domingo, 7 de dezembro de 2014

DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA A COBRANÇA DE PARCELAS NÃO RECOLHIDAS AO FGTS: inconstitucionalidade da prescrição trintenária da Lei 8.036/90 e superação da súmula 362 do TST a partir do julgamento do ARE 709.212/DF no STF

Min. Gilmar Mendes, relator do ARE 709.212/DF no STF

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Originalmente, o texto da CLT, que foi promulgado em 1943, previa uma indenização ao empregado celetista que tivesse seu contrato de trabalho por prazo indeterminado rescindido (art. 478). De acordo com o princípio tuitivo que informa o Direito do Trabalho, a ideia a era proteger o trabalhador que se encontrasse em situação de desemprego, premiando-se de conformidade com seu tempo de serviço.

Esse mesmo propósito protetivo inspirou o legislador constituinte décadas depois. Com efeito, a Constituição vigente incorporou o regime do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que de 1966 a 1988 foi apenas facultativo, tornando-o obrigatório. Assim, o regime de indenização do art. 478 do Diploma Celetista foi abandonado. Restou o regime do FGTS, que passou inclusive a contar com expressa previsão no texto constitucional, senão vejamos:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

III - fundo de garantia do tempo de serviço;

Dessa maneira, após a Constituição de 1988, o fundo que visa a amparar o empregado no período de desemprego, notadamente com o objetivo de assegurar sua subsistência, passa a ser direito – com caráter obrigatório - de todos os trabalhadores, sejam eles urbanos ou rurais.

No rastro do mandamento constitucional, o legislador editou a Lei 8.036/90, diploma que concentra as normas regentes do FGTS. Basicamente, pode-se dizer que o fundo é alimentado pelas contribuições que são mensalmente recolhidas pelos empregadores ou tomadores de serviço sobre a remuneração paga ao empregado. Para esse fim, é necessária a existência de uma conta vinculada, aberta em nome do trabalhador junto à Caixa Econômica Federal, cujo saldo é absolutamente impenhorável. É o que prevê o art. 2º da Lei do FGTS:

Art. 2º O FGTS é constituído pelos saldos das contas vinculadas a que se refere esta lei e outros recursos a ele incorporados, devendo ser aplicados com atualização monetária e juros, de modo a assegurar a cobertura de suas obrigações.

§ 1º Constituem recursos incorporados ao FGTS, nos termos do caput deste artigo:

a) eventuais saldos apurados nos termos do art. 12, § 4º;

b) dotações orçamentárias específicas;

c) resultados das aplicações dos recursos do FGTS;

d) multas, correção monetária e juros moratórios devidos;

e) demais receitas patrimoniais e financeiras.

§ 2º As contas vinculadas em nome dos trabalhadores são absolutamente impenhoráveis.

A respeito do regime do FGTS, uma questão que sempre se revelou tormentosa no âmbito jurisprudencial diz respeito ao prazo prescricional aplicável à ação ajuizada com vistas a reclamar contra o não recolhimento da contribuição para o fundo.

Nesse sentido, a Lei 8.036/90 estabeleceu o prazo de prescrição de 30 (trinta) anos para o ajuizamento da ação que visa a cobrar os valores não depositados pelo empregador na conta vinculada na CEF. O dispositivo, ei-lo:

Art. 23 omissis

[...]

§ 5º O processo de fiscalização, de autuação e de imposição de multas reger-se-á pelo disposto no Título VII da CLT, respeitado o privilégio do FGTS à prescrição trintenária.

Em seguida, o Poder Executivo editou o Decreto nº 99.684/90, que teve por escopo regulamentar pormenorizadamente aspectos associados ao funcionamento do fundo. Esse ato normativo também reforçou o privilégio da prescrição trintenária no seu art. 55, consoante se observa a seguir:

Art. 55. O processo de fiscalização, de autuação e de imposição de multas reger-se-á pelo disposto no Título VII da CLT, respeitado o privilégio do FGTS à prescrição trintenária.

Logo, o regime aplicável às ações relativas a parcelas do FGTS beneficiar-se-ia de um prazo prescricional privilegiado, da ordem de 30 anos.

O problema é que, com o advento da EC nº 28/00, o legislador constituinte deu a seguinte redação ao inc. XXIX do art. 7º da CF/88. Colaciono:

Art. 7º omissis

[...]

XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho;

Ou seja, a Constituição estabeleceu um prazo prescricional quinquenal para a cobrança de créditos trabalhistas, respeitado o limite de dois anos para o ajuizamento da ação após a extinção do contrato de trabalho.

Diante dessa realidade normativa, alguns julgadores se insurgiram contra o prazo prescricional de 30 anos da Lei 8.036/90, entendendo-o descabido à luz do texto constitucional, que, por ser hierarquicamente superior, deveria prevalecer diante do comando infraconstitucional. Assim, para a cobrança dos depósitos não efetuados na conta vinculada do FGTS aplicar-se-ia igualmente o prazo prescricional de 5 anos.    

