domingo, 27 de abril de 2014

RT Comenta: DIREITO CIVIL - Teoria da posse e usucapião especial rural


 
Prova: Advocacia-Geral da União - Procurador Federal (2013)
Tipo: Objetiva
Banca:
Na seção RT Comenta de hoje, escolhi uma questão muito interessante de Direito Civil para analisar. O tema é novamente a usucapião, pois confesso que gosto muito do estudo dos Direitos Reais, com sua terminologia técnica extremamente intrincada e sedutora. Ademais, como adoro História do Direito, sempre considero o fato histórico de que o Direito das Coisas foi palco de uma das mais impressionantes disputas doutrinárias da História do Direito, a opor dois gênios incontestáveis da ciência jurídica - os juristas alemães Friedrich Carl von Savigny e Rudolf von Ihering.
          Então espero que o leitor me acompanhe nessa jornada fascinante!      

Acerca do processo de desapropriação para a reforma agrária, de títulos da dívida agrária e da usucapião especial rural, julgue os próximos itens.
 
105 Considere a seguinte situação hipotética.
Em agosto de 2013, Pedro e Maria, casados sob o regime de comunhão parcial de bens, propuseram ação de usucapião especial rural, demonstrando que possuem como seu, há pelo menos dez anos, de forma ininterrupta, o imóvel rural X, de cinquenta e cinco hectares, onde residem com os filhos e produzem com o seu trabalho. Em julho de 2013, João propôs demanda na justiça, em que contesta a posse do imóvel X por Pedro e Maria e atesta que tal imóvel integra herança deixada por seu avô paterno.
Nessa situação, a justiça deve indeferir a demanda de João e conceder a Pedro e Maria a propriedade do referido imóvel, bem como o direito de se manterem na posse do terreno rural, haja vista o cumprimento dos requisitos constitucionais.

Ao elevar o direito de propriedade à categoria de direito fundamental (CF, art. 5º, XXII), o legislador constituinte tratou de limitá-lo pela imposição do atendimento à função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII).

Entre os mecanismos criados pelo próprio texto constitucional para assegurar a função social da propriedade encontra-se a usucapião especial rural. Trata-se de uma peculiar situação de aquisição do domínio ante a comprovação da posse prolongada, que ratifica a situação de fato do possuidor (juridicidade da posse ad usucapionem ou posse usucapível), após o decurso de um lapso temporal previsto em lei. No caso da usucapião, a “lei” é expressão de que me valho em seu sentido lato sensu, uma vez que tanto a Lei Fundamental quanto a lei infraconstitucional previram o instituto. In verbis:

Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Seja pela leitura do art. 191 da Constituição, seja pela do art. 1.239 do Código Civil, a posse necessita preencher alguns requisitos. Esse é um aspecto importante, a merecer destacamento, já que nem toda a situação de fato que vem a se encompridar no tempo pode ser qualificada de posse ad usucapionem – e, assim, justificar a aquisição originária da propriedade. A título de exemplo, temos o caso clássico do caseiro, que não pode ajuizar ação de usucapião do imóvel que administra, uma vez não ser considerado possuidor, senão mero detentor (fâmulo da posse). A esse raciocínio, aplica-se a teoria objetiva da posse, que foi desenvolvida pelo jurista alemão Rudolf von Ihering e adotada expressamente pelo legislador brasileiro no art. 1.196 do CC:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.   

Do ponto de vista processual, em casos como o do caseiro, e demais administradores da coisa alheia em geral, eventual propositura de ação de usucapião restaria mal sucedida. O motivo é que o fâmulo não preenche na íntegra as condições da ação. Ele não tem, de ordinário, legitimidade ad causam (não tem poder jurídico para conduzir validamente um processo, pois, em regra, as pessoas só podem ir a juízo, na condição de parte, quando postulam e defendem direito próprio, e não alheio, conforme o art. 6º do CPC) e nem interesse de agir (falta interesse-utilidade ao processo, que não pode propiciar a tutela jurisdicional pretendida pelo litigante, isto é, a aquisição do domínio jurídico pela posse usucapível). Logo, no exemplo do caseiro, o juiz estaria obrigado a proceder à extinção do processo sem resolução do mérito por carência de ação (CPC, art. 267, VI).   

A seguir o mesmo raciocínio, ainda à luz da teoria objetiva de Ihering, a lei civil contemplou outras hipóteses nas quais o poder de fato exercido sobre a coisa está impedido de originar direito possessório próprio. Assim, são meros detentores da coisa:

(a) os praticantes de atos provenientes de mera permissão ou tolerância, pois o proprietário que permite ou tolera age lealmente, portanto, não renuncia à sua posse, motivo pelo qual a posse precária (retida indevidamente) é posse injusta (CC, art. 1.200, a contrario sensu);

(b) os praticantes de atos violentos (o direito não se compadece com a violência, logo, nega ao esbulhador a proteção possessória) ou clandestinos (quem se apossa da coisa alheia às escondidas não goza de proteção possessória);

(c) os que ocupem bens de uso comum do povo (CC, art. 99, I) ou bens de uso especial (CC, art. 99, II), conforme preconiza o art. 100 do códex (“Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.”).

Essa breve digressão sobre a teoria da posse serve apenas para demonstrar ao leitor que nem toda posse é capaz de garantir ao seu titular a usucapião da coisa. Logo, nem toda posse é ad usucapionem, como nem todo bem é usucapto.

Por esse motivo, para fins didáticos, penso seja conveniente enumerar os requisitos da posse ad usucapionem genérica e, ato contínuo, as especificidades da usucapião rural.

