quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Notas sobre a decisão do STF quanto à constitucionalidade da requisição, acesso e uso, pelos órgãos da administração tributária, de informações dos contribuintes, à luz do art. 6º da LC 105/2001

Min. Edson Fachin, relator do RE 601.314/SP no STF
Ouvindo atualmente: "Tomaso Antônio Vitali: Chaconne
em Sol Menor para violino e piano",
gravação de Jascha Heifetz remasterizada em 2011.
 

O Direito Constitucional Positivo brasileiro conhece o direito fundamental à intimidade. Sobre ele, estipula que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (CF, art. 5º, X).

Muitas são as possíveis consequências dessa garantia fundamental. Uma delas encontra-se na proteção ao sigilo bancário. Apesar de a Constituição de 1988 não se ter dedicado especificamente ao tratamento do tema, é correto afirmar que, no sistema constitucional vigente no Brasil, a proteção do sigilo bancário é uma decorrência lógica da proteção que o texto supremo assegura à intimidade dos cidadãos, porquanto o que a norma busca é criar, em favor do indivíduo, uma esfera indevassável pelos órgãos de Estado.     

Entretanto, a garantia constitucional da intimidade não é um direito absoluto. Assim, o sigilo bancário submete-se à possibilidade de seu afastamento pela autoridade estatal, desde que a sua relativização seja compatível com o princípio da proporcionalidade e com a necessidade efetiva da medida de constrição.

Forte nessas premissas, o legislador editou a Lei Complementar 105/2001. A ementa desse diploma revela que seu objetivo é “dispor sobre o sigilo das operações financeiras”, razão pela qual, de ordinário, em favor da preservação da intimidade dos cidadãos, estabelece-se que “As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados” (LC 105/01, art. 1º). Apesar disso, considerando tratar-se de uma proteção jurídica relativa, a lei também estipula situações que não constituem violação de sigilo (art. 1º, § 3º) e que autorizam a própria quebra do sigilo bancário, quando tal medida constritiva revelar-se necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial (art. 1º, § 4º).

Sucede que a LC 105/01, no seu art. 6º, trouxe uma norma que imediatamente suscitou grande polêmica. Vejamo-la in verbis:     

Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.   

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

A polêmica reside na autorização que a norma confere aos órgãos da Administração Pública tributária para terem acesso a dados dos contribuintes - em princípio, protegidas pela garantia do sigilo bancário -, independentemente da autorização judicial. Diante disso, surgiu o questionamento quanto à constitucionalidade dessa regra infraconstitucional, uma vez que, à luz da garantia insculpida no art. 5º, XII (“ é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”), somente o Poder Judiciário poderia excepcionar a regra, a autorizar a sua quebra em desfavor do indivíduo. Logo, a exceção (quebra de sigilo bancário) submeter-se-ia à reserva de jurisdição.

Nesse contexto, intensa disputa doutrinária e jurisprudencial derredor da possibilidade de os órgãos do Fisco acessarem dados dos contribuintes sem precisarem de autorização judicial. A controvérsia então culminou com o julgamento do RE 389.808/PR, quando o Supremo Tribunal Federal entendeu que o disposto no art. 6º da LC 105/2001 seria incompatível com a Constituição de 1988. Eis a ementa do precedente:

SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte. (STF, Pleno, RE 389.808/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 15/12/2010, p. DJe 10/05/2011).  

 Dessa maneira, em uma análise inicial da matéria por ocasião do julgamento do RE RE 389.808/PR, o STF adotou a posição mais favorável ao contribuinte, isto é, reconheceu que a quebra do sigilo bancário, disciplinada pela LC 105/2001, só poderia ser efetivada mediante prévia autorização judicial. Logo, seria inconstitucional a quebra de sigilo operada na esfera administrativa sem observância da reserva de jurisdição.

Todavia, em que pese esse entendimento inicial, a questão não resultou pacificada na Corte Suprema brasileira. Prova disso é que o Plenário do STF, ainda em outubro de 2009, nos autos do RE 601.314/SP, reconheceu a existência de repercussão geral da discussão acerca do fornecimento de informações sobre movimentações financeiras ao Fisco sem autorização judicial, nos termos do art. 6º da Lei Complementar nº 105 /2001. Paralelamente, quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859) também impugnavam o mesmo dispositivo, acusando-o de inconstitucional.  

