sábado, 28 de abril de 2012

RESUMO RT - CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE - Parte III: Teoria da Inconstitucionalidade


Recapitulação

Na segunda parte deste resumo, o leitor pôde acompanhar o tema relativo aos precedentes históricos do controle de constitucionalidade. Foi abordado com pormenores, assim, o lead case mais importante para a construção doutrinária da técnica do controle de constitucionalidade: o caso Marbury v. Madson (1803), julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Foi nesse precedente que o juiz John Marshall, em seu voto condutor, deu origem à técnica de fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos, tal como se encontra estruturada na concepção do constitucionalismo moderno: se a Constituição é a lex suprema, eventual ato infraconstitucional que venha a desrespeitar suas normas deve ser invalidado. A Constituição, desse modo, é parâmetro do controle, enquanto os demais atos normativos podem constituir objeto desse controle. A Constituição é que deve prevalecer, competindo ao Poder Judiciário (e não ao Poder Legislativo ou Executivo) o papel de intérprete definitivo do texto constitucional. A Corte Suprema estadunidense inaugurou, assim, o judicial review na história do Direito Constitucional.     
Na terceira parte do resumo de controle de constitucionalidade, tratarei da(s) teoria(s) que circundam o fenômeno da inconstitucionalidade das leis e atos normativos. E, não obstante este seja um resumo destinado aos concursos públicos, se preciso for, não me furtarei a aprofundamentos, até porque as questões fáceis de controle de constitucionalidade estão a cada dia menos usuais nos certames.

Vamos começar, pois.

A teoria da inconstitucionalidade como apanágio do princípio da supremacia da Constituição.

Já anotei na primeira parte deste resumo que o princípio da supremacia da Constituição ocupa lugar de destaque no constitucionalismo moderno. Por esse princípio, o texto constitucional funciona como a "lei das leis", isto é, a lei suprema, a lei superior. Como norma principal do sistema jurídico, há de atribuir-se-lhe a característica de ser o núcleo derredor do qual todas as demais normas hão de circular. Consequentemente, a força normativa da Constituição implica o reconhecimento de que as normas constitucionais irradiam seus efeitos sobre todos - das pessoas físicas às jurídicas, das pessoas públicas às privadas. Todo aquele que se insere nesse sistema, submete-se à primazia do texto constitucional na regência primaz dos bens da vida.

Mas é preciso aclarar ao leitor que, não obstante o que se afirma acima, nem toda conduta infringente dos preceitos da Constituição há de considerada "inconstitucional". Do ponto de vista técnico, não se considera "inconstitucional" senão as condutas violadoras da Constituição que tenham sido levadas a cabo por órgãos públicos integrantes da estrutura estatal. Ou seja, a teoria da inconstitucionalidade não foi criada para sancionar atos privados, mas sim atos eminentemente públicos. Daí ser possível corrigir atecnia frequente, que consiste em cominar de "inconstitucional" todo e qualquer ato que infrinja os valores prescritos na lei superior. Pode-se até fazê-lo, mas desde que num sentido filosófico, ideal, de julgamento axiológico. Tecnicamente, contudo, as condutas de particulares que violem norma consitucional não são objeto de ataque pela via da jurisdição constitucional afetada ao exercício do controle de constitucionalidade. Em tais casos, outros são os mecanismos sancionadores das condutas privadas "inconstitucionais" (a mera alegação de que atos de particulares que vulneram lei infraconstitucional não invalidada à luz da Constituição já permite o controle desses atos, por exemplo). 

Com isso, o leitor fica sabendo que nem toda conduta contrária à Constituição é - tecnicamente - inconstitucional. A desconformidade das ações praticadas nas relações entre particulares durante a vida cotidiana, ou mesmo por particular em relação jurídico-pública, não aciona o controle de constitucionalidade como mecanismo sancionador. Este último regime de sanção (controle de constitucionalidade) existe especificamente para a fiscalização da validade das leis e demais atos normativos do Poder Público.


A teoria da escada ponteana aplicada ao controle de constitucionalidade e seus reflexos nos planos de existência, validade e eficácia da norma inconstitucional.

No plano da chamada Teoria Geral do Direito Civil, há tópico que comporta o estudo dos elementos do negócio jurídico (os essenciais, os naturais, os acidentais). Nessa seara, ganha destaque a teorização desenvolvida pelo jurista Pontes de Miranda (1892-1979), segundo a qual o negócio jurídico apresenta três planos distintos, a saber: plano da existência, plano da validade e plano da eficácia. Os civlistas costumam chamar essa teoria de "escada ponteana", pois um plano pressuporia logicamente o outro em ordem de verificação pelo intérprete: primeiro o plano da existência, depois o da validade e, por último, o da eficácia.