Dessa maneira, a posse ad usucapionem, que permite a aquisição originária da propriedade pela prescrição aquisitiva, deve preencher genericamente os seguintes requisitos:   

1)      posse com animus domini: é a exteriorização da intenção de dono, isto é, de possuir a coisa como se sua fosse, a excluir o proprietário;

2)      posse mansa e pacífica (é a posse inconcussa, incontestada, contra a qual não há oposição);

3)      posse contínua durante determinado tempo (é o elemento temporal, mediante o qual a posse se converte em propriedade, uma vez expirado o prazo legal);

4)      posse justa (é a posse que, a contrario sensu do teor do art. 1.200 do CC, não se apresenta objetivamente viciada pela violência, clandestinidade ou precariedade);

5)      posse de boa-fé (é a posse exercida pelo possuidor que ignora o vício ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa, conforme art. 1.201 do CC);

6)      posse com justo título (interpretando esse conceito jurídico, o enunciado n. 86 da I Jornada de Direito Civil aderiu à interpretação abrangente: “86 – Art. 1.242: A expressão “justo título” contida nos arts. 1.242 e 1.260 do Código Civil abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independentemente de registro.”).      

Repare o leitor que fiz uso propositalmente do advérbio “genericamente” para identificar a posse ad usucapionem. E fi-lo em atenção à sistemática dos Direitos Reais no Código Civil, que, nalgumas hipóteses, dispensa ora um ora outro desses requisitos. É o que ocorre, exemplificativamente, com as usucapiões especiais, seja a urbana, pro misero ou pro moradia (CF, art. 183, caput, c/c art. 1.240 do CC c/c art. 9ª da Lei 10.257/01), seja a rural, pro labore (CF, art. 191, caput, c/c art. 1.239 do CC c/c a Lei 6.969/81). Em ambas, o legislador, para efeito de reconhecimento da prescrição aquisitiva do domínio, contenta-se com a posse exercida com animus domini, mansa e pacífica, pelo lapso temporal ex vi legis. Numa palavra, os requisitos da boa-fé e do justo título são prescindíveis.  

Sendo assim, a usucapião especial rural deve preencher, à luz do art. 191 da CF/88, os seguintes requisitos específicos:

1)      posse com animus domini, mansa e pacífica, contínua e duradora, pelo prazo de 5 anos;

2)      posse sobre área de terra, localizada em zona rural, com extensão não superior a 50 ha;

3)      utilização do imóvel para fins de moradia;

4)      utilização produtiva do imóvel (a produtividade é aferida por meio do uso da terra em atividades econômicas que sejam capazes de propiciar a subsistência da pessoa ou da sua família, independentemente de o trabalho ser desenvolvido no campo da agricultura, da pecuária, do extrativismo etc.).

5)      não ser o usucapiente proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Observe o leitor que o Poder Constituinte dispensou os requisitos da boa-fé e do justo título, que, dessa forma, ficam presumidos iure et de iure (presunção absoluta) na hipótese. Daí a doutrina considerar que, tal qual sucede na usucapião extraordinária (CC, art. 1.238), as usucapiões especiais urbana e rural têm requisito único, isto é, a posse justa, sem vícios, que satisfaz os parâmetros legais.

Agora, após essa exposição teórica inicial, o leitor pode notar que o caso concreto proposto pela banca examinadora apresenta pelo menos dois equívocos. O primeiro, e mais flagrante, está no limite territorial. De fato, o caput do art. 191 da Constituição estipula que o imóvel a ser usucapido não pode ultrapassar o limite de cinquenta hectares. Trata-se de aspecto dos mais relevantes. Prova disso é que, na IV Jornada de Direito Civil, a comissão de juristas ali reunida rejeitou a tese doutrinária que admitia a aquisição originária da propriedade pela via da usucapião especial (rural ou urbana, tanto faz), consagrando tal entendimento no Enunciado nº 313:

313 – Arts. 1.239 e 1.240. Quando a posse ocorre sobre área superior aos limites legais, não é possível a aquisição pela via da usucapião especial, ainda que o pedido restrinja a dimensão do que se quer usucapir.

 
Logo, só a circunstância de a ação proposta pelo casal João e Maria estar lastreada na tentativa de usucapir área de 55 ha já imporia de per si a improcedência do pedido dos autores.

Mas não só isso.

Note o leitor que um terceiro, chamado João, propôs demanda na justiça em julho de 2013, a contestar a posse do imóvel X por Pedro e Maria. Ou seja, à alegada usucapião também faltaria o requisito da posse mansa e pacífica, visto que a mansidão/pacificação da situação de fato dos possuidores foi objeto de oposição judicial pretérita.

Portanto, considerando todos esses argumentos, o item 105 está errado.  

quarta-feira, 23 de abril de 2014

DA ISENÇÃO TRIBUTÁRIA DOS SERVIÇOS SOCIAIS AUTÔNOMOS: estudo de sua compatibilidade com a imunidade das entidades beneficentes de assistência social à luz do art. 195, § 7º, da CF/88 e da jurisprudência do STJ

Min. Mauro Campbell Marques, relator do REsp 1.430.257/CE no STJ.
Ouvindo atualmente: "Brahms: the symphonies" (2013), 
da Gewandhausorchester, sob a regência do maestro Riccardo Chailly.

 
 
Quando se fala na acepção doutrinária da expressão Administração Pública, parte da doutrina põe em relevo a dicotomia existente entre atividade administrativa, de um lado, e, de outro, os sujeitos (agentes, órgãos e pessoas jurídicas) que se dedicam à execução dessas mesmas atividades. No primeiro caso, tem-se o sentido objetivo da expressão. No segundo, destaca-se o seu sentido subjetivo.

Analisando o conceito sob a ótica subjetiva, a Administração Pública comporta nova classificação doutrinária. Desta vez, coloca-se em relevo os conceitos de Administração Pública Direta, formado pelos entes políticos que desempenham centralizadamente a atividade administrativa (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), e de Administração Pública Indireta, composta pelas pessoas jurídicas que são criadas (ou autorizadas para tal) com vistas a dar cabo da função administrativa descentralizadamente (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista).      

Contudo, a doutrina administrativista reconhece também a existência de outras entidades voltadas à prestação, sem fins lucrativos, de serviços de interesse coletivo. Não obstante não integrem propriamente o conceito de Administração Pública Indireta, tais entidades auxiliam o Estado no desempenho de atividades não exclusivamente públicas. Por isso se diz que tais pessoas jurídicas de direito privado caminham “a latere” do Poder Público. São, assim, entidades paraestatais – também conhecidas como entes de cooperação.    