Pois bem. Na sessão plenária do dia 24 de fevereiro de 2016, o STF finalmente julgou o RE 601.314/SP, bem como as ADIs apensadas, ocasião em que a Suprema Corte, por maioria de 9 votos a 2, chancelou o entendimento de que os dispositivos da LC 105/01, que autorizam os órgãos da Administração Tributária a terem acesso aos dados bancários dos contribuintes, independentemente de autorização judicial prévia, são constitucionais. Para o STF, o art. 6º da LC 105/01 não configura quebra de sigilo bancário, mas sim mera transferência de informações sigilosas da órbita bancária para a órbita fiscal. Logo, como simples transferência de dados do banco para o Fisco, não há que se falar em quebra de sigilo bancário do contribuinte, motivo pelo qual fica dispensada a reserva de jurisdição, para autorizar esse tipo de procedimento invasivo.

Nesses precedentes julgados em conjunto, o STF enfatizou que Estados e Municípios, a fim de aplicarem o art. 6º da LC 105/2001 nos seus órgãos de administração tributária respectivos, devem criar um regulamento – nos moldes do Decreto 3.724/2001, editado pela União - que firme a necessidade da instauração de processo administrativo com o fim de obtenção das informações bancárias dos contribuintes. Nesse propósito, é preciso que adotem medidas de precaução, tais como o desenvolvimento de sistemas certificados de segurança e registro de acesso do agente público. O objetivo dessas medidas precautórias é evitar a manipulação indevida dos dados fornecidos pelos bancos, o que poderia resultar no desvio da sua finalidade. Além disso, é preciso também que o regulamento dos órgãos de Estados e Municípios assegure ao contribuinte a prévia notificação de abertura de processo, bem como o direito de ter acesso amplo aos autos, inclusive com a possibilidade de obtenção de cópias.

Vejamos a seguir uma síntese da posição adotada pela Suprema Corte nesses precedentes, tal como explicitada pelo Min. Dias Toffoli, relator das ADIs no STF:

Os estados e municípios somente poderão obter as informações previstas no artigo 6º da LC 105/2001, uma vez regulamentada a matéria, de forma análoga ao Decreto Federal 3.724/2001, tal regulamentação deve conter as seguintes garantias: pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado; a prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do processo e a todos os demais atos; sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico; existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso; estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de desvios.         

Dessa maneira, evidencia-se que o STF alterou, de maneira radical, seu posicionamento anterior, esposado nos autos do RE 389.808/PR, quando a Corte julgou inconstitucional o art. 6º da LC 105/01. A partir de agora, com o julgamento conjunto do RE 601.314/SP e das ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859, o entendimento é diametralmente oposto: o art. 6º da LC 105/01 é perfeitamente constitucional, de tal arte que as autoridades e os agentes fiscais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderão ter acesso a dados dos contribuintes, fornecidos pelos bancos, independentemente de prévia autorização judicial, visto que a mera transferência de informações ao Fisco não se submete ao postulado da reserva de jurisdição.  

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

RT COMENTA: PROCESSO CIVIL - Alienação da coisa ou do direito litigioso



1 – Questão do leitor:

Se, após a contestação, o réu, percebendo que será vencido no processo, decide vender a terceiro o veículo automotor cuja titularidade discute com o autor, os efeitos da sentença que vier a ser proferida alcançarão o terceiro adquirente?

Na sistemática do CPC/2015, o art. 336 do código impõe ao réu o ônus processual de apresentar toda a matéria de defesa na contestação, sob pena de operar-se a preclusão. Trata-se da chamada regra da eventualidade ou da concentração da defesa. Vejamos o dispositivo:

Art. 336.  Incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir.

A regra da eventualidade decorre da necessidade de estabilização da demanda. Diz-se “estável” a demanda que atinge um estágio processual que não mais permite a inclusão de alegações novas. A intenção desse mecanismo é clara: evitar a insegurança, a garantir um mínimo de previsibilidade quanto aos elementos fundamentais da demanda suscetível de apreciação pelo Poder Judiciário.

Apesar disso, o próprio CPC excepciona a regra da concentração de toda a matéria defensiva na contestação, uma vez que autoriza que determinadas defesas possam vir a ser alegadas após a contestação. É o que se verifica da leitura do art. 342 do CPC:

Art. 342.  Depois da contestação, só é lícito ao réu deduzir novas alegações quando:

I - relativas a direito ou a fato superveniente;

II - competir ao juiz conhecer delas de ofício;

III - por expressa autorização legal, puderem ser formuladas em qualquer tempo e grau de jurisdição.

