domingo, 9 de setembro de 2012

RESUMO RT - CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE - Parte IV: Classificação das Inconstitucionalidades

 
Abusus non tollit usum. 

Recapitulação
 
Na terceira parte deste resumo, o leitor pôde acompanhar o tema relativo à teoria da inconstitucionalidade. Ali resumi como o princípio da supremacia da Constituição afeta o surgimento da ideia de “inconstitucionalidade” das leis e atos normativos do Poder Público, bem como de que forma a teoria da escada ponteana aplica-se ao controle de constitucionalidade (planos de existência, validade e eficácia da norma inconstitucional). Analisei ainda as distintas teorias sobre a natureza do ato inconstitucional e, em especial, a dicotomia entre as teorias da nulidade (teoria estadunidense) e teoria da anulabilidade (teoria kelseniana), buscando demonstrar a inserção dessas teorizações estrangeiras no Brasil.

Avancemos agora para a classificação das inconstitucionalidades.

Introdução

O fenômeno da inconstitucionalidade é múltiplo. Com isso, quero dizer que as leis e atos normativos do Poder Público que se chocam com a Constituição podem apresentar formas variadas de manifestação. Diante disso, é natural que surjam na doutrina maneiras distintas de classificar as espécies de inconstitucionalidade. E é exatamente isso que veremos agora.

Existem critérios classificatórios clássicos, como os que dizem respeito à inconstitucionalidade de procedimento/competência (formal) e de conteúdo (material). Outros são mais recentes, como aquele que se reporta à inconstitucionalidade por omissão. Todos, no entanto, afiguram-se importantes para um estudo aprofundado da teoria da inconstitucionalidade. Ei-los, então:
 
Inconstitucionalidade formal x inconstitucionalidade material:

Considerando caber à Constituição disciplinar o chamado processo normogenético, isto é, o processo mediante o qual as normas são produzidas num dado ordenamento jurídico, encontramos no seu texto várias normas procedimentais; outras, ainda, definidoras de competências; todas, no entanto, relacionando-se à criação das espécies normativas. Pois bem, quando uma norma é editada pelo Parlamento em desacordo com as regras constitucionais de competência e/ou de procedimento, diz-se que a inconstitucionalidade daí resultante é de tipo formal. Portanto, inconstitucionalidade formal é aquela oriunda de ato legislativo com vício de forma.

A inconstitucionalidade formal pode ser orgânica (quando o ato viola norma competencial) ou propriamente dita (quando a violação é do iter do processo legislativo, compreendendo as fases de iniciativa, deliberação, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação). Por exemplo: a Constituição reserva a iniciativa privativa ao Presidente da República quanto à apresentação dos projetos de leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores da União (CF, art. 61, § 1º). Sendo assim, se um projeto de lei (PL), de autoria de um Deputado, for submetido ao Parlamento para efeito de modificar o regime jurídico dos servidores da União, ter-se-á inconstitucionalidade formal propriamente dita, visto que o membro da Câmara não detém a iniciativa de elaboração das leis nessa matéria (o PL violou a fase de iniciativa do processo legislativo). Por outro lado, se lei estadual vem a estabelecer regras sobre a propaganda comercial, aí se estará diante de inconstitucionalidade formal orgânica, visto que violada regra de competência privativa da União (CF, art. 22, XXIX).
 
A inconstitucionalidade material, por seu turno, refere-se ao conteúdo do ato que se intenta impugnar. Tem-se, assim, a chamada incompatibilidade substancial ou substantiva, importando o reconhecimento de que a norma cujo conteúdo contraria o sentido conteudístico-valorativo da Constituição está eivada de nulidade. O vício material contido no ato pode apresentar-se tanto pelo desrespeito a um princípio quanto a uma regra constitucional. Por exemplo: lei municipal que estabelece alíquotas diversas do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN), tributando mais gravosamente o sujeito passivo pelo simples exercício de uma dada profissão, viola o princípio constitucional da isonomia tributária (CF, art. 150, II), o qual veda instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. Da mesma maneira, lei federal que, a pretexto de legislar sobre direito civil, viesse a restabelecer o pátrio poder na ordem civilista brasileira acarretaria violação material ao teor da regra, inscrita na Constituição, que determina a igualdade de gênero entre homens e mulheres (art. 5º, I), além de contrastar com a ideia de que o poder familiar não é um direito absoluto do pai, assegurando-se o seu exercício em igualdade de condições aos genitores que participam de uma sociedade conjugal (art. 226, § 5º) .
 