Entre os entes de cooperação governamental, a doutrina majoritária costuma identificar os “serviços sociais autônomos”, cujo conceito remete às pessoas jurídicas de direito privado que, atuando paralelamente ao Estado, prestam serviço de utilidade pública.

Basicamente, os serviços sociais autônomos abrangem os entes paraestatais integrantes do chamado “sistema S”. Desse modo, pessoas jurídicas de direito privado como o SESI (Serviço Nacional da Indústria), SESC (Serviço Nacional do Comércio), SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rurar), SEST (Serviço Social do Transporte), SENAT (Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte) e o SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) são passíveis de serem classificadas como serviços sociais autônomos.

Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 159) destaca ainda o regime jurídico-tributário peculiar ao conceito de “serviços sociais autônomos”:

Para nós, a expressão calha bem para designar sujeitos não-estatais, isto é, de direito privado, que, em paralelismo com o Estado, desempenham cometimentos que este poderia desempenhar por se encontrarem no âmbito de interesses seus, mas não exclusivamente seus. Caracterizam-se pelo fato de que o Poder Público enfaticamente os assume como colaboradores emprestando-lhes o significativo amparo de colocar a seu serviço o poder de império de que dispõe ao instituir tributo em favor deles, como ocorre justamente com os serviços sociais autônomos, circunstância esta que lhes confere uma peculiar singularidade entre os sujeitos alheios à Administração indireta que concorrem para objetivos sociais de interesse público.  

O destaque dado pelo autor à matéria tributária não é sem razão. De fato, o Estado muita vez adota a prática de delegar a capacidade tributária ativa aos entes paraestatais, de maneira a lhes permitir o sustento de suas atividades institucionais. É quando ocorre o fenômeno da parafiscalidade, de que é corolário a possibilidade, inscrita no art. 240 da Constituição, de as pessoas do “Sistema S” cobrarem contribuições sociais gerais, tecnicamente designadas pelos tributaristas como “contribuições parafiscais”.

Art. 240. Ficam ressalvadas do disposto no art. 195 as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical

A parafiscalidade clássica, presente na possibilidade de cobrança de contribuições sociais gerais pelos serviços sociais autônomos, legitima-os ainda como destinatários do produto da arrecadação desses tributos. O fundamento é de fácil percepção: as contribuições parafiscais asseguram a sustentabilidade financeira necessária para a continuidade da prestação de serviços de interesse público pelos entes de cooperação.

A jurisprudência é pródiga em exemplos de casos concretos que aludem à cobrança das contribuições sociais gerais em favor dos serviços sociais autônomos. Colaciono (grifos meus):

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POPULAR. SEBRAE/SC NO PÓLO PASSIVO. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO: JUSTIÇA ESTADUAL.
1. O SEBRAE possui natureza de entidade paraestatal, constituído na forma de serviço social autônomo mantido por contribuições parafiscais, sujeitando-se ao controle do bom uso de seus recursos pela via da ação popular. Tal equiparação legal, porém, não tem o condão de conferir à Justiça Federal a competência para processar e julgar o feito.
2. Precedentes desta Corte.
3. Recurso especial provido para assegurar que a ação popular seja julgada perante a Justiça Estadual.
(STJ, T1 – Primeira Turma, REsp 530.206/SC, Rel. Min. José Delgado, j. 06/11/2003, p. DJ 19/12/2003).

TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PARA O SESI E PARA O SENAI. EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE. EXIGIBILIDADE. ART. 110 DO CTN. MATÉRIA CONSTITUCIONAL.
1. As empresas prestadoras de serviço de transporte sujeitam-se ao recolhimento das contribuições sociais destinadas ao Sesi e ao Senai, e, a partir da edição da Lei 8.706/93, ao Sest e ao Senat.
2.  Agravo Regimental não provido.
(STJ, T2 – Segunda Turma, AgRg no AREsp 146.139/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 29/05/2012, p. DJe 14/06/2012).

TRIBUTÁRIO. SESC/SENAC E ADICIONAL AO SEBRAE. CONTRIBUIÇÕES PARAFISCAIS. INCIDÊNCIA SOBRE A FOLHA DE SALÁRIOS (ART. 195, I DA CF/88). ATIVIDADE DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. NOVO CONCEITO - ART. 966 DO CÓDIGO CIVIL EM VIGOR. LEGALIDADE DA COBRANÇA. PRECEDENTES DO STJ. APELAÇÃO IMPROVIDA. 1 - A matéria trazida aos autos diz respeito à cobrança da contribuição social destinada ao SESC/SENAC e SEBRAE. 2 - As contribuições sociais parafiscais, dentre elas o SESC, SENAC são destinadas aos órgãos que têm como finalidade o ensino fundamental, o profissionalizante, e outros órgãos que visam à melhoria aos serviços prestados pelas empresas. 3 - O legislador, ao criar o SEBRAE, instituiu um adicional às contribuições já existentes, portanto, a mesma é calculada sobre a folha de salários, ou seja, sobre fonte definida no inciso I do art. 195 da Constituição Federal de 1988. 4 - As empresas prestadoras de serviço estão sujeitas à cobrança da contribuição para os serviços sociais autônomos, entre os quais o SESC, SENAC e o SEBRAE, porque estão enquadradas no art. 577 da CLT e seu anexo II, portanto, vinculadas ao sistema sindical, e também pelo fato de auferirem lucro - por força de seus atos constitutivos -, à luz do conceito moderno de empresa. 5 - No presente caso, embora exerça atividade de prestação de serviços, a empresa não está dispensada da responsabilidade de contribuir para o SESC/SENAC e SEBRAE, haja vista que o objetivo do Serviço Social Autônomo é exatamente fomentar a riqueza do setor produtivo, no tocante às micro ou pequenas empresas, voltadas estas, exatamente para o desenvolvimento do comércio, indústria e dos serviços. 6 - Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (AGRG NO AG Nº 985253/MG; AGRG NO AG Nº 950.096 - SP). 7 - Apelação improvida. (TRF-5, Segunda Turma, AC: 428829 CE 0002591-35.2002.4.05.8100, Rel. Des. Rogério Fialho Moreira, j. 07/10/2008, p. DJ 22/10/2008 - Página: 217 - Nº: 205 - Ano: 2008)