A flexibilização da regra da eventualidade, cometida pelo próprio legislador no art. 342, presta-se a exemplificar que, não obstante desejável, a estabilização da demanda não é um postulado normativo absoluto. Com efeito, mesmo a eficácia preclusiva da regra da eventualidade comporta alteração.     

Esse mesmo raciocínio, que flexibiliza a regra da eventualidade - e, consequentemente, a estabilização da demanda -, vale para a alienação da coisa ou do direito litigioso. Isso porque o sistema da estabilização da demanda não poderia bloquear o tráfico jurídico. Caso contrário, todo bem ou direito que tivesse sua titularidade discutida em juízo estaria, automaticamente, fora do comércio jurídico, o que engessaria interesses econômicos legítimos (alienação de bens e/ou direitos) das partes ante a simples litigiosidade deflagrada pela litispendência, a partir da propositura da ação (para o autor) e da citação (para o réu), conforme prevê o art. 312 c/c art. 240 do CPC/2015.

Assim, o sistema de estabilização da demanda do Código de Processo Civil brasileiro não impede a possibilidade de a parte alienar a coisa ou o direito litigioso, que é o bem da vida submetido à litispendência, isto é, à disputa nos autos de um processo em curso.    

A esse respeito, vejamos o art. 109 do CPC:

Art. 109.  A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes.

§ 1º O adquirente ou cessionário não poderá ingressar em juízo, sucedendo o alienante ou cedente, sem que o consinta a parte contrária.

§ 2º O adquirente ou cessionário poderá intervir no processo como assistente litisconsorcial do alienante ou cedente.

§ 3º Estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário.

O art. 109 do CPC pode ensejar muitas consequências processuais relevantes. Cito algumas delas:

a)      perpetuação da legitimidade ad causam das partes, porém com mudança de tipo (como na hipótese de substituição processual, caso em que o alienante/cedente passa a substituir, como legitimado extraordinário, o adquirente/cessionário);

b)      possibilidade de sucessão processual (caso em que o adquirente/cessionário entra como parte no lugar do alienante/cedente);

c)      formação de assistência litisconsorcial (quando o adquirente/cessionário intervém no processo para auxiliar o alienante/cedente, após a recusa da parte contrária em consentir com a sucessão processual no polo passivo da demanda);

d)      formação de assistência simples (quando, após a parte contrária consentir com a sucessão processual, o alienante/cedente decide permanecer no processo, para auxiliar o adquirente/cessionário a vencer a demanda);

e)     extensão da eficácia da coisa julgada a terceiros.      

É precisamente essa última consequência da alienação da coisa ou do direito litigioso que constitui a chave para a resolução da questão.

Nesse sentido, cabe ponderar que, de ordinário, a eficácia subjetiva da coisa julgada é limita, adstrita às partes do processo, nos moldes do art. 506 do CPC:

Art. 506.  A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.

Porém, quando ocorre a alienação da coisa ou do direito litigioso, o código permite – em caráter excepcional - que a coisa julgada atinja o terceiro adquirente/cessionário (CPC, art. 109, § 3º).

A razão dessa norma encontra-se na circunstância de o réu original da demanda (convertido em alienante/cedente) permanecer no processo na condição de legitimado extraordinário (substituto processual) do adquirente/cessionário. Logo, em demandas nas quais haja a participação de substituto processual num dos polos, o sistema do código autoriza a que a eficácia subjetiva da coisa julgada estenda-se excepcionalmente, para atingir a esfera jurídica do terceiro substituído.    

Portanto, havendo litispendência, é lícito ao réu promover a alienação do direito ou da coisa litigiosa (um veículo automotor, p. ex.). Contudo, ao fazê-lo, o terceiro adquirente desse veículo ficará submetido aos efeitos da sentença (coisa julgada) proferida entre as partes originárias, de conformidade com o teor do § 3º do art. 109 do CPC.  

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

RT COMENTA: DIREITO TRIBUTÁRIO - IPTU (Sujeição passiva)


Min. Mauro Campbell Marques, relator do REsp 1402217 no STJ.
1 – Questão

O proprietário de um imóvel localizado em condomínio irregular está obrigado ao pagamento de IPTU?

Entre os elementos da obrigação tributária, destaca-se a sujeição ativa e passiva. Nesse passo, cumpre saber, dentro da estrutura da relação obrigacional, quem pode cobrar o tributo (sujeito ativo), bem assim aquele que está obrigado ao seu adimplemento (sujeito passivo).