Aprofundando no estudo da casuística do controle de constitucionalidade brasileiro, vale a pena recordar o julgamento da ADC 19. Nessa ação, que, sumamente, visava a dirimir os sucessivos questionamentos quanto ao conteúdo da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), encontramos exemplos de alegações de inconstitucionalidades tanto de índole formal quanto material. A ADC 19, por exemplo, foi ajuizada pelo Presidente da República para que a Corte assentasse a constitucionalidade do art. 1º da Lei Maria da Penha (“Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”), em razão de que o controle difuso de constitucionalidade vinha sendo utilizado para impugnar, por supostamente discriminatório, o uso do critério de gênero pelo legislador com vistas à criação de mecanismos específicos de proteção da mulher contra a violência no ambiente doméstico e familiar. Ou seja, a ADC 19 tinha por objetivo superar uma arguição de inconstitucionalidade material (violação do princípio da igualdade entre homens e mulheres). Essa mesma ação ainda pedia que fosse assentada a constitucionalidade do art. 33 do diploma em comento (“Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.”), novamente por força de que havia se instaurado controvérsia judicial significativa, em especial pelo acolhimento da tese, em sede de controle difuso, de que a previsão legal de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher iria de encontro à norma do art. 125, § 1º, da Constituição, o qual estabelece competir aos Tribunais de Justiça a iniciativa das leis que disponham sobre organização judiciária em âmbito estadual. Ou seja, cuidava-se de sobrepujar uma alegação de inconstitucionalidade formal orgânica (inobservância da regra de competência do processo legislativo).
 
No entanto, o que interessa enfatizar é que, seja a inconstitucionalidade de tipo formal, seja de tipo material, a consequência é sempre a mesma: a nulidade da norma. Mas há uma exceção. Trata-se da incompatibilidade de norma infraconstitucional preexistente com uma nova Constituição ou com uma emenda constitucional superveniente. Aí as consequências mudam, conforme se cuide de inconstitucionalidade formal ou inconstitucionalidade material.
Em se tratando de ato normativo infraconstitucional preexistente, conflitante materialmente com a nova Constituição, dar-se-á o fenômeno da não recepção, isto é, a norma anterior sequer ingressa no ordenamento jurídico, pelo que se pode considerá-la automaticamente revogada. É diferente, todavia, o que ocorre com a incompatibilidade de índole formal: nesse caso, o ato normativo anterior, que se reputa incompatível com a nova Constituição, restringe sua discordância a uma mudança na regra da competência legislativa para a edição da norma apta a dispor sobre a matéria. Ou, ainda, a nova Constituição apenas modifica a espécie normativa passível de disciplinar o assunto versado na lei pretérita. Um exemplo para facilitar a compreensão do raciocínio: o Código Eleitoral (Lei 4.737/65, de 15 de julho de 1965) foi originalmente editado como lei ordinária; ocorre que a Constituição de 1988 passou a exigir lei completar para dispor sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais (CF, art. 121, caput). Considerando que essa matéria é disciplinada no Código Eleitoral, uma lei ordinária, como se resolve essa inconstitucionalidade formal? Simples. Na parte em que disciplina a organização e a competência da Justiça Eleitoral, a Lei 4.737/65 foi recepcionada com a natureza de lei material complementar, cabendo às suas demais normas a natureza de lei ordinária. Significa dizer, em conclusão, que a inconstitucionalidade formal de ato normativo preexistente à nova Constituição resolve-se com a recepção da norma pretérita, garantindo-se, todavia, que o processo legislativo ulterior respeite as regras competenciais e procedimentais previstas no novo texto constitucional - presumindo-se, é claro, que haja compatibilidade material do ato recepcionado.
Em síntese, o controle de constitucionalidade brasileiro não admite a inconstitucionalidade formal superveniente, resolvendo-se a pendência pela recepção da norma infraconstitucional pretérita com a natureza da espécie normativa que a nova Constituição, ou a emenda constitucional, instituiu como sendo a idônea a disciplinar a matéria. Em relação à inconstitucionalidade material superveniente, como vimos, o Supremo Tribunal Federal consolidou a tese de que as normas anteriores - materialmente incompatíveis com o novo texto constitucional - reputar-se-ão automaticamente revogadas (não recepcionadas).
 
Inconstitucionalidade por ação x Inconstitucionalidade por omissão:
 
