sábado, 6 de outubro de 2012

CRIME DE EXTERMÍNIO DE SERES HUMANOS NO CÓDIGO PENAL? Crítica à falta de técnica e displicência do legislador brasileiro em breves comentários à Lei 12.720/12.

 
A presidente Dilma sancionou recentemente a Lei 12.720/12 - a mais nova das leis do "pacote" de reformas pontuais que a Parte Especial do Código Penal tem experimentado nos últimos anos. Isso demonstra que, diferentemente do que alguns comentaristas açodados andaram anunciando nos últimos meses, o projeto de lei com o texto do novo Código Penal demorará a sair (com o Congresso Nacional que o País possui, alguém tinha dúvidas?). Logo, só resta ao estudioso da dogmática jurídico-penal no Brasil deitar seus olhos atentos ao atual diploma normativo, tentando "salvar", por meio de uma interpretação constitucionalizada e contextualizada com o Estado Democrático de Direito, a legislação fascista de 1940.
 
Sobre a nova lei, cumpre assinalar os aspectos da reforma:

1) Nova majorante do art. 121 do CP (Homicídio):
Art. 2º  O art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte § 6o: 
Art.121.  ..............................................................
§ 6º  A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio.” (NR)
 
Comentários RT: a lei em comento inseriu um parágrafo (§ 6º) no art. 121, de modo que o tipo de homicídio passou a contar com novel causa de aumento de pena. O legislador, portanto, decidiu apenar mais gravemente a ação do agente que perpetra o homicídio em contexto de ação miliciana ou de grupo de extermínio. O problema é que a definição de grupo de extermínio, bem como a de milícia privada, restou em aberto. Não há conceituação legal, especialmente quanto ao número de agentes para efeito de caracterizar o "grupo" ou a "milícia". E daí verifico ao menos um problema gerador de fundada insegurança jurídica: o intérprete da lei penal ficou com uma margem amplíssima de aferição quando do juízo de tipicidade - algo totalmente desaconselhável em se tratando de norma penal. Consoante o princípio da taxatividade, aplicável à técnica redacional legislativa, a norma incriminadora deve buscar a maior precisão possível na fixação da conduta punível, minorando, dessa maneira, exegeses variegadas e decisões conflitantes - sempre prejudiciais ao conhecimento profano dos comportamentos proibidos. Houvesse lembrado desse princípio básico do direito penal e o legislador se teria ocupado em definir o número de agentes necessários para efeito de autorizar a invocação da novel majorante. E agora? A tendência, como sói acontecer diante da falta de técnica do legislador brasileiro - fato, por sinal, recorrente -, é que a jurisprudência divida-se em pelo menos duas correntes:

1ª Corrente: o conceito de "grupo" ou de "milícia" ou de "esquadrão" deve tomar por base o tipo do art. 288 do CP, o qual exige, para sua caracterização in concreto, que a ação haja sido perpetrada por, no mínimo, 4 agentes ("associarem-se mais de três pessoas...").

2ª Corrente: a "Lei do Juiz Sem Rosto" (Lei 12.694/12), ao dispor sobre o processo e julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas, trouxe, no seu art. 2º, conceito legal de "organização criminosa", o qual deve ser aproveitado pelo intérprete quando da análise da majorante do § 6º do art. 121, isto é, bastando haver 3 agentes. In verbis:  

Art. 2o  Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.  
 
Vamos aguardar, obviamente, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no exercício do seu dever constitucional de órgão responsável pela uniformização da interpretação das leis federais no Brasil.

2) Nova majorante do art. 129 do CP (Lesão Corporal):

Art. 3º  O § 7º do art. 129 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação: 
 
“Art.129.  ....................................................

§ 7º  Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121 deste Código.
....................................................” (NR) 

Comentários RT: coube à legislação reformista ainda alterar o tipo da lesão corporal. Especificamente, a lei em apreço ampliou a causa de aumento de pena do antigo § 7º do art. 129. A esse respeito, vale lembrar que a redação do § 7º, oriunda da Lei 8.069/90, dispunha que a pena da lesão corporal aumentar-se-ia se ocorressem quaisquer das hipóteses do § 4º do art. 121 ["No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos."]. A partir de agora, não apenas a ocorrência da hipótese do § 4º autoriza a majoração, mas também a do § 6º do art. 121 (“§ 7º  Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121 deste Código.”). Ou seja, o legislador quis apenas mais gravemente a lesão corporal praticada por milícia privada ou por grupo de extermínio. Parece-me coerente a inclusão dessa majorante, haja vista o emprego da violência intimidatória (nem sempre resultando em supressão do bem jurídico vida a atrair o tipo de homicício do art. 121) estar diretamente relacionada ao modus operandi de grupos de extermínio e de milícias privadas.
 