A definição legal de sujeito ativo da obrigação tributária vem estipulada expressamente no art. 119 do CTN, in verbis:

Art. 119. Sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu cumprimento.

Já o sujeito passivo da obrigação tributária, na sistemática do Código Tributário Nacional, é aquele que genericamente está obrigado a uma prestação – que pode ser de dar, fazer ou não fazer. A aprofundar esse conceito genérico, verificamos o seu caráter bipartido. De um lado, temos o sujeito passivo da obrigação tributária principal (art. 121); de outro, o sujeito passivo da obrigação tributária acessória (art. 122).

Vejamos esses dispositivos do CTN:

Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.

Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:

I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;

II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.

Art. 122. Sujeito passivo da obrigação acessória é a pessoa obrigada às prestações que constituam o seu objeto.

A partir desses conceitos, tomemos como exemplo a sujeição passiva no IPTU.

Juridicamente, o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) qualifica-se como um tributo de competência dos Municípios (CF, art. 156, I), cujo fato gerador compreende a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município (CTN, art. 32).

Na estrutura da obrigação tributária deflagrada pelo IPTU, tem-se que o legislador visa a tributar a riqueza que o sujeito passivo manifesta por meio da propriedade, da posse ou do domínio útil. Consequentemente, contribuinte do imposto é o titular da propriedade, da posse ou do domínio útil (CTN, art. 34). Cabe a esse contribuinte, portanto, a obrigação legal de pagar o tributo, uma vez que é ele quem manifesta a riqueza tributável.

No entanto, a controvérsia manifesta-se pela necessidade de sabermos se é possível a cobrança de IPTU sobre imóvel que tenha sido construído em área irregular. Por exemplo: um condomínio formado com inobservância das normas legais pertinentes.

Para responder essa pergunta, é preciso ler novamente a redação do art. 34 do CTN:

Art. 34. Contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título.  

Na parte final da regra acima, quero destacar um ponto que considero relevante para o deslinde da controvérsia: “ou o seu possuidor a qualquer título”. Vejam que no comando legal não consta qualquer tipo de restrição à natureza da posse. O legislador não condicionou a sujeição passiva do tributo à circunstância de a posse ser justa ou injusta (violenta, clandestina ou precária), tal como definido no art. 1.200 do CC. Para efeito de incidência do fato gerador do IPTU e a qualificação de alguém como contribuinte do imposto, por conseguinte, inexiste limitação relativa ao tipo de posse ou possuidor. Para efeito de incidência do fato gerador do IPTU, tudo o que importa é o conteúdo econômico apreciável da propriedade, posse ou domínio útil, da mesma maneira que a qualidade de contribuinte atribui-se ao possuidor do terreno que manifeste riqueza mediante posse a qualquer título.   

Escorado nesses fundamentos, decidiu o STJ (grifo meu):

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ALÍNEA "C". AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E O APONTADO COMO PARADIGMA. INCIDÊNCIA DO IPTU SOBRE CONDOMÍNIOS IRREGULARES.
1. A divergência jurisprudencial deve ser demonstrada segundo o disposto no arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ, que exigem o cotejo analítico das teses dissidentes com a demonstração das circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. O desrespeito a esses requisitos legais e regimentais impede o conhecimento do Recurso Especial com base na alínea "c" do inciso III do art. 105 da Constituição Federal.
2. Cinge-se a controvérsia dos autos acerca da incidência do IPTU sobre imóvel construído em condomínio irregular (em terrenos públicos).
3. A luz do disposto nos artigos 32 e 34 do CTN são contribuintes do IPTU o proprietário do imóvel, titular do seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título. O CTN não estabelece qualquer limitação ou restrição ao tipo de posse, para fins de incidência do fato gerador do IPTU, e nem ao seu possuidor, como contribuinte.
4. É patente que o recorrente exerce alguns dos poderes inerentes à propriedade sobre o imóvel, já que exterioriza o seu ânimo de proprietário e, no plano fático dispõe do imóvel, ainda que por intermédio de contratos irregulares, realizados sem participação do real proprietário.
5. Cumpre esclarecer em que pese no caso o poder fático que exerce sobre os bens públicos não seja qualificado no plano jurídico como posse suficientemente capaz para gerar a aquisição da propriedade por usucapião ou a garantir a proteção possessória em face dos entes públicos, os detentores de bens públicos se caracterizam como possuidores a qualquer título, para efeito de incidência do IPTU, devendo ser considerados sujeitos passivos já que patente o seu inequívoco ânimo de se apossar definitivamente dos imóveis ou deles dispor mediante contrato oneroso.
6. Recurso especial parcialmente conhecido, e nessa parte não provido.
(STJ, Segunda Turma, REsp 1.402.217/DF, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 17/11/2015, p. DJe 24/11/2015).   