No plano do Direito Constitucional, essa teoria é apropriada para fins de analisar os atos jurídicos categorizados sob a forma de normas jurídicas - atos normativos que decorrem do atuação de órgãos constitucionais que têm a incumbência sistêmica de elaborá-los, para criar ou modificar situações da vida, em regra, com caráter geral e abstrato. Sendo assim, parece fácil entender que as normas jurídicas permitem sejam analisadas à luz da escada ponteana nos seus planos de existência, validade e eficácia.

Fixadas essas premissas teóricas, o leitor deve observar que, em se tratando de teoria da inconstitucionalidade, a análise dos atos normativos na sua dimensão tridimensional tem importância ímpar. Isso porque à Constituição compete estabelecer o modus operandi de produção normativa. Dessa maneira, a criação de leis, bem assim os demais atos normativos, tem na Consitutição um ponto de partida (no processo legislativo) e um ponto de chegada (no conteúdo dos valores assimiláveis pelo múnus legiferante). Nesse contexto, lei ou ato normativo que venha a desrespeitar o texto constitucional merece ser fiscalizado - e a via da fiscalização é justamente o controle de constiucionalidade. É quando o ato normativo atacado pode ser invalidado pela jurisdição constitucional, gerando efeitos na ordem jurídica a que pertence. Saber que efeitos o ato reputado inconstitucional produz, portanto, é o cerne da teoria da inconstitucionalidade. E a delimitação desses efeitos só pode ser coerentemente apreendida se se assumir como premissa teórica de análise a escada ponteana.

Guiado por esse pensamento, permita-me o leitor pontuar alguns aspectos básicos dos planos de existência, validade e eficácia dos atos jurídicos:

a) plano de existência: o intérprete, quando se propõe a debater esse plano, deve ter em mente que a "existência", por força de lógica, só pode ser corretamente apreendida quando em oposição à "inexistência". Trata-se de raciocínio que visa a aclarar que nem todos os fatos da vida interessam ao direito, mas apenas aqueles que foram juridicizados.

A juridicização, portanto, consiste precisamente no fenômeno mediante o qual um fato da vida é transposto para o mundo jurídico. Esse processo de transposição inicia-se quando a lei estabelece determinados elementos em sua hipótese de incidência, de tal modo que o fato da vida que venha a preenchê-los, no caso concreto, faz jus à "colorização" jurídica. Em conclusão: a existência do fato para o direito ocorre quando sua manifestação fenomênica comporta os elementos constitutivos da hipótese de incidência prevista na lei, os quais atraem o comando legal, funcionando como causa eficiente de sua juridicização. Ato que atrai e sofre a incidência do comando legal, desse modo, é o ato que "existe" juridicamente (é ato jurídico, portanto).

Dentre os elementos constitutivos da hipótese de incidência, é possível identificar elementos comuns (agente, objeto e forma) e específicos a determinada categoria de atos. Mas, independentemente da classificação que se faça em doutrina, o importante é compreender que, na ausência dos elementos constitutivos, o ato não fará incidir sobre si a regra legal. Ou seja, será ato que não adentrará o mundo jurídico, não será juridicizado. Logo, será considerado ato inexistente, o que não significa dizer que não merecerá a atenção do direito, o qual, muita vez, voltar-se-á contra ele, a fim de expurgá-lo e disciplinar suas consequências.

b) plano de validade: o intérprete, neste plano, depara-se com o problema que consiste em saber se o ato existente é também válido. Para isso, além dos elementos constitutivos que autorizaram a incidência da norma que o juridicizou e colocou no mundo do direito (primeiro degrau de análise na escada), esse ato deve observar alguns requisitos previstos em lei (segundo degrau de análise). Tais requisitos importam a qualificação desse ato que existe, dando-lhe uma dimensão de conformidade, de perfeição jurídica, à luz da norma legal. Mutatis mutandis, é como se a lei adjetivasse o substantivo, sendo o adjetivo sua dimensão de validade. Com isso, é fácil concluir que só os elementos constitutivos (agente, objeto, forma) não bastam para a perfectibilização do ato; deve ele também apresentar elementos qualificativos, atributos sem os quais o ato existe, porém é inválido (por exemplo, agente competente, objeto lícito e possível, forma prescrita em lei).

Embora inválidos, os atos jurídicos não deixam de importar ao ordenamento, o qual deles se ocupa para disciplinar em duas frentes: de um lado, na definição da sanção - que pode ser de nulidade ou anulabilidade conforme a gravidade do ato; de outro, no disciplinamento dos efeitos decorrentes do preceito sancionador que comina a invalidade.

