso do jurisdicionado à Justiça Federal. Eis o motivo pelo qual as causas intentadas contra a União poderão ser aforadas (1) na seção judiciária em que for domiciliado o autor; (2) no foro onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda; (3) no foro onde esteja situada a coisa; ou (4) no Distrito Federal. Em qualquer desses lugares em que a demanda for proposta contra a União o juízo federal será plenamente competente para o processamento da causa. Não faz sentido, assim, objetar como matéria de defesa a incompetência relativa do órgão jurisdicional.

Malgrado esse raciocínio, em 2010, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) interpôs o RE 627.709/DF, para alegar, perante o STF, ofensa à Constituição Federal no acórdão lavrado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que havia reconhecido a competência da Subseção Judiciária de Passo Fundo (RS) para processar e julgar demanda proposta por uma empresa de vigilância contra a autarquia. Consoante argumentou o presentante jurídico do CADE, a interpretação a ser dada ao § 2º do art. 109 da Constituição deveria ser restringida, não se aplicando às autarquias e fundações públicas de direito público (autarquias fundacionais). Para o recorrente, o parágrafo em comento alude tão-só à União, não aludindo aos entes da Administração Pública Indireta. Logo, a empresa de vigilância não poderia ajuizar ação contra o CADE perante a Subseção Judiciária de Passo Fundo, mas sim perante o foro do Distrito Federal, onde a autarquia tem sede, tal como proclama o Código de Processo Civil (CPC, art. 100, IV, a).

Em março de 2011, o Plenário Virtual do STF reconheceu a repercussão geral da matéria, a qual veio a ser julgada na sessão plenária do dia 20 de agosto de 2014.

Ao analisar o recurso, a maioria dos ministros concordou em seguir o voto do relator, Min. Ricardo Lewandowski, que defendeu interpretação do dispositivo em sentido oposto ao defendido pelo CADE. Segundo a tese prevalecente, as possibilidades de escolha de foro, previstas no art. 109, § 2º, da CF/88, têm o nítido propósito de beneficiar o polo da demanda que litiga contra a União. Sendo assim, tal norma aplica-se às autarquias e fundações.

Nota-se que a Corte Suprema brasileira, ao julgar o RE 627.709/DF, deparou com tese recursal extraída de regras de competência territorial estabelecidas no próprio texto da Constituição. A intenção do recorrente era evitar que demandas pudessem ser ajuizadas fora da sua sede, isto é, no Distrito Federal. Caso prevalecesse tal entendimento, na prática, o jurisdicionado, sempre que pretendesse litigar contra entes da Administração Pública Indireta da União (autarquias e fundações), ver-se-ia tolhido das múltiplas possibilidades de escolha de foro e, portanto, teria dificultado inapelavelmente o seu acesso à prestação jurisdicional federal.

É claro que essa interpretação de caráter restritivo não foi a pretendida pelo Poder Constituinte Originário. Ao criar regras de competência territorial no bojo da Constituição, fê-lo com o intuito de afastar as regras processuais subalternas. Imbuído de indiscutível finalidade democrática, o legislador constituinte quis simplificar o acesso ao Poder Judiciário, e não o contrário. Além disso, o não cabimento da tese esposada pelo CADE também se verifica pela interpretação literal da redação normatizada, pois, se o legislador houvesse pretendido excluir as autarquias e fundações da faculdade de escolha do foro federal inscrita no § 2º do art. 109, tê-lo-ia feito expressamente.      

São esses os motivos conducentes da tese que afinal veio a negar provimento ao RE 627.709/DF. Abraçada pela maioria dos ministros, a interpretação de que o § 2º do art. 109 da Constituição de 1988 aplica-se às autarquias e fundações  (autarquias fundacionais) vai ao encontro do direito fundamental de pleno acesso à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), que conforma o caráter democrático do texto constitucional vigente.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 de set. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 de set. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma, RE 627.709/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandoski, j. 20/08/2014, p. (aguardando publicação no DJe). Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 26 de set. 2014.