3) Novo tipo penal (CP, art. 288-A):
 
Constituição de milícia privada 
Art. 288-A.  Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código: 
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos.
 
Comentários RT: o aspecto mais relevante da nova lei, todavia foi mesmo a criação de um novel tipo penal. Trata-se do art. 288-A - acima reproduzido in verbis. Analisando a topologia normativa, verifica-se que o novo tipo encontra-se situado no Título IX da Parte Especial do CP ("Dos Crimes Contra a Paz Pública"). Consequentemente, já se pode concluir que os objetos material e jurídico, tutelados pela normal penal, são a paz pública.

Acerca desse tipo, pode-se ponderar de imediato que sua pena (4-8 anos) gera dosimetria bem mais elevada que a do tipo correlato de quadrilha ou bando do art. 288 do CP (pena de 1-3 anos). Também se nota que, à diferença do art. 288 (que exige o mínimo de 4 agentes para caracterização do delito), o novíssimo art. 288-A não estipulou o quantitativo de agentes necessário para a constituição da milícia/organização paramilitar/grupo/esquadrão, o que certamente dará margem a muita insegurança jurídica, sobretudo pela possibilidade, sempre desaconselhável, de interpretações demasiado abertas na seara penal - como, aliás, explicitei supra nos comentários relativos à majorante nova do art. 121. Ainda, é de se notar que o art. 288-A, na sua conformação redacional, restringiu INEXPLICAVELMENTE a conduta de constituição de milícia privada à prática de crimes previstos no CP (“com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código:”), o que me permite afirmar que, se a intenção era punir mais gravosamente os milicianos, o legislador andou mal em ignorar que estes podem perpetrar crimes previstos na legislação extravagante. Assim, se agentes vierem a constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com o fim, por exemplo, de praticarem crimes contra a economia popular (Lei 1.521/51), descabe falar-se em tipificação do delito do art. 288-A, podendo-se, entretanto, reconhecer na espécie o crime de quadrilha ou bando (art. 288), contanto que presentes seus elementos objetivos e subjetivos.  

3) Atecnia na redação da ementa da lei: de todos os possíveis comentários a fazer sobre o novel diploma penal, o que me chama mesmo a atenção é o teor da ementa da Lei 12.720/12:

Dispõe sobre o crime de extermínio de seres humanos; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências.
 

Grifei propositalmente a expressão "crime de extermínio de seres humanos". É daí que se extrai a pergunta que não quer calar: ONDE está o crime de extermínio de seres humanos? Sim, pois, da leitura do diploma, tudo o que vi foi a inclusão de novas majorantes nos arts. 121 e 129, além da criação do tipo do art. 288-A, nada dispondo a legislação alteradora quanto à criação de um tipo penal específico de "extermínio de seres humanos". Tampouco me parece aceitável, ad argumentandum tantum, a comiseração do intérprete em defender o legislador, supondo que este estaria a referir-se ao delito de "Constituição de milícia privada", pois salta aos olhos que esse tipo não tutela a vida humana (seu bem jurídico é a paz pública).

Portanto, está mais do que evidente que o legislador incorreu em mais uma das suas conhecidas atecnias. Ou seja, não satisfeito em capitanear um dos mais elevados índices de inflação legislativa no direito comparado mundial, agora o legislador penal brasileiro simplesmente decidiu ignorar preceitos básicos concernentes à técnica redacional de cunho legislativo. A impressão que fica ao exegeta mais rigoroso é a de que, no Congresso Nacional, estão a legislar "a toque de caixa" quando se cuida das reformas operadas no Código Penal. Seria a urgência do direito penal simbólico com vistas a dar uma "satisfação" à sociedade (rectius: aos eleitores)? Ou seria apenas a mesma displicência e falta de preparo técnico que fez com que, em 2008, pretextando tornar mais rigorosa a legislação relativa aos crimes de trânsito, os parlamentares do País conseguiram resultado diametralmente inverso: alteraram a redação do art. 306 do CTB de uma maneira tão tosca que permitiram a generalização da impunidade de quem dirige embriagado, colocando em risco a segurança viária no trânsito? 

Furtar-me-ei a responder essa interrogante. Suscitei a dúvida. Deixo-a, agora, para a reflexão do leitor estimado que prestigia este blog. 



 
 

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