Especificamente no caso do Direito Constitucional, ter-se-á por inválida lei contrária à Constituição. Observa o leitor que não se cuida de ato inexistente, o que se daria, exemplificativamente, no caso de lei editada por órgão não parlamentar, sem autorização constitucional para legislar (é pressuposto sine qua non da existência de uma lei que ela tenha sido editada por órgão parlamentar, isto é, o agente constitucionalmente autorizado a manifestar a vontade de criar ou modificar a disciplina da vida social em caráter geral e abstrato). O exemplo a que me refiro é de ato inválido.

Assim, eventual norma constitucional contrária à Constituição, seja por vício de índole formal ou material, mas que tenha ingressado no ordenamento jurídico, não é ato inexistente; pelo contrário, esse ato existiu, tanto é que ingressou no ordenamento e pode até mesmo ter produzido efeitos. A norma constitucional que ingressa no ordenamento jurídico com conteúdo contrário ao texto da Constituição é norma inconstitucional (norma que viola preceitos da lei superior, da lei suprema), o que significa dizer, por outras palavras, que norma inconstitucional é norma inválida (ela é sancionada no segundo degrau da escada).

c) plano da eficácia: é o plano por meio do qual o intérprete avalia se o ato está apto a produzir efeitos. Eficácia de um ato nada mais é que sua capacidade de gerar os efeitos que lhe são próprios. Ato eficaz é ato exigível, executável, exequível, aplicável, em suma, é ato que atinge a finalidade para a qual foi criado.

Em se tratando da teoria da inconstitucionalidade, é preciso avaliar a eficácia de um ato jurídico em específico. Trata-se da eficácia das normas jurídicas. Nesses casos, por eficácia normativa, devemos compreender a capacidade que tem a norma de regular as situações da vida para a disciplina das quais foi criada. Destarte, sendo norma inconstitucional norma inválida, como vimos acima, há de se perquirir as consequências da sua invalidação no plano eficacial. E as consequências são claras: norma inválida à luz da Constituição não deve ser aplicada. A invalidade, por conseguinte, é vício que, uma vez reconhecido, projeta-se para a dimensão eficacial, retirando da norma sua capacidade de gerar os efeitos que lhe foram atribuídos para a regência da vida social.

Aqui cabe considerar um detalhe a ser explorado melhor futuramente: o controle possui diversas classificações. Uma delas dá-se quanto à finalidade da fiscalização da constitucionalidade. Nesse prisma, e de maneira breve, pode-se dividi-la em controle concreto (a verificação da compatibilidade entre o objeto e o parâmetro constitucional é feita incidenter tantum para o deslinde de questão de fato que motivou a demanda, de modo que seus efeitos serão apenas inter partes) ou controle abstrato (a verificação da compatibilidade entre o objeto e o parâmetro constitucional é feita principaliter tantum no processo, pois o objeto litigioso é a própria discussão acerca da constitucionalidade do ato normativo, de maneira que a decisão proferida em tal via será imunizada pela coisa julgada material, atribuindo-se-lhe efeitos erga omnes). Pois bem. Nesse contexto, vale lembrar ao leitor que o reconhcimento da ineficácia do ato inválido (inconstitucional) importará efeitos distintos, de acordo com uma ou outra das finalidades do controle. No caso de controle concreto, em que a discussão de constitucionalidade do ato normativo é meramente incidental, a ineficácia dar-se-á apenas entre as partes do litígio. Já no caso do controle abstrato, que é aquele que deflagra a fiscalização em tese da norma, como objeto principal da demanda, a ineficácia (incapacidade de o ato produzir efeitos) irradiará suas consequências para todos os jurisdicionados.