A origem das espécies de inconstitucionalidades, sob as formas de ação ou omissão do Poder Público, decorre da imperatividade das normas constitucionais. Dado que as regras e princípios constitucionais caracterizam, em tese, normas de observância obrigatória (comandos constitucionais), deve o legislador cumprir o que nelas se determinada, seja para o fim de proibir determinadas condutas (normas constitucionais de índole proibitiva), seja para o fim de garantir a prática de determinados comportamentos (normas constitucionais de índole preceptiva). Disso decorre que os atos do Poder Público podem violar a Constituição quando não vedam a conduta que o texto constitucional deseja proibir, assim como quando não asseguram a ação que o texto exige.
Conceitualmente, inconstitucionalidade por ação é aquela ocorrente quando o ato do Poder Público viola a Constituição mediante uma conduta positiva, um agir, isto é, edita-se um ato incompatível com o texto constitucional. Nos marcos do estudo do controle de constitucionalidade, o ato a que a doutrina se reporta é a lei (embora não se negue haver condutas ativas violadoras da Constituição nos atos dos Poderes Executivo e Judiciário, controláveis pela via dos recursos previstos no ordenamento). O agir inconstitucional sobre o qual se edificou a teoria do controle de constitucionalidade é aquele, portanto, que se refere à ação do Poder Legislativo consistente em criar norma viciada, ingressando no ordenamento de maneira inválida, a reclamar, em consequência, a paralisação de sua eficácia em cotejo com o parâmetro normativo superior.
A inconstitucionalidade por ação pode ser total, quando todo o diploma legislativo for declarado inválido, ou parcial, quando apenas um ou alguns dos dispositivos constantes do texto impugnado tiverem sua eficácia paralisada. Normalmente, o vício formal gera uma inconstitucionalidade total, ao passo que o vício material pode gerar tanto a declaração de inconstitucionalidade de toda a lei quanto de apenas parte dela.
De outro giro, há também a inconstitucionalidade por omissão. Aqui há uma conduta negativa da parte do legislador: tendo o dever de elaborar a norma requerida pelo povo constituinte, ele deixa de fazê-lo, gerando, com sua atitude, um problema de perda de efetividade do texto constitucional. Omissão inconstitucional, desse modo, deve ser compreendida nos lindes de um non facere do legislador, da inércia que impede a concretização dos comandos constitucionais.
Mas é preciso deixar claro que nem toda inação do legislador caracterizará necessariamente uma conduta inconstitucional. Na verdade, a regra é a de que o legislador, discricionariamente, decide a conveniência e a oportunidade de legislar sobre um determinado assunto (“ninguém pode obrigar o legislador a legislar”, reza o velho brocardo). Há hipóteses, porém, em que o próprio texto constitucional reclama uma regulamentação, a fim de que o direito constitucionalmente previsto possa vir a ser usufruído pelos cidadãos. Em tais casos, isto é, quando existe na Constituição um dever de legislar para assegurar a eficácia de um preceito constitucional, a inércia (abstenção) será ilegítima, ensejando inconstitucionalidade por omissão.
Questão interessante surge quando se está diante de normas programáticas, que são aquelas que consubstanciam diretrizes de atuação ad futurum dos órgãos estatais. Nessa hipótese, a doutrina entende não ser possível, em regra, reconhecer omissão inconstitucional do legislador, haja vista o cumprimento dos fins sociais do Estado dar-se no decurso de um espaço considerável de tempo, limitado que está a questões de ordem prática, como a reserva do financeiramente possível. Mas também aqui se reconhece uma exceção: caracteriza omissão inconstitucional a conduta do legislador que, com sua abstenção ilegítima, obsta a realização das prestações reclamadas pelo mínimo existencial.
Do ponto de vista doutrinário, costuma-se ainda afirmar que a omissão do legislador pode ser total (ou absoluta) ou parcial. A primeira ocorre quando a inércia legislativa produz um vazio normativo, contrariamente do seu dever jurídico-constitucional de legislar. Há total ausência de normatização jurídica, inviabilizando o gozo de direitos subjetivos. Quanto a esse ponto, a jurisprudência brasileira tem entendido, historicamente, que a omissão total resolve-se com a declaração de sua existência, constituindo-se em mora o legislador, cientificando-lhe para a adoção das providências necessárias. Já no caso da omissão parcial, a doutrina costuma dividi-la em duas subespécies, a saber: omissão parcial relativa e omissão parcial propriamente dita. Na omissão parcial relativa, a lei exclui do seu âmbito de incidência normativa uma categoria que nele deveria estar inserida, o que subtrai dos excluídos um dado direito, atentando contra o princípio da isonomia. Na omissão parcial propriamente dita, o legislador, embora não viole o preceito isonômico, atua de modo insuficiente ou deficiente, não satisfazendo em plenitude a obrigação que lhe foi imposta. Por outras palavras, o legislador realiza, de modo imperfeito, o seu dever constitucional de legislar.
Em relação à omissão parcial propriamente dita, é importante frisar que se cuida de comportamento omissivo tão censurável quanto aquele compreendido na inércia total. Em ambos os casos, há abstenção ilegítima. Apenas na omissão parcial strictu sensu haverá concretização insuficiente, pelo Poder Público, do conteúdo da norma material impositiva que se funda na Constituição, refletindo conduta estatal indesejada, merecedora de repulsa, na medida em que a inércia do Estado qualifica-se como um instrumento perigoso do processo de mudanças informais na Constituição.

Por fim, sob a ótica do processo constitucional, cumpre assinalar que, enquanto a inconstitucionalidade por ação pode ser atacada com diversos instrumentos processuais (ADI, ADC, ADPF, RI), o ferramental existente no ordenamento jurídico brasileiro, pós-Constituição de 1988, ainda é tímido no combate às omissões legislativas: há apenas o mandado de injunção (CF, art. 5º, LXXI), direcionado à tutela de direitos subjetivos, e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), pertinente ao controle abstrato, manejadas, respectivamente, nas vias incidental e principal, ambas tendo por objetivo combater a inércia do legislador. Tal constatação só reforça o desafio que a jurisdição constitucional  - pátria e estrangeira - ainda há de enfrentar no tratamento repressivo do non facere legiferante.

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