À vista do precedente acima, podemos concluir que o STJ, forte nos arts. 32 e 34 do CTN, entende que o possuidor a qualquer título – incluído o morador de condomínio construído em área irregular – está legalmente obrigado ao pagamento do tributo, a revestir-se da qualidade jurídica de contribuinte, uma vez que toda e qualquer posse (justa ou injusta, regular ou irregular, até mesmo a mera detenção) pode ser utilizada como fato gerador do IPTU.

Portanto, para ser sujeito passivo (contribuinte) do IPTU é suficiente, segundo a jurisprudência do STJ, que a pessoa exerça algum dos poderes inerentes à propriedade sobre o imóvel, a exteriorizar seu animus domini, a dispor faticamente do bem imóvel, independentemente de a posse não dispor de proteção possessória ou conduzir à prescrição aquisitiva (a usucapião), já que a posse que advém de contratos irregulares, à luz da legislação de regência, não afeta a obrigação tributária – máxime a qualidade de contribuinte do possuidor a qualquer título.      

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

RT COMENTA: PROCESSO CIVIL - Gratuidade da justiça

Min. Raul Araújo, relator do AgRg no EAREsp 440.971/RS no STJ.


1 - Questão
O que acontece quando a parte requer a concessão do benefício da justiça gratuita, porém o Poder Judiciário omite-se, não se manifestando expressamente sobre o pedido? A omissão implica deferimento tácito do pedido?
 
Tradicionalmente, o benefício da justiça gratuita é requerido processualmente com base na Lei 1.060/50, que, ao estabelecer normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados, dispõe que “A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.” (art. 4º).    

Com o advento do Novo Código de Processo Civil (art. 1.072, III), vários dispositivos desse diploma – mais precisamente, os arts. 2º, 7º1112 e 17 da Lei no 1.060/50 – foram revogados. Isso porque o código trouxe um regramento próprio para a matéria, a implicar que “a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça” (CPC/15, art. 98, caput).     
Investigadas essas normas processuais, percebe-se uma lacuna quanto à consequência da omissão do Poder Judiciário em relação ao pedido de concessão da gratuidade. O NCPC previu regra de formulação (art. 99), o caráter personalíssimo do pleito (art. 99, § 6º), regra de instauração de incidente processual (a impugnação ao deferimento do pedido, nos moldes do art. 100) e até o recurso de agravo de instrumento cabível contra a decisão que indeferir a gratuidade ou a que acolher pedido de sua revogação (art. 101). No entanto, ficamos sem saber qual a consequência da eventual omissão do Poder Judiciário acerca do pedido de concessão do benefício.  

Para responder essa pergunta, precisamos nos socorrer da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A proceder dessa maneira, não faz muito tempo, encontraríamos o seguinte posicionamento do Tribunal: o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, inscrito no inc. IX do art. 93 da CF/88, impede que a eventual omissão do Poder Judiciário em julgar o pedido de justiça gratuita acarrete o reconhecimento tácito do deferimento do benefício.

Era o que se observa no precedente firmado nos autos do AgRg no AREsp 483.356/DF. Colaciono (grifos meus):

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVOS EM RECURSO ESPECIAL. DESERÇÃO. JUSTIÇA GRATUITA POSTULADA NA ORIGEM. DEFERIMENTO TÁCITO PELA AUSÊNCIA DE PRONUNCIAMENTO JUDICIAL. DESCABIMENTO. PEDIDO ALTERNATIVO DE ABERTURA DE PRAZO PARA REALIZAÇÃO DO PREPARO. INVIABILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 511 CPC. 1. Contra a monocrática que negou provimento ao agravo por ausência de preparo e pela inadequação do pleito de Justiça Gratuita formulado perante o Superior Tribunal de Justiça, o recorrente aduz que já havia postulado o beneplácito da Justiça Gratuita em 29/2/2012, quando da interposição do Agravo perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, de modo que "não há como considerar que o manejo do Recurso Especial foi deserto dado o não recolhimento das custas processuais, mesmo porque não houve manifestação direta do Tribunal em negativa do pedido". 2. Não se coaduna com o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, da CF/88) a ilação de que a ausência de negativa do Tribunal de origem quanto ao pleito de Assistência Judiciária Gratuita implica deferimento tácito do pedido, em ordem a autorizar a interposição de recurso sem o correspondente preparo. 3. Por outro lado, o requerimento de abertura de prazo na instância Especial para a regularização do preparo recursal esbarra no texto do art. 511 do CPC, que exige seja o recolhimento das custas, do porte de remessa e de retorno comprovado "no ato de interposição do recurso", sob pena de deserção. 4. Agravo Regimental não provido. 
(REsp  AgRg no AREsp 483.356/DF, Corte Especial, Rel. Ministro  Herman Benjamin, j. 13/05/2014, DJe 23/05/2014)