APELAÇÃO. CONTRIBUIÇÕES PARAFISCAIS. CONTRIBUIÇÃO GERAL AO SENAI. AÇÃO DE COBRANÇA. PROCEDÊNCIA. EMPRESA-RÉ QUE DESENVOLVE ATIVIDADE EQUIPARADA À INDUSTRIAL, CONTENDO MAIS DE 500 FUNCIONÁRIOS. SUJEIÇÃO AO RECOLHIMENTO DA CONTRIBUIÇÃO ADICIONAL E DA GERAL. RECURSO DA RÉ IMPROVIDO. O acervo probatório coligido nestes autos é robusto em fornecer um seguro juízo de certeza no sentido da procedência do pedido da autora. (TJ-SP, 31ª Câmara de Direito Privado, APL: 01018264620128260100 SP 0101826-46.2012.8.26.0100, Rel. Des. Adilson de Araujo, j. 23/07/2013, p. 23/07/2013)

Mas o regime jurídico-tributário especial dos serviços sociais autônomos não se esgota na condição de entidades delegatárias da capacidade tributária ativa concernente à cobrança das contribuições sociais gerais. Há que se considerar também as normas isentivas de exação tributária previstas pelo legislador subalterno.

Como é cediço, a isenção é instituto legal que autoriza a dispensa do pagamento de tributo. Não se trata de imunidade, que pressupõe a não outorga de competência tributante ao ente federado, mas sim de técnica que impede a constituição do crédito tributário pelo lançamento diante da ocorrência do fato gerador de obrigação tributária.

Nesse contexto, a Lei 2.613/55, nos seus arts. 12 e 13, atribuiu aos serviços sociais autônomos ampla isenção fiscal. In verbis:

Art 12. Os serviços e bens do S. S. R. gozam de ampla isenção fiscal como se fôssem da própria União.

Art 13. O disposto nos arts. 11 e 12 desta lei se aplica ao Serviço Social da Indústria (SESI), ao Serviço Social do Comércio (SESC), ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e ao Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC).  

Note-se que o art. 12 é enfático: os serviços sociais autônomos gozam de ampla isenção fiscal como se fossem da própria União. Com isso, fica patente que os serviços e bens dos entes de cooperação, integrantes do “Sistema S”, estão protegidos pela norma isentiva, que sequer discriminou os tributos aos quais se aplica.

Em abono à isenção dos serviços sociais autônomos, o próprio legislador, ulteriormente, editou a Lei 8.706/93, diploma legal que, ao dispor acerca da criação do SEST e do SENAT, estendeu a isenção prevista no art. 13 da Lei 2.613/55 para os serviços sociais autônomos recém criados:


Pois foi com base na Lei 2.613/55 que a Segunda Turma do STJ, ao julgar o REsp 1.430.257/CE, afastou a cobrança de tributos na importação de bens pelo SENAI. Na oportunidade, a Receita Federal autuara a instituição pelo fato de que, ao importar uma impressora, não recolhera os tributos devidos pela operação, a saber: Imposto de Importação, Cofins-importação e PIS/PASEP-importação.   

A questão foi submetida ao TJCE, que reconheceu a isenção favorável ao SENAI. Eis o acórdão prolatado:

TRIBUTÁRIO. APELAÇÃO. ENTIDADE PARAESTATAL. SENAI.  IMPORTAÇÃO DE IMPRESSORA. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. ENTIDADE EDUCACIONAL E DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. CONFIGURAÇÃO.  REMUNERAÇÃO DE SEUS DIRIGENTES. IRRELEVÂNCIA. DIRETOR-EMPREGADO QUE APENAS CUMPRE ORDENS EMANADAS DO CONSELHO REGIONAL CUJOS MEMBROS NÃO SÃO REMUNERADOS. RECURSO IMPROVIDO.

1. No presente caso, por força da importação de uma impressora offset, o SENAI foi autuado pela Receita Federal, em razão do não recolhimento do imposto de importação, da COFINS-importação e do PIS/PASEP-importação sobre a  operação.

2. Ocorre que a jurisprudência dos Tribunais do País já firmou orientação no  sentido de atestar a condição do SENAI como entidade educacional e de  assistência social, o que, inclusive, encontra-se previsto nos arts. 11 e 12 da Lei  2.613/55.

3. Da análise do Decreto 494/62 que aprovou o Regimento do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, verifica-seque o Diretor do SENAI, trata-se, na verdade, de um diretor-empregado, eis que apenas cumpre ordens emanadas do Conselho Regional, seguindo as diretrizes do Conselho Nacional, sendo que para os membros dos Conselhos não há previsão de remuneração.

4. Assim, o fato de o SENAI remunerar seus diretores-empregados (fls. 175/178) não desvirtua a sua natureza de entidade imune. É esse o entendimento da própria União, exarada através do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF: Processo 13851.001325/2002-19, recurso 134383, Sessão de: 15 de outubro de  2002, Acórdão: 107.07340).  

Contra essa decisão, a Fazenda Pública se insurgiu mediante a interposição de recurso especial. Perante o STJ, alegou que a isenção dos serviços sociais autônomos submeter-se-ia às exigências estipuladas no art. 55 da Lei 8.212/91, por força do disposto no art. 195, § 7º, da CF/88, cuja redação ponho em destaque:

Art. 195 omissis

§ 7º - São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.