Naturalmente a questão foi submetida ao TST, que, por meio do enunciado nº 362 da sua súmula de jurisprudência, reiterou a validade da prescrição trintenária aplicável ao FGTS. Colaciono:

TST, Súmula nº 362 

FGTS. PRESCRIÇÃO  (nova redação) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

É trintenária a prescrição do direito de reclamar contra o não-recolhimento da contribuição para o FGTS, observado o prazo de 2 (dois) anos após o término do contrato de trabalho.

O enunciado, como se pode notar, sem embargo de ressalvar o limite bienal para o ajuizamento da ação, afastou o prazo de prescrição quinquenal, como queria parte da jurisprudência obreira. Assim, segundo o TST, o inc. XXIX do art. 7º da CF/88 não se aplicaria ao FGTS integralmente. As razões conducentes do pensamento da Corte Trabalhista podem ser auferidas da leitura deste julgado:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. FGTS. PRESCRIÇÃO TRINTENÁRIA. VIOLAÇÃO DIRETA de LITERAIS DISPOSITIVOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. NÃO CONFIGURAÇÃO. DESPROVIMENTO. A atual Constituição da República não prevê, expressa e especificamente, o prazo prescricional relativo a ações que visem o percebimento de diferenças a título de FGTS. Limita-se, em seu artigo 7º, XXIX, "a", a dispor, genericamente, sobre a prescrição das ações que tenham como objeto créditos resultantes das relações de trabalho, permitindo, porém, o entendimento de que tal dispositivo, por situar-se entre os direitos assegurados aos trabalhadores, apenas compõe o patrimônio jurídico mínimo que lhes é garantido, como também possibilitando a qualificados juslaboristas a afirmação de que a norma em tela apenas regularia a prescrição relativa a créditos trabalhistas, enquanto o FGTS, em que pese ao disposto no inciso III do mesmo artigo 7º, possui cunho eminentemente social. Logo, possível é a acepção de que a prescrição relativa ao FGTS é privilegiada, como dispõe expressamente o § 5º do artigo 23 da Lei 8.036/90 e tem apregoado a majoritária jurisprudência trabalhista, à qual se curva este Julgador. Agravo de Instrumento não provido, por não se verificar a ocorrência de violação direta de literalidade dos comandos constitucionais em questão. (TST, Quarta Turma, AIRR-639935-30.2000.5.06.5555, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 04/10/2000, p. DEJT 20/10/2000).

O TST, portanto, entendia pacificamente que o prazo trintenário de prescrição dos recolhimentos devidos ao FGTS não colidia com a norma constitucional, em face do seu caráter de “fundo social” representado pelo conjunto de depósitos realizados em favor da subsistência do trabalhador desempregado (princípio tuitivo).

Mas é preciso que se diga que o enunciado nº 362 da súmula do TST aplicava-se tão somente aos chamados “depósitos principais”, isto é, aqueles depósitos devidos pela remuneração paga ao trabalhador e não recolhidos em tempo hábil ao fundo. Nesses casos, a prescrição aplicável era de 30 anos (Lei 8.036/90, art. 23, § 5º), observado o limite de 2 anos após a extinção do contrato de trabalho (CF, art. 7º, XXIX). Todavia, em se tratando de “parcelas reflexas”, que são aquelas devidas ao fundo em razão do não pagamento ou pagamento a menor de parcelas trabalhistas (por exemplo, adicionais, horas extras etc.), a jurisprudência da Corte Obreira fixou a prescrição em 5 anos. É o que determina o enunciado nº 206 da súmula do Tribunal:

TST, Súmula nº 206 

FGTS. INCIDÊNCIA SOBRE PARCELAS PRESCRITAS (nova redação) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

A prescrição da pretensão relativa às parcelas remuneratórias alcança o respectivo recolhimento da contribuição para o FGTS.

No seguinte julgado, encontramos um exemplo prático de aplicação desse enunciado (grifo meu):       

1. DEPÓSITOS DE FGTS. PRESCRIÇÃO TRINTENÁRIA. VERBAS RECONHECIDAS EM JUÍZO. PROVIMENTO. Tratando-se de pleito relativo a parcelas postuladas na demanda trabalhista, que não foram pagas ou pagas a menor pelo empregador, o FGTS assume caráter acessório, submetendo-se a pretensão à regra prescricional contida no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal. Incidência da Súmula nº 206.

2. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO. SÚMULA VINCULANTE Nº 4 DO STF. EFEITOS PROTRAÍDOS. MANUTENÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO COMO BASE DE CÁLCULO. O E. Supremo Tribunal Federal ao editar a Súmula Vinculante nº 4, assentou, em sua redação, ser inconstitucional a utilização do salário mínimo como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, tratando a matéria de forma genérica, ou seja, não elegeu o salário ou a remuneração do trabalhador a ser utilizada para a base de cálculo relativa ao adicional de insalubridade. E mais, apesar de reconhecer tal inconstitucionalidade, a parte final da Súmula Vinculante nº 4 do STF vedou a substituição desse parâmetro por decisão judicial, razão pela qual, outra não pode ser a solução da controvérsia senão a permanência da utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, ressalvada a hipótese de salário profissional strictu sensu, até a edição de Lei dispondo em outro sentido ou até que as categorias interessadas se componham em negociação coletiva para estabelecer a base de cálculo que incidirá sobre o adicional em questão.