Mas é preciso alertar o leitor para um problema de ordem da filosofia do direito. Cuida-se de saber se a norma inconstitucional, uma vez reconhecida sua invalidade e, conseguintemente, cassada sua eficácia, deixa de fazer parte do ordenamento jurídico. Esse é um ponto interessante do controle que muitas vezes é tratado de maneira equivocada por distintos doutrinadores. Quero dizer o seguinte: norma declarada inválida (incontitucional) não desaparece do ordenamento jurídico! Ela continua a pertencer a ele, pois somente outra norma poderá retirar-lhe a existência - ou seja, o instituto que implica o desfazimento de norma jurídica é a revogação. O que a declaração de inconstitucionalidade faz não é subtrair a norma jurídica do ordenamento, como boa parte dos estudiosos supõe. A jurisdição constitucional, atuando em sede de controle, julga inválida norma para efeito de subtrair sua dimensão de eficácia (ela não pode regular a vida, não pode ser aplicada). Com isso, é evidente que a norma inconstitucional torna-se aquilo que comumente se chama de "letra morta", que nada mais é do que a norma ineficaz - inidônea a reger a vida societal, porquanto incapaz de produzir os efeitos para os quais foi concebida. Mas essa sua ineficácia não importa automaticamente a retirada de sua vigência (validade técnico-formal, existência no mundo jurídico). Só a revogação cassa a vigência (existência de uma norma, empurrando-a para fora do primeiro degrau da escada). Só a revogação retira o preceito invalidado do ordenamento que compunha ante a manifestação de vontade do órgão que originalmente a formulou (regra geral o Parlamento). Prova disso é que a revogação de uma lei produz, em regra, efeitos ex nunc (prospectivos, para o futuro, pois até então a lei existia, ainda que reconhecidamente inválida), ao passo que a declaração de inconstitucionalidade de uma norma, levada a efeito pelo Poder Judiciário, opera efeitos retroativos (ex tunc).

Teorias sobre a natureza do ato inconstitucional

Avançando com o resumo, chegamos ao ponto de estudo das teorias que cercam a declaração de invalidade de uma norma. Um ato normativo impugnado, quando cotejado com o parâmetro que lhe serve de referência, pode ser invalidado pelo controle de constitucionalidade. Disso derivam consequências jurídicas. Mas quais? É o que devemos compreender.

Sobre as consequências da invalidação de ato contrário à Constituição, existem duas teorias principais: a primeira (teoria da nulidade), nascida na tradição do pensamento federalista dos Estados Unidos, entende que norma inconstitucional é norma nula de pleno de direito; a segunda (teoria da anulabilidade), por sua vez, defendida por Hans Kelsen, sustenta que norma inconstitucional é norma meramente anulável.

Em se tratando de leis inconstitucionais, a teoria da nulidade da norma prevaleceu na maioria dos países que adotaram o controle jurisdicional de constitucionalidade, incluindo o Brasil. Segundo essa teoria, ato normativo que viola a Constituição deve ser considerado nulo de pleno direito. Se o texto constitucional é o texto supremo (princípio da supremacia da Constituição), admitir que norma infraconstitucional inválida pudesse regular as situações para as quais foi criada, produzindo efeitos regulares e válidos, significaria permitir que um ato inferior se sobrepusesse ao superior, negando vigência ao texto consttucional. Em suma: o princípio da supremacia da Constituição seria sacrificado. Em razão disso, a fim de salvaguardar o princípio ameaçado, deve ser considerada nula a norma inconstitucional, reconhecendo-se que ato inválido à luz da Constituição não produz efeitos e tampouco pode ser convalidado.

Ora, como o ato é impugnado desde o reconhecimento de um vício de origem (afronta à Constituição) que o comina de nulo, a decisão que reconhece a inconstitucionalidade, segundo a teoria da nulidade da lei inconstitucional, é uma decisão declaratória, na medida em que apenas reconhece situação preexistente. Disso decorre que os efeitos da decisão serão retroativos (ex tunc), pois ato inválido não pode produzir efeitos, sob pena de negar vigência ao texto da Constituição. Assim, a lei inconstitucional, desde sua entrada no ordenamento, deve ser considerada sem efeitos válidos, impondo-se o desfazimento das relações jurídicas que se formaram derredor do ato nulificado (retorno ao status quo ante). É algo substanciamente diferente do que propunha a iusfilosofia kelseniana com sua teoria da anulabilidade da norma inconstitucional, para a qual o ato que violasse a Constituição seria meramente anulável, ou seja, ele produziria efeitos válidos até que fosse reconhecido o vício que o inquinava por um tribunal constitucional (controle concentrado). Sendo assim, para a teoria da anulabilidade, a decisão que afirmasse a invalidade do ato normativo seria uma decisão constitutiva negativa - isto é, uma decisão que desconstitui, que desfaz os efeitos do ato, reconhecendo situação não preexistente até o pronunciamento da corte constitucional. Nesse sentido, por se tratar de decisão desconstitutiva, o juízo de inconstitucionalidade que retirasse norma do mundo jurídico produziria efeitos tão somente prospectivos, para o futuro (ex nunc), não retroagindo ao momento da edição da lei inválida. Contudo, o leitor deve ficar atento: mesmo na teoria da anulabilidade, se o tribunal constitucional acolher a tese da constitucionalidade da norma guerreada, estar-se-á diante de decisão declaratória, pois milita em favor dos atos legislativos a presunção de validade (seria como se o tribunal apenas tivesse reforçado em acordão a validez do ato presumida ab initio).    