Da leitura desse dispositivo, além da atecnia do legislador constituinte (que chamou de “isenção” uma norma imunitória), nota-se que inexiste restrição à imunidade que favorece as entidades beneficentes de assistência social. O que existe, isto sim, é uma norma de eficácia limitada, a demandar o preenchimento dos requisitos estatuídos na lei integradora. Como não há restrição, sequer se pode falar em regra de exceção que mereça ser interpretada restritivamente. Não cabe ao intérprete restringir a executoriedade da norma quando o legislador não deliberou fazê-lo.

Assim, nada obsta a que as regras legais de isenção, previstas nos arts. 12 e 13 da Lei 2.613/55, convivam harmoniosamente com o comando constitucional imunitório do art. 195, § 7º, da Constituição. Foi como decidiu o STJ, em acórdão que ficou desta maneira ementado:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535, CPC. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. PIS - IMPORTAÇÃO. COFINS - IMPORTAÇÃO. ISENÇÃO DAS IMPORTAÇÕES FEITAS PELO SENAI. VIGÊNCIA DOS ARTS. 12 E 13 DA LEI N. 2.613/55.
1. Não viola o art. 535, do CPC, o acórdão que decide de forma suficientemente fundamentada, não estando obrigada a Corte de Origem a emitir juízo de valor expresso a respeito de todas as teses e dispositivos legais invocados pelas partes.
2. As importações feitas pelo SENAI gozam da isenção prevista nos arts. 12 e 13 da Lei n. 2.613/55.
3. Irrelevante a classificação do SENAI como entidade beneficente de assistência social ou não, pois sua isenção decorre diretamente da lei (arts. 12 e 13 da Lei n. 2.613/55) e não daquela condição que se refere à imunidade constitucional (art. 195, §7º, da CF/88). O raciocínio também exclui a relevância de se verificar o cumprimento dos requisitos do art. 55, da Lei n. 8.212/91 (agora dos arts. 1º, 2º, 18, 19, 29 da Lei n. 12.101/2009), notadamente, a existência de remuneração ou não de seus dirigentes.
4. Recurso especial não provido.
(STJ, T2 – Segunda Turma, REsp 1.430.257/CE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 18/02/2014, p. DJe 24/02/2014).

No limite, a decisão do STJ assinala pelo menos dois pontos importantes. Em primeiro lugar, reafirma a isenção que beneficia amplamente os serviços sociais autônomos - tal qual sucedeu em relação ao SENAI no caso concreto. Em segundo lugar, deixa claro que inexiste antinomia entre as normas isentivas dos arts. 12 e 13 da Lei 2.613/55 e a norma imunitória do art. 195, § 7º, da CF/88.

Com efeito, examinando-se a questão com acuidade, observa-se que os incisos do art. 29 da Lei 12.101/09, que regulamentou os requisitos infraconstitucionais para a concessão da imunidade de contribuições previdenciárias em favor das entidades beneficentes de assistência social, não proíbem o gozo concomitante de outros benefícios fiscais pelo ente beneficiário. Reproduzo o dispositivo:

Art. 29.  A entidade beneficente certificada na forma do Capítulo II fará jus à isenção do pagamento das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, desde que atenda, cumulativamente, aos seguintes requisitos:

I - não percebam, seus dirigentes estatutários, conselheiros, sócios, instituidores ou benfeitores, remuneração, vantagens ou benefícios, direta ou indiretamente, por qualquer forma ou título, em razão das competências, funções ou atividades que lhes sejam atribuídas pelos respectivos atos constitutivos; (Redação dada pela Lei nº 12.868, de 2013)

II - aplique suas rendas, seus recursos e eventual superávit integralmente no território nacional, na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais;

III - apresente certidão negativa ou certidão positiva com efeito de negativa de débitos relativos aos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e certificado de regularidade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS;

IV - mantenha escrituração contábil regular que registre as receitas e despesas, bem como a aplicação em gratuidade de forma segregada, em consonância com as normas emanadas do Conselho Federal de Contabilidade;

V - não distribua resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob qualquer forma ou pretexto;

VI - conserve em boa ordem, pelo prazo de 10 (dez) anos, contado da data da emissão, os documentos que comprovem a origem e a aplicação de seus recursos e os relativos a atos ou operações realizados que impliquem modificação da situação patrimonial;

VII - cumpra as obrigações acessórias estabelecidas na legislação tributária;

VIII - apresente as demonstrações contábeis e financeiras devidamente auditadas por auditor independente legalmente habilitado nos Conselhos Regionais de Contabilidade quando a receita bruta anual auferida for superior ao limite fixado pela Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006.

A única regra legal que restringe a concessão da imunidade das entidades beneficentes de assistência social encontra-se encartada no art. 30 da Lei 12.101/09, mas que em nada se relaciona a benefícios fiscais sobressalentes. In verbis:

Art. 30.  A isenção de que trata esta Lei não se estende a entidade com personalidade jurídica própria constituída e mantida pela entidade à qual a isenção foi concedida.

Por esse motivo, é forçoso concluir, em acordo com a jurisprudência do STJ, que a isenção tributária dos serviços sociais autônomos, ex vi dos arts. 12 e 13 da Lei 2.613/55, não fica condicionada ao preenchimento dos requisitos legais exigidos para a imunidade de contribuição para a seguridade social, concedida às entidades beneficentes de assistência social à luz do § 7º do art. 195 da Constituição. Sumamente, havendo lei a prever a dispensa do pagamento do tributo devido, ela é de per si suficiente para garantir o benefício ao contribuinte do “Sistema S".
 
REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Lei nº 2.613, de 23 de setembro de 1955. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Lei nº 8.706, de 14 de setembro de 1993. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Lei nº 12.101, de 27 de novembro de 2009. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 530.206/SC, da Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, j. 06/11/2003, p. DJ 19/12/2003. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso especial nº 146.139/MG, da Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 29/05/2012, p. DJe 14/06/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso especial nº 146.139/MG, da Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 29/05/2012, p. DJe 14/06/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1.430.257/CE, da Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 18/02/2014, p. DJe 24/02/2014. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 01018264620128260100 SP, da 31ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Adilson de Araújo, j. 23/07/2013, p. DJ 23/07/2013. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação nº 428829 CE 0002591-35.2002.4.05.8100, da Segunda Turma, Rel. Des. Rogério Fialho Moreira, j. 07/10/2008, p. DJ 22/10/2008. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 24 de abr. 2014.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009. 1102 p

terça-feira, 22 de abril de 2014

RT Comenta: DIREITO ADMINISTRATIVO - Usucapião de bens públicos dominicais e o enunciado nº 340 da súmula de jurisprudência do STF


Prova: Procurador do Distrito Federal (2013/2014)
Tipo: Objetiva
Banca:
Na seção RT Comenta de hoje, escolhi uma questão de Direito Administrativo para comentar. O assunto me é familiar, já que me deparo frequentemente com causas a envolver direitos reais na Promotoria. Escolhi-o, ainda, por se cuidar de tema que se situa na fronteira entre os subsistemas do Direito Administrativo e o Direito Civil. Submeto o texto aos leitores, pois.  

Relativamente aos bens públicos, julgue o item abaixo.

85 É impossível a prescrição aquisitiva de bens públicos dominicais, inclusive nos casos de imóvel rural e de usucapião constitucional pro labore.

O julgamento desse item pressupõe a compreensão do regime jurídico aplicável aos bens públicos dominicais.

No entanto, antes de tratar propriamente do regime jurídico, retomarei alguns conceitos que considero importantes para o deslinde da questão.

Inicialmente, é preciso recordar que o Livro II da Parte Geral do Código Civil dedica-se, em título único, a normatizar as diferentes classes de bens existentes no ordenamento jurídico. Várias são as classificações apresentadas pelo legislador nas seções seguintes. Para fins didáticos, e sem embargo das diferenças de classificações aduzidas por tal ou qual doutrinador, a classificação dos bens pode ser sumariada consoante alguns critérios, a saber: (a) quanto à tangibilidade (bens corpóreos, materiais ou tangíveis x bens incorpóreos, imateriais ou intangíveis); (b) quanto à mobilidade (bens imóveis x bens móveis); (c) quanto à fungibilidade (bens infungíveis x bens fungíveis); (d) quanto à consuntibilidade (bens consumíveis x bens inconsumíveis); (e) quanto à divisibilidade (bens divisíveis x bens indivisíveis); (f) quanto à individualidade (bens singulares ou individuais x bens coletivos ou universais); (g) quanto aos bens reciprocamente considerados (bens principais ou independentes x bens acessórios ou dependentes); (h) quanto ao titular do domínio (bens particulares ou privados x bens públicos ou do Estado).     

É precisamente a classificação dos bens quanto ao titular do domínio que importa para o deslinde da questão. Nesse sentido, os bens podem ser particulares (privados) ou públicos (do Estado). A consulta ao art. 98 do CC é esclarecedora:

Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

Como se vê na redação do dispositivo supra, o legislador adotou, na definição dos bens particulares, um critério a contrario sensu ao de bens públicos. Por outras palavras, são particulares todos aqueles bens, pertencentes a pessoas naturais ou jurídicas, que não forem bens públicos. E o que são, afinal, bens públicos?  São os bens integrantes do patrimônio do Estado num sentido lato. Isto é, bens públicos são aqueles bens que pertencem às pessoas jurídicas de direito público interno, podendo ser qualquer das unidades federadas na forma de Administração Pública Direta (União, Estados, Distrito Federal, Municípios) ou Indireta (autarquias e fundações públicas de direito público).

Vale lembrar que o art. 41 do códex conceitua as “pessoas jurídicas de direito público interno”:

Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:

I - a União;

II - os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;

III - os Municípios;

IV - as autarquias, inclusive as associações públicas; (Redação dada pela Lei nº 11.107, de 2005)

V - as demais entidades de caráter público criadas por lei.

Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito público, a que se tenha dado estrutura de direito privado, regem-se, no que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas deste Código.

É ainda relevante ressaltar que o rol do art. 98 do CC, enquanto baliza do critério classificatório que distingue o bem público do privado não é rol taxativo (numerus clausus), e sim exemplificativo (numerus apertus), consoante o pensamento doutrinário majoritário, ora consagrado no enunciado n. 297 da IV Jornada de Direito Civil:

287 – Art. 98. O critério da classificação de bens indicado no art. 98 do Código Civil não exaure a enumeração dos bens públicos, podendo ainda ser classificado como tal o bem pertencente a pessoa jurídica de direito privado que esteja afetado à prestação de serviços públicos.

A classificação dos bens públicos exposta acima, por sua vez, comporta uma subdivisão. O próprio legislador cuidou de expô-la didaticamente no art. 99 do códex:

Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;

III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.

Dessa maneira, temos que, à luz do CC, os bens públicos subdividem-se em:

a)      Bens de uso comum do povo (CC, art. 99, I): são também chamados de “bens do domínio público” e representam aqueles bens que se encontram à disposição de uso por toda a coletividade. São bens que qualquer um pode utilizar. Ex.: praças, rios, praias, ruas, estradas etc.

b)      Bens de uso especial (CC, art. 99, II): são também chamados de bens do patrimônio administrativo, uma vez que abrangem os bens que são utilizados para a prestação de serviços públicos. A essa destinação especial, que coloca o bem como ferramenta ou instrumento de execução de serviço público, dá-se o nome de afetação. A supressão dessa destinação especial, num movimento inverso, é que se chama de desafetação do bem. Ex.: prédio de uma escola pública, prédio do Ministério Público, cemitério público, museu do Estado, aeroporto etc.

c)      Bens dominicais (CC, art. 99, III): são também conhecidos pela sua expressão sinônima de “bens dominiais” (posição da doutrina majoritária, ressalto), correspondendo àqueles bens que, não obstante componham o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, não possuem uma destinação especial, não estão incontinênti afetados à prestação de algum serviço público. Costuma-se dizer em doutrina que a determinação do caráter dominical de um bem é aferida residualmente, ou seja, se o bem não tem finalidade pública, não tem destinação específica, não está afetado à execução de serviço público, então o bem é dominical. Ex.: terras devolutas, terras de marinha, mar territorial, bens móveis inservíveis, jazidas minerais etc.     