3. Recurso de revista conhecido e provido. (TST, Sétima Turma, RR-163100-35.2006.5.15.0049, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 20/04/2010, p. DEJT 30/04/2010).

O pensamento esposado pelo Tribunal Superior do Trabalho nessa matéria, entretanto, não obteve acolhida junto ao Supremo Tribunal Federal.

De fato, ao julgar o agravo no recurso extraordinário 709.212/DF, com repercussão geral reconhecida, o Plenário do STF entendeu de declarar a inconstitucionalidade das normas que previam o privilégio da prescrição trintenária. Para a maioria dos ministros, é de cinco anos o prazo prescricional aplicável à cobrança de valores não depositados no FGTS.

Em seu voto, o relator, Min. Gilmar Mendes, ressaltou que

[...] a jurisprudência desta Corte não se apresentava concorde com a ordem constitucional vigente quando entendia ser o prazo prescricional trintenário aplicável aos casos de recolhimento e de não recolhimento do FGTS.

Isso porque o art. 7º, XXIX, da Constituição de 1988 contém determinação expressa acerca do prazo prescricional aplicável à propositura das ações atinentes a “créditos resultantes das relações de trabalho”.

[...]

Desse modo, tendo em vista a existência de disposição constitucional expressa acerca do prazo aplicável à cobrança do FGTS, após a promulgação da Carta de 1988, não mais subsistem as razões anteriormente invocadas para a adoção do prazo de prescrição.

Da leitura desse excerto, observa-se que o relator encampou a tese de que o legislador constituinte, ao estipular em 5 anos a prescrição aplicável aos créditos resultantes da relação de trabalho, qui-lo igualmente para as ações relativas à cobrança das parcelas não recolhidas ao FGTS. Isso porque não se pode deixar de reconhecer a natureza trabalhista e social do fundo. Sendo então um fundo de cunho trabalhista, é forçoso reconhecer que os valores devidos ao FGTS constituem “créditos resultantes das relações de trabalho” e, por conseguinte, enquadram-se na norma constitucional que prevê o prazo prescricional de cinco anos, até o limite de dois anos após a extinção contratual (CF, art. 7º, XXIX), para as ações que visam a obtê-los.     

Abraçando esse pensamento, a maioria do Plenário do STF negou provimento ao ARE 709.212. Com isso, além de declarar in concreto a inconstitucionalidade das normas que dispunham acerca da prescrição trintenária, terminou por afastar o enunciado nº 362 da súmula do TST, que aplicava apenas parcialmente o disposto no inc. XXIX do art. 7º (prazo bienal para o ajuizamento da ação trabalhista).  

Por meio desse precedente, evidencia-se que o STF adotou uma interpretação consentânea com a hierarquia superior das normas constitucionais. Prevalece a literalidade do comando inscrito no texto da Constituição de 1988, em detrimento ao posicionamento de parte da doutrina e da jurisprudência – incluindo o próprio TST – que defendia que o art. 7º, XXIX, era um piso de prazo prescricional, uma baliza mínima, que poderia ser perfeitamente excepcionada pelo legislador subalterno em favor da maximização da legislação protetiva do trabalhador. O STF, todavia, preferiu prestigiar o princípio da segurança jurídica, visto que o prazo prescricional de 30 anos vai de encontro ao ideal de estabilidade e certeza que as relações jurídicas travadas em sociedade reclamam.  

REFERÊNCIAS

BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 07 de dez. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 26 de set. 2014.

BRASIL. Decreto-Lei 99.684, de 8 de novembro de 1990. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 07 de dez. 2014.

BRASIL. Lei 8.036, de 11 de maio de 1990. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 07 de dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma, ARE 709.212/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 13/11/2014, p. (aguardando publicação no DJe). Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 07 de dez. 2014.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Quarta Turma, AIRR-639935-30.2000.5.06.5555, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 04/10/2000, p. DEJT 20/10/2000. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 07 dez. 2014.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho, Sétima Turma, RR-163100-35.2006.5.15.0049, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, j. 20/04/2010, p. DEJT 30/04/2010. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 07 dez. 2014. 

         BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula 206. Tribunal Pleno. Res. 121/2003. DJ 19, 20 e 21.11.2003. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 07 dez. 2014.

         BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula 362. Tribunal Pleno. Res. 121/2003. DJ 19, 20 e 21.11.2003. Disponível em: www.tst.jus.br. Acesso em: 07 dez. 2014.   

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