Todavia, esse posicionamento do STJ acaba de ser alterado.

Ao julgar o AgRg no EAREsp 440.971/RS, no dia 03/02/2016, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça entendeu que a omissão do Judiciário referente a pedido de assistência judiciária gratuita deve atuar em favor da parte que requereu o benefício, presumindo-se o seu deferimento, mesmo em se tratando de pedido considerado somente no curso do processo, inclusive em instância especial.

O relator do recurso, Min. Raul Araújo, teceu sua fundamentação, a partir do reconhecimento de que a declaração de pobreza, feita por pessoa física que tenha por fim o benefício da assistência judiciária gratuita na forma do art. 4º da Lei 1.060/50, tem presunção de veracidade. Logo, para afastar essa presunção legal, exige-se decisão judicial fundamentada, quando impugnada pela parte contrária, ou quando o julgador buscar no processo informações que desprestigiem a referida declaração. Segundo o relator, pensar diferentemente implicaria tolher o direito constitucionalmente assegurado à parte.

A propósito, essa ideia de presunção de veracidade na declaração de hipossuficiência encontra-se no § 3º do art. 99 do NCPC, que dispõe: “§ 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.”    

Portanto, de acordo com o pensamento atual do STJ, a eventual omissão do Poder Judiciário, quanto ao pedido de concessão do benefício da justiça gratuita, milita em favor da parte a quem a gratuidade aproveitasse. Assim, tem-se um reconhecimento tácito do deferimento do benefício ante a não manifestação expressa do órgão julgador (juiz ou tribunal). O fundamento desse posicionamento reside na observação de que a declaração de hipossuficiência da parte é presumida verdadeira. Logo, o seu afastamento reclama decisão judicial devidamente motivada.         

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

RT COMENTA: PROCESSO CIVIL - Princípio da primazia da decisão de mérito


 

1 - Questão
Em que consiste o princípio da primazia da decisão de mérito no CPC/2015?

O princípio da primazia da decisão de mérito no CPC/2015 consiste em um comando legal segundo o qual o julgador deve, sempre que possível, dar preferência ao julgamento (solução) que resolva o mérito. Por esse princípio, a resolução do mérito adquire primazia (é prioritária) a todas as eventuais decisões que pudessem promover a extinção da demanda sem a resolução do mérito. Em resumo, sempre que for possível, cabe ao juiz decidir o mérito da demanda.

Legalmente, no texto do NCPC, tal princípio encontra-se consagrado no art. 4º do "códex":

Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

Do ponto de vista da aplicação do texto codificado, tal vetor normativo principiológico pode ser identificado no art. 282, § 2º, dispositivo que autoriza o juiz a desconsiderar defeitos processuais, quando a decisão de mérito não prejudicar aquele a quem aproveitaria o reconhecimento de uma nulidade.

Art. 282.  omissis

omissis

§ 2º Quando puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a decretação da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta.

Também encontramos exemplos de aplicação desse princípio na extinção do processo por meio do art. 317:

Art. 317.  Antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício.

Também nas disposições gerais da sentença e da coisa julgada por meio do art. 488:

Art. 488.  Desde que possível, o juiz resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria eventual pronunciamento nos termos do art. 485.

Em se tratando dos recursos excepcionais, o princípio da primazia aparece no § 3º do art. 1.029:

Art. 1.029 omissis

§ 3º O Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave.

Em todos esses exemplos, nota-se que o direcionamento adotado pelo CPC/2015 vai no sentido de que o órgão julgador deve, em regra, priorizar a decisão de mérito, esforçando-se para que a prestação jurisdicional entregue à parte seja meritória.