Visto a classificação de bens no Código Civil, e esclarecido o conceito de bens dominicais, agora importa considerar as características que peculiarizam o seu regime jurídico dos bens públicos no Direito Administrativo.

Nesse prisma, a doutrina administrativista elenca pelo menos quatro regras que qualificam o regime jurídico específico dos bens públicos. Ei-las: 1) inalienabilidade (de ordinário, os bens públicos não podem ser alienados, de modo que o administrador não pode dispor livremente desses bens, não dispondo de liberalidade na gestão do patrimônio estatal); 2) impenhorabilidade (em regra, os bens públicos não podem ser objeto de medidas judiciais constritivas, tais quais a penhora, o arresto, o sequestro, evitando assim que sejam alienados como os bens privados); 3) não gravação por direitos reais de garantia (em regra, não se pode impor gravame ao bem público, que, desse modo, fica livre de ser gravado pelos direitos reais de garantia, a exemplo do penhor, da hipoteca, da anticrese, nos marcos do “vínculo real” estipulado pelo art. 1.419 do Código) e 4) imprescritibilidade (regra geral, os bens públicos são imprescritíveis, não se lhes aplicando os prazos assecuratórios da prescrição aquisitiva).   

É importante assinalar que, das quatro regras que apontei acima como sendo características do regime jurídico aplicável aos bens públicos, algumas delas sofrem variações de conformidade com a subclassificação do bem. Exemplifico. Os bens dominicais, em razão de não estarem afetados à execução de serviço público, podem ser alienados, desde que, obviamente, observadas as normas legais. É uma exceção, por conseguinte, à regra da inalienabilidade dos bens públicos, que retira do administrador o poder de dispor do patrimônio estatal. Logicamente, em sentido contrário, os bens de uso comum do povo e bens de uso especial, em face da sua afetação à finalidade pública, não podem ser alienados (constituem o patrimônio indisponível do Poder Público). É a conclusão que se extrai da leitura dos arts. 100 e 101 do CC:

Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.

Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.

Entretanto, quando se trata da regra da imprescritibilidade, aí pouco importa a subclassificação do bem. Seja ele de uso comum do povo, de uso especial ou dominical, o bem público nunca pode ser usucapido. Em outros termos, a prescrição aquisitiva, cuja expiração de prazo enseja a aquisição originária da propriedade pela usucapião, não se aplica.   

É curioso notar que essa regra não estava explícita na conformação redacional do CC-1916, cujo art. 67 era dúbio (“Art. 67. Os bens de que trata o artigo antecedente só perderão a inalienabilidade, que lhes é peculiar, nos casos e forma que a lei prescrever.”). Por esse motivo, o STF, a fim de salvaguardar o imprescritibilidade do patrimônio estatal, editou o enunciado nº 340 da sua súmula de jurisprudência:  

STF Súmula nº 340 

Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.

Em que pese sua longevidade (o enunciado é datado de 13/12/1963), a tese jurídica nele cristalizada continua plenamente aplicável. Com muito mais razão após o advento do Código Civil de 2002, cujo art. 102 é expresso em não admitir os efeitos da prescrição aquisitiva sobre os bens públicos. In verbis:

Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.

Na verdade, ao acrescentar o art. 102 ao códice, tudo o que o legislador subalterno fez foi adaptar a lei civil infraconstitucional ao regramento prescrito na Constituição de 1988. Com efeito, a Lei Fundamental brasileira, em mais de uma passagem, consigna a vedação da usucapião de bens públicos, consoante se percebe da redação conjugada dos arts. 183, § 3º, e 191, parágrafo único. In verbis:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

É de se notar a relevância desses dois comandos constitucionais no contexto da questão. De um lado, o art. 183 consagra a figura inovadora da usucapião especial urbana (usucapião pro moradia). De outro giro, o art. 191 estatui a usucapião rural (usucapião pro labore). Em ambas as hipóteses, portanto, o legislador constituinte afastou a possibilidade da aquisição originária da propriedade de bens públicos pelo decurso do tempo. Em suma, explicitou definitivamente que a imprescritibilidade é regra do regime jurídico dos bens públicos que nem mesmo o tempo tem o condão de cabalar.   

Finalmente, friso que a jurisprudência do STJ, já de longa data, obsta a usucapião de bens públicos (aí incluídos os bens dominicais, obviamente). É o que se nota desta ementa, onde se alude diretamente ao enunciado nº 340 da súmula de jurisprudência do STF:

Ação reivindicatória. Usucapião como defesa. Bem dominical. Súmula nº 340 do Supremo Tribunal Federal.
1. Tratando-se de bem dominical, não é possível a usucapião, nos termos da Súmula nº 340 do Supremo Tribunal Federal.
2. Recurso especial conhecido e provido.
(STJ, T3 - Terceira Turma, REsp 481.959/RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 21/08/2003, p. DJ 28/10/2003).    

Em outro julgado, bem mais recente, o leitor pode verificar que o STJ mantém inalterado a aplicação pacífica do enunciado nº 340 da súmula de jurisprudência do STF, a vedar a usucapião de bem público – aí incluído o bem público dominial. Colaciono (grifos meus):