Temperamentos à teoria da nulidade da norma inconstitucional no controle de constitucionalidade brasileiro

Neste momento, cumpre advertir o leitor quanto ao seguinte detalhe: o Brasil adota a teoria estadunidense da nulidade da norma inconstitucional - mormente difundida ante a acolhida que recebeu no voto lapidar do juiz John Marshall no caso Marbury v. Madson (ver parte II deste resumo). É o que prevalece na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, incorporando, desse modo, tradição de longa data no consitucionalismo pátrio (o jurista Ruy Barbosa, p. ex., já ao tempo da República Velha, defendia-a). Sucede que a decisão declaratória de nulidade da norma inconstitucional gera problemas de ordem prática. Sim, pois casos há em que o ato normativo invalidado, durante o período de sua vigência, regulou situações jurídicas que se tornaram irreversíveis, impedindo, portanto, o retorno ao status quo ante, tal como preconiza essa teorização.

Diante desse impasse, a teoria da nulidade do ato inconstitucional viu-se forçada a promover atenuações à premissa de que "lei violadora da Constituição não produz efeitos válidos". Com isso, passou-se a reconhecer no Brasil temperamentos a essa doutrina, o que foi legalmente reforçado pela Lei 9.868/99 (Lei das ADIs), diploma em que há previsão da chamada modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, minorando os efeitos retroativos rígidos da pronúncia de nulidade. Também no plano jurisprudencial, o STF tem abraçado a ideia de que a pronúncia de nulidade com efeitos ex tunc não pode ignorar a realidade fática que se consolidou ao tempo em que vigente o ato atacado e nulificado pela jurisdição constitucional em sede de controle. Nesses casos, há que se prestigiar valores outros, tais como a boa-fé e a segurança jurídica, de igual estatutura na escala valorativa da Constituição.

Um bom exemplo prático desse tirocínio que vem atenuando o caráter retroativo do pronunciamento de nulidade da norma inconstitucional dá-se em relação à coisa julgada inconstitucional. Nesse contexto, a doutrina defende que eventual declaração de inconstitucionalidade de ato normativo não tem o condão de prejudicar a coisa julgada, cuja proteção mereceu o qualificativo de direito fundamental em expressa determinação do povo constituinte (art. 5º, XXXVI). Em tais hipóteses, a eficácia erga omnes do pronunciamento de nulidade em sede de controle não desconstitui a decisão judicial que se apropriou em seus fundamentos de lei declarada posteriormente inconstitucional. O máximo que se pode admitir é o uso de ação rescisória no prazo que lhe é cabível de acordo com as leis de processo. Todavia, findo o prazo decadencial da rescisória, afigurar-se-á impossível alterar a decisão trânsita em julgado.

Ainda nesse contexto dos temperamentos à teoria da nulidade do ato inconstitucional, o STF admite o emprego das técnicas da interpretação conforme a Constituição (confere-se um sentido interpretativo à norma impugnada, reduzindo o âmbito de sua incidência ante o afastamento das interpretações discrepantes com aquele definida pelo tribunal) e a declaração de nulidade sem redução de texto (por meio dessa técnica, o tribunal reduz o âmbito de incidência da norma ao declarar inconstitucional determinada hipótese de aplicação do ato impugnado, mas não para sacrificar o texto normativo, que fica preservado em sua inteireza redacional). Porém, a Corte Suprema brasileira rejeita a tese da inconstitucionalidade superveniente, entendendo que os atos infraconstitucionais anteriores contrastantes com a Constituição vigente considerar-se-ão não recepcionados, havendo inclusive instrumento processual específico para atacá-los na condição de objeto do controle de constitucionalidade (ADPF, na experiência brasileira).

Mas, sem dúvida, a principal demonstração de temperamento à teoria da nulidade do ato inconstitucional no controle de constitucionalidade brasileiro dá-se por força do disposto no art. 27 da Lei 9.868/99. In verbis:     

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razão de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois trços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Esse dispositivo de lei há tempos era reclamado pela doutrina, que via na produção empedernida de efeitos ex tunc, oriunda da teoria da nulidade, consequências muita vez não queridas pela própria Constituição. A Lei das ADIs, desse modo, buscou definir os parâmetros de flexibilização do dogma da nulidade da lei inconstitucional, estabelecendo, por exemplo, quorum de dois terços para que o STF venha a ponderar interesses em disputa, valendo-se, para tanto, de decisão não retro-operante em sede de controle de constitucionalidade.



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