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. USUCAPIÃO. MODO DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE. TERRENO DE MARINHA. BEM PÚBLICO. DEMARCAÇÃO POR MEIO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINADO PELO DECRETO-LEI N. 9.760/1946. IMPOSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DA USUCAPIÃO, POR ALEGAÇÃO POR PARTE DA UNIÃO DE QUE, EM FUTURO E INCERTO PROCEDIMENTO DE DEMARCAÇÃO PODERÁ SER CONSTATADO QUE A ÁREA USUCAPIENDA ABRANGE A FAIXA DE MARINHA. DESCABIMENTO. 1. Embora seja dever de todo magistrado velar a Constituição Federal, para que se evite supressão de competência do egrégio STF, não se admite apreciação, em sede de recurso especial, de matéria constitucional, ainda que para viabilizar a interposição de recurso extraordinário. 2. A usucapião é modo de aquisição originária da propriedade, portanto é descabido cogitar em violação ao artigo 237 da Lei 6.015/1973, pois o dispositivo limita-se a prescrever que não se fará registro que dependa de apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro. Ademais, a sentença anota que o imóvel usucapiendo não tem matrícula no registro de imóveis. 3. Os terrenos de marinha, conforme disposto nos artigos 1º, alínea a, do Decreto-lei 9.760/46 e 20, VII, da Constituição Federal, são bens imóveis da União, necessários à defesa e à segurança nacional, que se estendem à distância de 33 metros para a área terrestre, contados da linha do preamar médio de 1831. Sua origem remonta aos tempos coloniais, incluem-se entre os bens públicos dominicais de propriedade da União, tendo o Código Civil adotado presunção relativa no que se refere ao registro de propriedade imobiliária, por isso, em regra, o registro de propriedade não é oponível à União 4. A Súmula 340/STF orienta que, desde a vigência do Código Civil de 1916, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião, e a Súmula 496/STJ esclarece que "os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União". 5. No caso, não é possível afirmar que a área usucapienda abrange a faixa de marinha, visto que a apuração demanda complexo procedimento administrativo, realizado no âmbito do Poder Executivo, com notificação pessoal de todos os interessados, sempre que identificados pela União e certo o domicílio, com observância à garantia do contraditório e da ampla defesa. Por um lado, em vista dos inúmeros procedimentos exigidos pela Lei, a exigir juízo de oportunidade e conveniência por parte da Administração Pública para a realização da demarcação da faixa de marinha, e em vista da tripartição dos poderes, não é cabível a imposição, pelo Judiciário, de sua realização; por outro lado, não é também razoável que os jurisdicionados fiquem à mercê de fato futuro, mas, como incontroverso, sem qualquer previsibilidade de sua materialização, para que possam usucapir terreno que já ocupam com ânimo de dono há quase três décadas. 6. Ademais, a eficácia preclusiva da coisa julgada alcança apenas as questões passíveis de alegação e efetivamente decididas pelo Juízo constantes do mérito da causa, e nem sequer se pode considerar deduzível a matéria acerca de tratar-se de terreno de marinha a área usucapienda. 7. Quanto à alegação de que os embargos de declaração não foram protelatórios, fica nítido que não houve imposição de sanção, mas apenas, em caráter de advertência, menção à possibilidade de arbitramento de multa; de modo que é incompreensível a invocação à Súmula 98/STJ e a afirmação de ter sido violado o artigo 538 do CPC - o que atrai a incidência da Súmula 284/STF - a impossibilitar o conhecimento do recurso. 8. Recurso especial a que se nega provimento.
(STJ, T4 – Quarta Turma, REsp 1.090.847/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 23/04/2013, p. DJe 10/05/2013).    

Também os tribunais inferiores estão a aplicar iterativamente o entendimento jurisprudencial que veda a usucapião de bens dominiais. Reproduzo algumas ementas (grifos meus):

ADMINISTRATIVO. USUCAPIÃO. BENS NÃO OPERACIONAIS DA EXTINTA REDE FERROVIÁRIA FEDERAL (RFFSA). 1. Aos bens integrantes do acervo das estradas de ferro incorporados à extinta RFFSA era expressamente aplicado o art. 200 do Decreto-lei n.º 9.760/46, por força do disposto no art. 1º da Lei n.º 6.428/77. A imprescritibilidade de bens públicos, mesmo dominicais, já era prevista no Código Civil de 1916, como restou assentado na Súmula n.º 340 do STF, além do disposto no art. 183, § 3º, da CF Falta, assim, a coisa apta a ser usucapida (res habilis), restando prejudicada a aferição dos demais requisitos necessários à prescrição aquisitiva. 2. De outro lado, não se pode julgar a usucapião de concessão de uso especial para fins de moradia, não postulada na inicial, e que deve ser discutida em ação própria. Apelação desprovida. Sentença confirmada.
(TRF2, Sexta Turma Especializada, AC 200751190027210 RJ 2007.51.19.002721-0, Rel. Des. Guilherme Couto, j. 11/06/2012, p. DJF2R 19/06/2012).    

CONSTITUCIONAL E CIVIL. USUCAPIÃO. IMÓVEL PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO. IMÓVEL DE PROPRIEDADE DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL COMO SUCESSORA DO SERVIÇO FEDERAL DE HABITAÇÃO E URBANISMO. 1. Os imóveis integrantes do patrimônio da Caixa Econômica Federal com destinação específica para utilização em projetos habitacionais submetem-se ao regime de direito público. Sendo insuscetíveis de usucapião. 2. A Constituição Federal traz em seu Art. 183, parágrafo 3º disposição no sentido de que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. 3. A Súmula 340 do STF reforça tal entendimento: "Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião". 4. Apelação não provida.
(TRF-5 - AC: 410379 CE 0020464-25.2007.4.05.0000, Rel. Des. Relator: Des. Carlos Rebêlo Júnior (Substituto), j. 04/12/2008, p. DJ 31/03/2009).    
 
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. BEM PÚBLICO NÃO PASSÍVEL DE USUCAPIÃO. A impossibilidade de bens públicos, sejam comuns, de uso especial ou dominicais, tornarem-se objeto de aquisição por usucapião é inarredável, ex vi do disposto nos artigos 183, § 3º e 191, da Constituição Federal e Súmula 340 do STF. Apelo negado. NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME.
(TJRS, Décima Oitava Câmara Cível, AC 70041660390 RS, Rel. Des. Elaine Maria Canto da Fonseca, j. 19/07/2012, p. DJ 24/07/2012).    

Ante o exposto, assoma incontornável a conclusão segundo a qual é impossível a prescrição aquisitiva de bens públicos dominicais, inclusive nos casos de imóvel rural e de usucapião constitucional pro labore.

Portanto, o item 85 está correto.